Texto Aníbal Fernandesilustração Paulo Monteiro/arquivo
Nas eleições legislativas de 2024, no círculo eleitoral de Beja, os três partidos que elegeram deputados recolheram 53 893 votos (PS 24 408; CH 16 595; AD 12 890), dos 76 994 eleitores votantes (64,65 por cento). Os restantes partidos somaram, entre si, 20 977 votos – sem contar os votos em branco e nulos (2104) –, que foram diretamente para o lixo. Cenário semelhante ocorreu nos círculos de Évora, Guarda e Bragança, que apenas elegem três deputados, e Portalegre, que elege dois.
Se atendermos ao Alentejo, num todo, um terço do País em termos territoriais – incluindo os concelhos do litoral alentejano –, a região elege apenas uma dezena de deputados.
Acresce que o processo de despovoamento que parece não abrandar poderá levar a que, num futuro próximo, o círculo eleitoral de Beja perca um dos três deputados. Nas eleições que terão lugar a 18 de maio isso não aconteceu apenas por 800 votos…
A este propósito, há cerca de um mês, numa entrevista ao jornal on line “O Atual”, Pedro do Carmo dizia que “se não evoluirmos ou exigirmos que haja uma alteração à Lei Eleitoral que permita que esta imensidão territorial seja compensada”, pode-se esperar o pior, ou seja, a perda de um deputado para o círculo eleitoral de Braga.
Nuno Garoupa, professor e investigador na Universidade de George Mason, Fairfax, Virginia, questiona-se “como é que ainda há tanta gente a sair de casa para votar em partidos que sabe que não vão eleger deputados, cujo voto é completamente inútil”.
Numa entrevista concedida ao jornal “Brados do Alentejo”, em junho de 2023, o académico português radicado nos EUA, mas com ligação a Estremoz, onde viveu vários anos na juventude, constatava que nos distritos do Alentejo a votação em partidos que não elegem deputados “ainda corresponde a muitos milhares de votos”, e, admitindo “que não queiram fazer círculos uninominais”, defendia a criação, “pelo menos, [de] um círculo de compensação onde estes votos pudessem ser agregados. E já que estamos todos muito preocupados com o interior, esse círculo de compensação deveria ser para o interior inteiro, para dar um mínimo de representatividade a estes territórios”.
“Resistência de quem tem o poder”
Também a constitucionalista Teresa Violante, numa recente entrevista ao jornal “Público”, questionada sobre o assunto, referiu que “o sistema eleitoral português é construído não a partir das necessidades do sistema democrático, mas foi feito pelas necessidades dos próprios partidos. E o processo deveria ser inverso. Isso explica que exista uma resistência tão grande por parte dos partidos em partilharem o poder que detêm sobre o sistema político, o que é natural”, apontando que “há sempre uma resistência de quem tem o poder a partilhá-lo. Mas o que é certo é que a evolução que as democracias têm tido nos últimos anos vão no sentido da cidadania exigir ter uma voz mais ativa no processo democrático”.
“A única escolha que nós conseguimos fazer é em que partido votamos. E em determinados círculos eleitorais, na verdade, a escolha que conseguimos fazer é entre dois partidos”, constatou.
“Um desligar entre os deputados e os votos que receberam”
Paulo Vasconcelos, professor na Faculdade de Economia do Porto, questiona o Método D’Hondt que, segundo ele, “apresenta algumas desvantagens que estão, sobretudo, relacionadas com os partidos e círculos mais pequenos e a representatividade dos círculos eleitorais”.
Em fevereiro de 2024, em declarações ao projecto on line “Jornalismo Porto Net”, também concorda que há “um desligar completo entre os deputados que são eleitos e os votos que receberam”, considerando que “círculos com menos eleitores vão ter menos possibilidade de ter mandatos por esse círculo, em detrimento de círculos maiores”, realçando que o caso português é muito enviesado “para o litoral”, o que faz com que os círculos eleitorais no interior coloquem “muito poucos deputados” na Assembleia da República, o que resulta, segundo o académico, “do facto de Portugal não estar regionalizado”, apesar de tal estar previsto na Constituição desde 1976.
Paulo Vasconcelos lembrava na ocasião, a título de exemplo, que, nas eleições de 2022, “o CDS-PP teve cerca de 90 mil votos e não conseguiu assento parlamentar”, enquanto para eleger o primeiro deputado do Partido Socialista foram precisos apenas 19 mil votos.
“Combater o desperdício de votos”
Já por várias vezes a alteração à Lei Eleitoral esteve em cima da mesa, mas, por uma ou outra razão, a sua discussão na Assembleia da República nunca avançou. Há exatamente um ano foi lançada uma petição popular com o objetivo de levar à discussão este assunto, mas à data de hoje apenas tinha recolhido cerca de 1500 assinaturas, muito abaixo do exigível por lei para ser obrigatório a sua apreciação no hemiciclo de São Bento.
Paulo Trigo Pereira, professor catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), ex-deputado independente eleito pelo PS e, depois, deputado único, é um dos promotores do movimento “Renovar a Democracia”, que quer a reforma do sistema eleitoral.
O académico considera que a reforma nunca avançou porque tal obrigaria ao redesenho dos círculos eleitorais, o que obrigaria à reorganização dos partidos, “porque todos são baseados em distritais e as distritais são os círculos eleitorais”.
Trigo Pereira, em julho de 2024, dizia que esta iniciativa dependia do envolvimento dos cidadãos e da disponibilidade dos atores políticos, mas lembrava que, desde a revisão constitucional de 1997, “se procura mudar o sistema eleitoral”, e que os partidos reconhecem “as fragilidades” do atual sistema, “sendo que uma delas é o desenho dos círculos eleitorais, que cria uma grande injustiça entre os eleitores que estão no interior e os que vivem nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, que podem votar em qualquer partido”.
O proponente da petição revela que um dos objetivos é “combater o desperdício de votos”, mas também reconhece que não será fácil, porque tem-se assistido a uma “conversa de surdos” entre o PS e o PSD.Na ocasião dizia que o modelo estava em aberto e a discussão seria em torno de dois modelos que têm estado em cima da mesa: um sistema misto proporcional, inspirado nos modelos alemão e neozelandês, em que os cidadãos votam duas vezes, num partido e num candidato de um círculo uninominal; e outro modelo, “em que os cidadãos têm um boletim de voto, em que podem votar numa lista, mas num candidato em particular”.
Numa referência às eleições de março de 2024, Trigo Pereira dizia que “em Portalegre ou em Beja ou o eleitor se identifica com os dois grandes partidos do distrito ou o voto é desperdiçado. Nas últimas eleições, mais do que um em cada quatro votos, no Alentejo, foi desperdiçado. Foi para partidos que não elegeram ninguém. E, mesmo assim, há voto útil. Ou seja, já houve pessoas que não devem ter votado naquilo que desejariam, porque sabem que não elegem ninguém. Isto é justo? Bom, penso que toda a gente acha que isto é injusto”.
“Candidatos independentes”
Também o sociólogo António Barreto, ex-deputado, ex-ministro da Agricultura no primeiro Governo da AD e, atualmente, colunista do “Público”, tem emitido opinião sobre o tema, defendendo que os deputados deveriam ser eleitos “nominalmente, a duas voltas, cada um obtendo, assim, sempre mais de 50 por cento dos votos. O deputado eleito representa-se a si, ao eleitorado e ao seu partido, em vez de, como hoje, representar essencialmente o seu partido”.
António Barreto defende, ainda, que “qualquer cidadão independente poderia candidatar-se a qualquer círculo, sem necessariamente ser membro de um partido. A seu lado, constaria sempre o nome de um suplente ou substituto. A candidatura de independentes sempre meteu medo aos partidos. Dizem que assim se retira força ao Parlamento e que se criam parlamentos sem lógica nem coesão. Está implícita a ideia de que os independentes têm qualidades (competência ou demagogia) que põem em causa os parlamentos democráticos. A verdade é que, perante a ameaça de candidatos independentes com qualidades e currículo, o que os partidos têm a fazer é de os ir buscar para as suas listas. Se não forem chamar os melhores, pior para eles, talvez melhor para nós”, conclui.