No âmbito dos 51 anos da Revolução dos Cravos, o “Diário do Alentejo” falou com Manuel Monge, general na reserva, natural de Aldeia Nova de São Bento (Serpa), com quatro campanhas em África e uma em Macau, membro do Movimento dos Capitães de Abril e da comissão coordenadora do Movimento das Forças Armadas, assessor militar de António de Spínola e Mário Soares na Presidência da República e último governador civil de Beja.
Texto José Serrano Fotos Ricardo Zambujo
Considera que, 51 anos após a Revolução, o espírito de abnegação, associado ao 25 de Abril, continua maioritariamente presente nos protagonistas políticos, em prol do País, do povo português?
Acho que esse espírito está um bocadinho ausente. Na Europa, não só em Portugal. A Europa, que conseguiu com a União Europeia um projeto de paz, de desenvolvimento e de apoio social, tornou-se, ao mesmo tempo, em termos políticos, uma zona onde o individualismo se sobrepõe aos interesses comunitários. É realmente o que a gente vê, nomeadamente, com movimentos extremistas. Os da esquerda, que foram muito violentos, já passaram um pouco de moda, agora vêm do outro lado. Realmente, a Europa não está bem de saúde. E isso, é claro, projeta-se em Portugal.
Quais as razões, no seu entender, que terão conduzido a essa “enfermidade”?
A liberdade de imprensa é o fundamental das democracias, é aí que se tira a temperatura do seu estado de saúde, mas depois há… Com as redes sociais criou-se um clima de suspeição, de demasiado escrutínio. As melhores pessoas não aceitam ir para cargos públicos, não querem expor-se, nem expor as suas famílias, porque parte desse escrutínio não vai verificar o que existe, apenas vai comprovar as ideias de suspeição que têm contra as pessoas. E nós assistimos a casos de justiça que distam 10, 15 anos à espera de serem julgados, e isso arruína completamente as carreiras. Isso faz com que grande parte dos que podiam ser prestáveis para as nossas instituições públicas não queiram. Nos últimos tempos vejo algumas das pessoas mais corajosas porem em causa certos procedimentos do Ministério Público, que tem os seus “jornalistas de mão”. E antes de as coisas aparecerem como devem ser, nos seus fóruns próprios, aparecem as pessoas a serem condenadas na praça pública.
Isso reflete-se na qualidade da democracia?
Com certeza. E eu vejo algumas preocupações nos nossos jornalistas mais lúcidos… pois alguns jornais e algumas televisões seguem o rumo das redes sociais, que são um fosso de aldrabices.
Como figura da Revolução dos Cravos, o que considera estar ainda hoje, para além do que já elencou, desadequado na sociedade portuguesa face aos “sonhos” de Abril?
Se nós virmos o caminho que percorremos, todos os escolhos por que passámos, as fraturas que tivemos entre nós, se virmos o resultado final, não podemos ser ingratos. Porque, realmente, temos uma democracia consolidada. Contudo, temos uma sociedade em que – para nós, os mais velhos – alguns valores se perderam. Mas há que perceber que a vida não é nossa e que o mundo muda a uma enorme velocidade.
Que valores são esses que se perderam?
A nossa sociedade evoluiu, realmente, em termos tecnológicos e científicos. Já em termos éticos houve certas coisas que, infelizmente, não se consolidaram.
Quer dar um exemplo?
A gente vê hoje essas coisas dos miúdos, que filmam uma violação e põem nas redes sociais. Isto é um desequilíbrio. Eu acho que aquilo em que nós, sociedade ocidental democrática, mais falhámos foi nas ligações intergeracionais, que se reflete obviamente nos desfasamentos que há na parte da educação. Isto não está bem. Eu vejo que tenho dificuldade, às vezes, em falar com os meus netos. Nós não conseguimos levar-lhes um determinado número de preocupações… Ou por falta de paciência, ou por falta de habilidade, ou por falta de... Não sei.
Porventura, essa dificuldade de comunicação, entre gerações, acontecerá desde há muito… continuará a acontecer…
O mundo é dos jovens, o futuro é deles, mas não lhes deixamos um legado suficientemente... Mas, sim, cada uma das gerações é um pouco corporativista em termos dos seus egoísmos. Isto é terrível, mas é verdade. Portanto, para mim, o nosso grande problema é não existir uma linha contínua em termos de valores. Houve aqui fraturas que nós não conseguimos... O mundo tem de parar para pensar.
No seu entender, o que se poderia fazer para resgatar para as gerações vindouras esses valores de que fala?
Um assunto que agora está na moda discutir-se, por questões de segurança, é o serviço militar obrigatório. Eu sou um defensor acérrimo do serviço militar obrigatório, que deve ser uma conceção de cidadania, um direito e um dever dos cidadãos para com o seu país, a sua comunidade. Não quer dizer que a gente o materialize num ano inteiro de tropa. Não. Alguns poderão ir trabalhar para os hospitais, para os campos, na altura dos fogos, tanta coisa… nós vemos em relação à juventude uma total incapacidade de se solidarizarem. Eles estão à mesma mesa e falam uns com os outros com o telemóvel em vez de conversarem diretamente. Isto é um sintoma de como se criou uma sociedade individualista. Não quero dizer que o serviço militar obrigatório seja o remédio para esta doença, mas simboliza a necessidade de existir solidariedade social – que se perdeu. Ninguém liga a ninguém… uns fulanos estão a agredir um miúdo, mais frágil, e os outros, em vez de o irem socorrer, estão a filmar. É isto…
Isso aflige-o?
Preocupa-me. Não sei que mundo é que os mais novos vão ter… mas não estou nada esperançado que isto se corrija. Há muitas lacunas. Porque os valores assentavam, fundamentalmente, no respeito pela comunidade. Nós, os militares, ainda que possamos ser, politicamente, uns mais para a esquerda, outros mais para a direita, somos todos estatizantes. Os militares têm tanto respeito pelo Estado que lhe chamam pátria e começam a sua vida ativa jurando morrer por ela, se for necessário. Esse respeito tem que ver, exatamente, com uma sociedade integrada, com todas as pessoas a respeitarem-se umas às outras. Esses são os nossos valores. Os valores da pátria são, hoje, coisas ultrapassadas? Não! Porque representam o cume, o pico de uma pirâmide, onde estão todas as diversas parcelas que representam o bem-estar de um povo organizado, que se respeita e se auxilia.
O individualismo prevalece em detrimento da comunidade solidária, é isso?
Se houver uma catástrofe em Portugal, se houver um terramoto, como é que nós vamos reagir? Vamos comportarmo-nos como os países incivilizados, que vêm todos saquear? Ou vamo-nos todos ajudar uns aos outros, comportarmo-nos como os japoneses, que, para mim, são o exemplo maior de solidariedade? Não sei, não sei.
Regressemos ao 25 de Abril. O que considera faltar da Revolução cumprir, aqui, no Baixo Alentejo?
Nestes 50 anos há uma conquista extraordinária, a grande conquista do interior – aí, sim, de solidariedade social – que é o poder local. Mas foi só o poder local. Porque temos muito menos apoios de “natureza” Estado, que não está presente. As escolas já só existem nas povoações maiores. Os serviços, as finanças, as direções regionais de agricultura, por exemplo, já só há nos principais centros populacionais. E há uma enorme dificuldade de as pessoas chegarem à saúde, numa região com uma população envelhecida, que está muito pouco acompanhada, com dificuldades em deslocar-se…
Considera, assim, que tem havido um alheamento por parte do Estado, dos sucessivos governos, para com esta região?
O Alentejo, como tudo o que é interior, foi abandonado. Quando eu fui governador civil senti isso na pele, com grande amargura. Para a gente conseguir qualquer coisa era uma grande complicação. Há aquele princípio eleitoralista: “Quantos deputados é que vocês valem? Três? Três deputados valem ali um concelho de Sintra”. Ninguém tinha a coragem de nos dizer isto, mas a gente percebia, perfeitamente, o que norteava grande parte das decisões.
Foi, exatamente, em Beja, o último governador civil, figura extinta em 2011. No seu entender, revela-se, hoje, essa decisão vantajosa ou inconveniente?
Eu acho que foi um perfeito disparate. A verdade é que somos o único país da Europa democrática em que o Estado não tem um representante nas suas regiões do interior – há países mais pequenos do que o nosso e têm-no. Em Portugal há o poder central, não há mais nada. Porque as câmaras, os municípios, não representam o Estado, representam, fundamentalmente, as suas populações.
Depreendo que veria com agrado a reposição da figura do governador civil…
Os governadores civis tinham uma grande ação em termos de conjugação de vontades, de ligação entre câmaras municipais, com os comandantes operacionais da proteção civil. No meu entender, o Partido Socialista, a primeira coisa que devia ter feito, quando assumiu o poder a seguir à troika, era repor o governador civil. Não o fizeram, já não fazem – julgo que não haverá coragem política para refazer a situação.
Quais os principais desafios que se colocam hoje ao Baixo Alentejo?
Uma das minhas grandes preocupações é o despovoamento. Em várias alturas houve várias situações que fizeram com que os alentejanos tivessem de sair da sua terra. Primeiro foi a mecanização da agricultura, depois a guerra de África, a seguir, a reforma agrária, que veio criar utopias irrealizáveis… Houve aqui uns grandes trambolhões. Quando a agricultura voltou a precisar de mão de obra nós não tínhamos gente, tinham só ficado os resistentes, os velhos. E vieram os imigrantes. Como é que isto agora se equilibra? Se mesmo aos nossos jovens que gostavam de cá ficar, mesmo a esses, nós não sabemos criar as condições…
Em 2012, em entrevista a este jornal, preconizava que seria “fatal” o aeroporto de Beja vir a ter utilidade. Está essa utilidade ainda dentro do prazo que consideraria nessa altura?
O que a gente vê no aeroporto de Beja são os clubes de futebol a utilizá-lo quando não querem estar sujeitos às demoras no aeroporto de Lisboa. E está mal aproveitado – com o aeroporto de Faro completamente esgotado – porque a empresa que detém a sua concessão “está noutra”. Eles querem lá saber do Alentejo… O Estado, que deve ter um poder forte, que deve ter muitas coisas na sua mão, em termos estratégicos, no interesse do País, ter concessionado com as condições que concessionou foi um perfeito crime de lesa-pátria. Tem a ver com a nossa pequenez de espírito, que às vezes existe em certos sítios de decisão. Mas se este aeroporto, com as suas circunstâncias, estivesse no Porto, isto era como devia de ser, porque aquela gente do norte tem uma garra e um poder… a gente aqui pede, refila, mas a verdade é que nem sequer conseguimos fazer chegar a eletrificação da linha férrea até ao aeroporto. Eu costumava dizer que a única coisa que tem alguma elevação à volta do aeroporto de Beja são os cornos das vacas do brigadeiro Batista quando os aviões passam e elas olham para cima.
Referiu a imigração na questão dos desafios que se colocam ao território. Como olha para essa nova realidade?
Em Vale de Vargo [Serpa] há turmas de miúdos da primária que só existem por causa dos imigrantes romenos, que, sendo europeus, é mais fácil integrarem-se connosco. [Com] os asiáticos é mais complicado. A gente pensar que um nepalês ou um indiano se integra facilmente na nossa sociedade… é difícil. E é difícil porque eu não sei se eles irão alguma vez trazer as famílias. Mas se as famílias vierem são capazes de fazer o que os turcos fazem, por exemplo, na Alemanha – não se integram, vivem em comunidades separadas. Nada pior do que uma sociedade que tenha comunidades com culturas diferentes que não se integram umas com as outras. Porque se cria desconfiança.
E de que forma se traduz essa desconfiança?
Antigamente, quando havia um crime, o cigano era o primeiro suspeito, sempre. Agora já não é o cigano. Hoje, quando há um incidente, as pessoas perguntam logo: “É imigrante?”. Normalmente, até nem é. Mas criou-se essa desconfiança. E essa desconfiança existe porque não há ligação intercultural.
E o que pensa sobre a incapacidade da região acolher, de forma condigna, todos os que aqui chegam?
Nós não sabíamos a dimensão que isto iria atingir. O que fez explodir o aumento da imigração foram as estufas na zona de Odemira. Depois, mais tarde, os olivais superintensivos, daqui, que precisam de muita mão de obra. Mas precisam de muita mão de obra para a sua implantação, porque, depois, para o dia a dia, já há a mecanização. Ainda há aí grupos, ainda há trabalhos que são precisos fazer, as podas e tal, mas a grande necessidade de mão de obra é no arranque. Ora, isto é muito sazonal, muito esporádico, e tem de ser muito bem organizado. Senão, temos cá gente que tem trabalho durante um certo tempo e passados uns dias, passadas umas semanas, ficam no desemprego.
Considera que tem havido algum laxismo político na forma como o problema tem vindo a ser tratado?
Claro. Há uma certa esquerda que defende o direito de livre movimentação das populações. Nós temos as portas abertas e entra quem quer. E, depois, como é que a gente pode receber com dignidade todas as pessoas que vêm? E o pior disto tudo é que a maior parte deles não vem, é trazida por redes que lhes cobram um dinheirão. E eles ficam aqui quase escravos. Isto, também, é um assunto de polícia, em que se tem de entrar com muita força contra as máfias. Nós temos 400 mil indivíduos à espera de serem legalizados. Como é que isso pode acontecer? A própria soberania do Estado português e da nossa cultura ancestral pode estar em causa. Não é por eles serem de uma cultura diferente. É pelas organizações criminosas que exploram essas culturas. E que existem, a gente sabe que elas estão aí. Até há muito pouco tempo era absolutamente impossível dizer “há que ter cuidado com a imigração”. E aparece a extrema-direita a dizer isto. Os gajos são xenófobos, mas, depois, têm 50 deputados… ganham em freguesias do Alentejo… O mundo está doido, o que é que se passa? A imigração é um problema europeu. Só que a Europa é uma senhora velha e um bocado egoísta…
Ainda no âmbito dos extremismos. Preocupa-o o crescendo populista que se tem vindo a verificar na Europa?
O estado da situação da sociedade em França é altamente preocupante. Na Alemanha o crescimento da extrema-direita é um epifenómeno regional, no espaço da antiga Alemanha Democrática, e é como um inchaço no braço – cresce, incha, desincha, passa. Não há, ainda hoje, nenhum alemão “normal” que não fique incomodado quando se fala no nazismo – a sociedade não soube reagir e entrou naquela loucura. E essa loucura pode acontecer na França com a extrema-direita.
Teme que o discurso de intolerância possa fraturar a ideia de União Europeia como espaço comum, próspero e de pacificidade?
O risco criado pelo advento da extrema-direita tem a ver com o desenraizamento, as gerações mais novas perderam contactos com os valores. A democracia é muito bonita mas a liberdade é como a saúde – só se conhece a sua falta quando ela chegar. Os jovens fazem lá ideia do que era o nosso mundo com a idade deles, as limitações que a falta de liberdade produzia na nossa sociedade. Isto não foi transmitido, convenientemente, às gerações mais novas. Eles pensam que democracia e a liberdade são direitos adquiridos e que não estão em causa, mas estão. Ainda assim pode haver questões que levem a Europa a unir-se. A invasão da Ucrânia fez tocar aqui vários alarmes. Quando há um inimigo externo as diferenças [entre os países] tendem a diluir-se.
Considera urgente, depreendo, a união entre os vários países europeus para prevenir o crescendo de discursos populistas…
Não basta a união. É necessário que se tomem medidas que vão contra aquilo que são os estandartes da extrema-direita.
E que medidas deverão ser essas?
Uma delas é tratar a imigração com respeito, mas também com regras. E uma das regras deverá ser uma política ferocíssima contra as máfias que trazem para cá esses desgraçados. São medidas de segurança, de polícia, de serviços de informação e há que procurar contactos com as autoridades e as entidades do lado de lá. Porque será muito desnaturado um Estado que gosta que os seus cidadãos saiam para virem morrer no meio do Mediterrâneo. Existem medidas de fundo a serem tomadas.
E isso não está ser feito, é isso?
O respeito pelas minorias é uma das joias, um dos pontos-chave, das democracias e da liberdade. Mas se essas minorias se servem disso para impor o seu código moral à maioria da população, a maioria da população reage e, depois, temos a eleição de 50 deputados misóginos. A Europa caiu em alguns exageros… nas escolas francesas não se fazem presépios para não ofender os muçulmanos. Mas porquê? Nós temos o máximo respeito pelos muçulmanos.
Regressemos ao País. Preparamo-nos para novas eleições legislativas (dia 18 de maio), as terceiras num período de pouco mais de três anos. O que reflete, no seu entender, este facto, diria, bizarro?
Diria que nunca mais temos adultos na sala…

“Em qualquer democracia consolidada o Presidente da República deve ser um cidadão que fez bem aquilo que fez”
E como considera a eventualidade, 40 anos depois da conclusão do segundo mandato de Ramalho Eanes como Presidente da República, Portugal poder vir a ter, novamente, um militar como Chefe de Estado, atendendo à previsível candidatura de Gouveia e Melo nas Presidenciais do próximo ano?
O almirante é um cidadão com todos os direitos. Dizer que não se deve candidatar porque não tem vida política é uma perfeita parvoíce. Em qualquer democracia consolidada o Presidente da República deve ser um cidadão que fez bem aquilo que fez. Gouveia e Melo é um homem que tem uma vida militar notável e quando faz uma “incursão” no mundo civil ganhou o direito a ser candidato, por ter sido quem resolveu, à maneira militar, o problema da vacinação [covid-19]. O almirante é uma pedra da tal coluna que já falamos – da necessidade de repor alguns dos valores tradicionais e é visto pela sociedade como alguém que tem possibilidade de pôr “ordem na caserna”. Nós somos um povo desorganizado, mas apreciamos a organização e integramo-nos bem nela. Temos é, às vezes, falta de liderança.

“Já não tenho razões para não estar aqui (...). Estou em casa”
Para terminarmos. Vive, desde há 14 anos, na sua região, na herdade de Belmeque (Vale de Vargo, Serpa). Sente que, tal como escreveu Alberto Caeiro, vê desde a sua aldeia “quanto da terra se pode ver no Universo”?
Depois de uma vida muito intensa pensei: “O que é que eu fico em Lisboa a fazer? A passear o cão à tarde, a almoçar à terça-feira com um grupo de amigos e à quinta com outro? Vai ser isto a minha reforma?”. Não me agradou. A Lisboa vou, de vez em quando, quando me apetece, visitar esses amigos e a família. Já não tenho razões para não estar aqui, onde, fundamentalmente, me sinto bem. Estou em casa.