Maria Francisca Mendes | 74 anos | Vila Verde de Ficalho (Serpa)
“Há fritos, vizinha?”, pergunta uma voz de mulher, por entre a porta entreaberta, deixando entrar pela envergonhada frincha um rasto de sol madrugador que risca de luz, até à lareira onde o azinho arde, o chão de tijoleira da ampla cozinha perfumada a especiarias da quadra festiva.
“Queria encomendar uma caixinha” – tal como aquelas alvas que aguardam, em cima de uma das bancas, por quem não tardará a vir buscá-las, de viagem até às mesas engalanadas, desde as vésperas da consoada até aos Reis, satisfeito por ter conseguido levantar tão distinto “tesouro” pasteleiro, que adoçará, ainda mais, o convívio familiar.
Compreensivelmente alegre, sim, pois as afamadas filhoses e os ilustres linguados – “É assim que em Ficalho se chamam às azevias” –, delicadamente feitos por Maria Francisca Mendes não chegam para todas as encomendas.
A doceira, usando o traje que a denuncia – calças, blusa, avental e chapéu brancos –, veste este papel apenas durante esta época festiva do ano, acalentando- lhe as manhãs frias. “Porque às vezes os dias de inverno são muito aborrecidos e isto entretém- -me, torna-me os dias mais alegres”, diz, enquanto junta a um alguidar, “mais ou menos”, meio quilo de farinha.
De seguida, adiciona-lhe uma caneca de banha morna derretida – “Esta é do meu porquinho, que matámos há um ano, congela-se para não ‘arrançar’ e vai-se tirando conforme se vai precisando” – e amassa com as mãos nuas a mistura. “Agora deito-lhe um copinho de vinho branco, porque deixa as filhoses mais tenrinhas. Eu não uso ovos, porque acho que os ovos as endurecem mais”.
A certeza vem-lhe do saber feito de experiências, ao longo dos anos, que lhe foi apurando a receita – “À minha maneira, pois”. O que era apenas farinha branca em pó é agora uma massa consistente à qual Maria Francisca vai deitando salpicos de água morna, mexendo-a em movimentos ritmados, fortes, empurrando-a com a palma das mãos, esticando- a, macerando-a com o nó dos dedos, voltando-a a enrolar uma e outra vez. Nestes preceitos doceiros está desde as quatro e meia da manhã – “Gosto de me levantar cedinho, porque desempato mais, depois é aí uma correria a baterem-me à porta” –, tentando chegar a todas as solicitações dos doces festivos, vindas, a maior parte, de conterrâneos particulares e algumas do “café do Chico Pimba”, que fica, “lá em cima”, na vila. Mas os pedidos chegam também de “pessoas de fora”, caçadores de tordos, “de Lisboa, do Norte, de muito sítio”, que, por esta altura, estão presentes na região – “Isto foi uma pessoa de cá que lhes deu as minhas filhoses a provar e desde aí têm vindo aqui todos os anos, depois das caçadas”. Satisfeita com o resultado da massa que cresceu no alguidar, a doceira vai-lhe agora retirando pequenas porções, que coloca em cima da toalha de algodão polvilhada de farinha, “para a massa não pegar”, esticando-as, uma a uma, num vaivém com o rolo “até ficarem fininhas, que as queremos estaladiças”.
Depois, cada pequena massa disformemente esticada – “Meio quilo de farinha dá para fazer umas 16 filhoses” – é cortada num círculo perfeito, definido o perímetro sempre igual por uma forma em latão calcada em cada uma, regressando “as pontas” que sobram ao alguidar. O toque final, antes de repousarem um bocadinho – “Têm de ficar a fintar” – no tabuleiro de mármore, é fazer, “aqui mesmo no centro”, um buraquinho com um prateado dedal de costura, “para ‘compor’ e para quando forem ao lume não ‘arrebentarem’”, revela Maria Francisca o porquê da incisão. Com o óleo a fervilhar no fogão, as filhoses entram agora no tacho que acomoda, quatro a quatro, as redondas massas cruas que, de imediato, começam a crepitar e a ganhar cor.
No tacho entram também, mas em tempos diferente do das filhoses, os doces linguados, que, mantendo a mesma massa das primeiras – fechada em forma de meia-lua, ajudada a delinear pela cartilha –, são recheados com uma colherada de batata-doce cozida, “triturada pelo passevite” e “envolvida em açúcar e canela”. Passados dois ou três minutos que sejam – “Olha lá, estão bonitas” – as frituras são postas a escorrer numa travessa, “para ficarem sequinhas”, sendo, depois, num movimento decidido, como quem lança sementes à terra, polvilhadas com um punhado de açúcar e de canela misturados, mais uma vez este dueto vitorioso a ser protagonista.
Estão agora prontas a deliciar quem as prove, não sem antes serem dispostas nas caixas, alinhadas com cuidado por Manuel Branco – “A ajuda do meu marido dá-me um bom adianto” –, que não oculta a vaidade pela forma como são enaltecidos os doces festivos da sua mulher – “Não quer dizer que as outras pessoas não os façam bem, mas estes fritos são tidos como os melhores, sim senhor… e a gente sente-se sempre orgulhoso quando vê os nossos ficarem bem vistos”. A mesma opinião, unânime, tem toda a clientela, que vai entrando na cozinha, revelando-nos “o gosto” ímpar destas iguarias, tal como diz Maria Leonilde, amiga, “de há muitos anos”, da casa – “Estes são os melhores fritos de todos. São belíssimos! E digo isto a toda gente, porque em fritos não há ‘pai’ para a Maria Francisca”. Humildemente, a merecedora de tão distintos elogios, revela-nos que, de facto, lhe chega, de quando em vez, que as suas filhoses e linguados por todos são apreciados, desde o mais velho ao mais novo.
“Talvez seja porque do amargo ninguém gosta” ou, porventura, da dedicação dada aos doces da quadra – “Gosto muito de os fazer, muito” – saídos da cozinha de Maria Francisca. “Há fritos, sim senhora”.