Diário do Alentejo

A soletrar se aprende a ler!

22 de outubro 2025 - 08:00

José D’Encarnação Arqueólogo

 

Estranhava-se o facto de, em algumas inscrições romanas, os pontos, usados habitualmente só para separar palavras, indicarem divisão de sílabas. Viu-se nesse estratagema o indício da soletração como forma de aprendizagem, procedimento de que ainda muitos de nós se terão servido, ao tomarmos contacto com as primeiras letras: b + a = ba. E, sílaba a sílaba chegávamos ao todo, que era a palavra.Tal teria, pois, também acontecido no tempo dos romanos: a soletrar se aprendia a ler e a escrever.Não admira, por conseguinte, que, para mais facilmente se não enganar – e sabemos como, ainda hoje, ao fazer-se a gravação de uma inscrição, acontece o esquecimento de uma letra!... – o canteiro, ao desenhar na pedra as letras a gravar, usasse o ponto intermédio, não fosse o diabo tecê-las!Muitos exemplos há deste recurso. Vamos hoje falar de um deles, até porque se trata de precioso monumento, ainda por cima dedicado a uma das mais nobres divindades romanas: Apolo, o deus das Artes, o patrono de todas as musas!

 

O achado de um pequeno altar

 

 

Tal como hoje, gratos à intercessão de Santa Luzia, por eficazmente ter contribuído para a cura do nosso problema de visão, somos levados a pôr-lhe uma placa oculada no seu altar, também os romanos manifestavam gratidão mandando fazer um pequeno altar em honra da divindade protetora.Assim terá acontecido com Emília Élia: em comprimento de uma promessa, dedicou um altar, de 43 centímetros de altura – “árula” lhe chamamos nós… – ao deus Apolo, qualificado de santo.Achou-se o monumento, em 1954, a certa profundidade, por ocasião de trabalhos feitos na herdade da Misericórdia, próximo de Beringel, freguesia do mesmo nome, do concelho de Beja. Dela deu conta Abel Viana, nas páginas 18 e 19 do n.º IX (1954) do “Arquivo de Beja”: “(…) dizendo o trabalhador que a encontrou que ela estava colocada na posição normal sobre uma grande lousa, que ele tomou por tampa de sepultura. Não me parece ser natural que de sepultura se tratasse. […] O proprietário da herdade, o nosso bom amigo Sr. Felício António Ferro de Mira, ofereceu esta magnífica peça ao Museu Regional”.“Vem a ponto lembra”, acrescenta Abel Viana, “que já foram ali desenterrados o magnífico fragmento de uma estatueta de Vénus Anadiómene o pequeno boneco de barra cozido, que, segundo Leite de Vasconcelos, talvez seja uma figuração de Baco”.

 

A singularidade do letreiro

 

A árula é de mármore de Trigaches, cinzento muito claro, de linhas clássicas, com capitel, fuste e base bem delineados.Lê-se sem dificuldade a inscrição latina nela gravada, que quer dizer o seguinte: “Consagrado a Apolo Santo. Emília Élia cumpriu o voto de livre vontade”.Pelos nomes que ostenta, a dedicante poderá incluir-se entre os descendentes dos primeiros colonos de Pax Iulia, eventualmente, vindos de Itália, até porque a divindade que venera, o deus Apolo, não é das mais atestadas na epigrafia romana da Lusitânia: temos um exemplo, também numa árula, em Conímbriga; um outro em Lisboa, dedicatória feita por um liberto augustal, um terceiro na zona do Fundão e um quarto em Valência de Alcântara.Voltando, portanto, à nossa conversa inicial, a observação das linhas 1 e 2 do altarzinho são bem significativas do que se indica: os pontos a dividirem as sílabas A • POL • LI • NI (hedera)/SANC • TO • SAC.E são de notar dois pormenores.O primeiro é o facto de, para mais elegantemente preencher o espaço final da linha 1, o canteiro ter optado por gravar uma hera bem cordiforme e de caprichoso pecíolo, quando nada seria necessário, por ser o fim da linha.O segundo pormenor é, mui judicialmente, ter sido posto, na linha 2, o ponto entre o C e o T, a acentuar a ligação, na pronúncia, do som do C mais ao som nasal anterior do que ao T seguinte.Singelo no tamanho e despretensioso na forma, este monumento acaba por ser, na verdade, um bom testemunho da cultura dos romanos, porque, mais do que todos os deuses, Apolo às manifestações artísticas e culturais estava intrinsecamente ligado.

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