Diário do Alentejo

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13 de julho 2024 - 08:00
Madalena Palma sublinha a ilusão com que muitos dos imigrantes que chegam à região são confrontados

O Plano de Ação para as Migrações aprovado em Conselho de Ministros é o mote que dá corpo à entrevista com Madalena Palma, diretora-geral da Estar, associação de cariz social, com sede em Beja, que estende o seu raio de ação por todo o distrito e que tem como missão “dar uma resposta imediata e desburocratizada a situações de emergência”.

 

Texto  José Serrano Fotos Ricardo Zambujo

 

Foi aprovado no início de junho, pelo Governo, o Plano de Ação para as Migrações, “que visa corrigir os graves problemas nas regras de entrada em Portugal, resolver a incapacidade operacional da AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo e assegurar a operacionalidade dos sistemas de controlo das fronteiras”. De forma geral, qual é a opinião da Estar sobre este plano?

Estamos muito reticentes. Porque há vários “tipos” de imigrantes. Os que vêm à procura de melhores condições de vida para si e para a sua família. Os que apenas querem obter a documentação e depois partir para outros países, porque Portugal é o “paraíso da documentação” e a porta de entrada para a Europa. Os que beneficiam de estatuto de refugiado. Os que chegam num barco carregado de haxixe, com a ideia de, por cá, o traficar. E para todas estas camadas tem de haver ações diferentes. Não é com um plano generalizado, de 41 medidas, que se vai resolver este problema.

 

Na região de Beja temos uma representação de todos eles?

Temos a representação de todos eles, sim.

 

De entre as várias tipologias que elencou, quais as que maioritariamente recorrem aos serviços da Estar?

Nós somos a entidade que dá apoio aos imigrantes que estão completamente fora do sistema. Os que vêm de forma ilegal, os que têm consumos, os que não têm qualquer hipótese de serem integrados a nível profissional, a nível de saúde. E nós conhecemos muito bem a forma como eles vêm – as redes traficantes… E para estas pessoas este plano não protege absolutamente nada.

 

O documento revogou a autorização de residência assente em manifestações de interesse, estando agora a celebração de contratos de trabalho com trabalhadores não pertencentes à União Europeia dependente da obtenção de um visto consular. Que consequências trará esta medida?

O que se tenta fazer com a quebra das manifestações de interesse, para que a pessoa chegue aqui com um contrato de trabalho, direcionada para um sítio onde vai trabalhar, é uma ilusão. As filas de espera que nós vemos agora na AIMA, vamos começar a vê-las nos consulados, onde as empresas que lucram com o mercado ilegal da imigração, com a escravidão da imigração, vão estar à porta, angariando estas pessoas com contratos de trabalho que não existem.

 

As redes de tráfico vão-se movimentar, é isso?

Então, se a gente tem conhecimento, diariamente, de documentos falsos que validavam as manifestações de interesse, feitos da manhã para a tarde, não se fazia agora um contrato de trabalho para uma empresa que não existe? Ou não se criava uma empresa só com esse propósito? Tudo isto foi muito rápido, não se acautelou.

 

Considera, então, que as medidas anunciadas deveriam ter sido mais ponderadas?

O Governo tomou posse [a 2 de abril] e passado pouquíssimo tempo aprovaram-se estas medidas [dia 3 de junho]. E não se ouviram as instituições de trabalho social que estão no terreno. Isto é gravíssimo, gravíssimo.

 

Caso a Estar tivesse sido ouvida, neste processo, que medidas aconselharia serem tomadas, tendo em conta a problemática, aqui, na região?

Devíamos ter uma AIMA a funcionar aqui em Beja a 100 por cento, com técnicos que conseguissem dar resposta à legalização das pessoas. Vou dar um exemplo desta falta de eficácia: nós temos alojado, no apartamento da Estar, um casal de refugiados da Costa do Marfim, que chegou aqui – sem nada, nem passaporte tem – vindo do campo de refugiados de Lampedusa, em Itália. Mesmo com o estatuto de refugiados, em que é suposto tudo ser mais acelerado, estão desde outubro à espera de documentos, sem os quais não podem trabalhar… Os serviços têm de começar a funcionar. Se não têm pessoal, têm de meter pessoal.

 

O que me está a dizer é que há dificuldades em articular soluções com a AIMA?

Completamente. Aqui, em Beja, “é para esquecer”, nós nunca conseguimos falar aqui com ninguém. Nunca, nunca. O problema de pessoas que não estão a conseguir legalizar-se é tão grande… e não se investe em recursos humanos para o resolver. Também não se investe, e seria muito importante fazê-lo, em ações de sensibilização nos países de origem da imigração, para se mostrar que Portugal não é aquilo que as empresas de trabalho temporário e a rede de traficantes vendem.

 

E quem deverá desenvolver essas ações de sensibilização?

Tem de ser um trabalho dos consulados, que têm de promover Portugal de forma correta. Isto que se fez com Timor, por exemplo… O presidente da República disse: “Venham para Portugal” e no dia a seguir criaram-se agências de viagem, com o pacote completo. Pacote completo a dizer: “Vais conhecer um país maravilhoso, com trabalho durante todo o ano, com direito a habitação. Pagas x e tens direito a isto tudo”. E as pessoas vieram – sobretudo os mais novos, dos 17 aos 40 anos, por aí –, com a família a empenhar-se para lhes poder dar, pensavam eles, melhores condições de vida…

 

E a realidade é muito diferente do que lhes foi prometido…

Eles chegaram aqui e perceberam que pagaram por uma ilusão. Que não têm nada, que não conseguem cumprir o pagamento da dívida à família. Ficam só com a angústia da distância, de não poderem voltar, e com a saudade da família, principalmente, da mãe. Foram completamente explorados. Foi com os timorenses que nós assistimos aos casos mais dramáticos de fome.

 

Em Beja?

A Unidade Anti Tráfico de Pessoas, do SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], e a Segurança Social, procederam, em julho de 2022, a uma ação concertada na Cabeça Gorda [aldeia do concelho], relacionada com uma rede de tráfico humano. Ligaram-nos do local, perguntando se nós podíamos ir ter com eles, levar-lhes alimentação. Enchemos a carrinha com comida e fomos para lá, para a casa alvo de buscas. Nós não tínhamos noção do que é que íamos encontrar... Eu não sei há quantos dias é que aquelas pessoas não tinham uma refeição. Os miúdos jogados à comida, agarrados às nossas pernas a agradecer. Uma coisa...

 

Quer isto dizer que não há emprego para todos aqueles que chegam à região?

Claro que não. Quem diz isso está fora da realidade. As pessoas não têm noção. Aliás, tal como todos os políticos, da esquerda à direita. A falta de noção da realidade é muito generalizada.

 

Considera que a exploração humana está só a montante, nos países de origem dos imigrantes que se encontram em Beja ou também aqui se verificam situações dúbias de consciência social?

A agricultura só cresce com os imigrantes. As grandes herdades agrícolas só compram hectares e mais hectares de terra com a garantia de que vão ter imigrantes a trabalhar. Não interessa em que condições é que aquelas pessoas vêm, em que condições é que vão viver, o que interessa são as horas de trabalho que vão fazer nas herdades. O grande empregador sabe, o proprietário e o empresário agrícola sabem a miserabilidade em que as pessoas vivem. Não se pode “lavar as mãos” e não querer saber, [com o argumento]: “Eu contratei uma empresa de trabalho temporário, que me põe aqui 400 pessoas amanhã a trabalhar, paguei à empresa e o resto não interessa”. Mas tem de interessar, tem de interessar. Existe consciência, mas as pessoas dormem tranquilas na sua almofada. Isto está ao contrário, não é assim que se devia crescer. Nós temos situações dramáticas de trabalhadores que chegaram a nós com chicotadas nas costas, vindos de campos agrícolas, em Beja.

 

O que me está a dizer é que existem episódios de escravatura nos campos agrícolas de Beja?

Conheço imensas pessoas que trabalham na agricultura, até mesmo encarregados, que largaram os postos de trabalho porque não conseguiam assistir àquilo que viam. Isto é a escravidão aos olhos de todos. Não falamos nos barcos negreiros, isto é aos olhos de todos. E é tão triste isto acontecer.

 

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A Estar denuncia essas situações?

Nós denunciamos tudo. Temos uma relação muito próxima com as entidades. Já a tínhamos, anteriormente, com os inspetores do SEF e mantemo-la com a PSP. Eu chego a dizer à polícia: “Se me acontecer alguma coisa, foi esta determinada pessoa”. Quando fazemos ações, a gente diz onde vai. Fazemos tudo às claras e com testemunhas. Eu e uma colega já chegámos a confrontar o dono de uma loja, português, nascido e criado em Beja, sobre as condições em que viviam as pessoas que estavam em casas que ele arrendava. Como é que é permitido… nós fazemos o trabalho que outras instituições deviam fazer.

 

Está-se a referir a que instituições?

Às Finanças, à Camara Municipal [de Beja], às responsáveis pela saúde pública.

 

Dever-se-ia proceder a ações de fiscalização de habitabilidade, é isso que está a dizer?

Sim. Depois queixam-se de que os imigrantes estão todos na praça da República, em Beja. Ainda não se percebeu porquê? A pensão Coelho está sem quaisquer condições, com dezenas de imigrantes lá dentro, que não são todos os dias os mesmos, é volante. Aqueles imigrantes pagam a uma pessoa, que está a enriquecer todos os dias milhares de euros, com aquela pensão e com outra habitação que também lhe pertence. É urgente que essa fiscalização seja feita, porque, caso contrário, vai haver um acidente grave lá dentro. Não faço ideia por que é que essa fiscalização não é feita. E há mais a fazer…

 

Que outras fiscalizações sugere?

Tem de haver uma fiscalização rígida às empresas de trabalho temporário e de prestação de serviços. Com mais técnicos, com mais pessoas no terreno. Tem de haver mais fiscalização nas ruas – se a pessoa não tiver documentos tem de ser encaminhada ao consulado para resolver a situação. Como se faz em qualquer país da Europa, exceto em Portugal. Caso contrário, não vamos a lado nenhum…

 

Por que é que tem essa convicção de um desastre iminente na pensão Coelho?

Eu estive lá, há cerca de dois anos, com inspetores do SEF, para tentar perceber o que é que lá se passava, pois, supostamente, alguns imigrantes tinham ocupado o edifício. Eu ia a caminhar, no primeiro andar, e o chão de madeira a ruir. Eu nem quero imaginar como é que aquilo está agora. Dá-se ali uma tragédia, em plena praça da República. Pode haver um incêndio, uma pessoa cair, o teto desabar, há garrafas de gás lá dentro, há uma puxada de eletricidade. Pode acontecer de tudo. Está aos olhos de todos. E podíamos falar também do esquema da “cama quente”…

 

“Cama quente”…?

É algo que acontece no País inteiro. Paga-se uma cama por metade do dia. Uma pessoa tem direito a uma cama durante 12 horas e uma outra tem direito a estar na mesma cama durante as outras 12. Enquanto uns estão a dormir, outros estão cá fora, na rua, à espera do seu turno. Isto acontece em Beja, muito próximo da praça da República, na “rua dos caixões” [rua da Cadeia Velha]. Nós fazemos essas denúncias, arranjamos inimigos todos os dias, mas vivemos muito bem com isso, porque as pessoas estão, para nós, em primeiro lugar, seja em que circunstância for. Por isso é que estamos sempre disponíveis para falar, para sensibilizar, como forma, também, de as pessoas terem um bocadinho mais de empatia para com os desgraçados que andam aí, porque tem de se perceber como é que a pessoa chega àquele extremo. Nós fazemos essas denúncias, mas depois…

 

Não há consequências?

…Foram soltos, recentemente, dois rapazes que estavam presos por terem cometido uma série de assaltos. Não têm documentação e têm consumos. Não há qualquer hipótese de se reabilitarem, porque eles não querem ir para estruturas de desintoxicação. O juiz teve na mão a decisão de os mandar para o país de origem. Libertou-os sem os encaminhar para a reinserção, para uma instituição, para um centro de alojamento, para lado algum, sabendo que eles iam para a rua. O que vai acontecer é que vão, obviamente, cometer mais crimes e vão outra vez “dentro”.

 

Falou de consumos…

Os imigrantes que nós vemos em situação de sem-abrigo, com consumos de álcool, com consumos de droga, chegaram-nos a Portugal, aqui a Beja… não digo “impecáveis” – porque todos eles vêm numa situação de vulnerabilidade grande –, mas não vinham como se encontram agora. Mesmo que tivessem algumas adições não eram de grande dependência. Nunca com a dimensão que existe depois, aqui.

 

Qual a causa para que essa dependência aqui se alicerce?

A maior parte das pessoas, que pagou para vir para Portugal, chega com a esperança de ter um trabalho, uma casa. Quando cá chegam, a primeira situação com que se deparam é que não têm qualquer estrutura de ligação. Ou seja, o contacto telefónico – “quando chegares a Portugal ligas para este número” – nunca funciona. Vêm do Paquistão, da Índia, do Bangladesh… e de um momento para o outro ficam desamparados. Não conhecem ninguém, não têm trabalho, não têm casa, não têm nada. Isto acontece muito. E não estamos a falar de pessoas de 40 anos. Há meninos de 17 anos que chegam nestas condições. E é o desespero. Encontram alguém da sua nacionalidade que lhes diz: “Toma lá cinco gramas de haxixe, vai vender e já ficas com dinheiro para comida”… E depois “snifam” cola, a droga “da moda”, barata e facilmente acessível, aquilo vai direto ao cérebro… estas pessoas são cada vez mais e vão continuar a ser cada vez mais.

 

Não augura nada de bom…

Se há coisa que nós fazemos bem é prever o futuro. Sabemos como é que vai ser o inverno em Beja e não estou a falar da meteorologia. Falo, sim, da quantidade de pessoas que vai estar [a dormir] na rua, porque as campanhas agrícolas precisam, cada vez mais, de menos pessoas e as pessoas continuam a chegar à região. Os sem-abrigo que estão na zona central da cidade, a exemplo do largo do Carmo, são os mais visíveis, mas garanto que, neste momento, são cerca de 90, em toda a cidade.

 

O número de pessoas que a Estar recebe, diariamente, ajuda-vos nessa previsão?

Desde o início desta entrevista, já entraram, aqui, nas instalações da Estar, sete caras novas. É isto o dia todo, todos os dias. Recebemos, agora, em média, 20, 30 imigrantes, quotidianamente. Muitas vezes quando aqui chegamos, às nove da manhã, já estão pessoas à espera, à porta com os tróleis. Ultimamente temos registado a vinda de muitas mulheres, com crianças, bebés ao colo, sobretudo, da Guiné-Bissau.

 

Do que vêm aqui, fundamentalmente, à procura?

Vêm pedir ajuda. Alimentação, emprego, casa. Orientação… A gente precisa de imigrantes e de os saber acolher. Mas acolher não é só abrir-lhes as portas. É dar-lhes a garantia que têm trabalho, habitação, saúde. Direitos e deveres. É dar-lhes a garantia que encontram aqui dignidade.

 

Por entre as estórias de miserabilidade existirão também alguns casos de sucesso…

Nós fazemos uma formação super intensiva, várias semanas antes de tentar integrar a pessoa profissionalmente. E temos casos de sucesso. Ainda há pouco tempo conseguimos arranjar trabalho, com alojamento, a três pessoas que saíram da obra da Cruz Vermelha [antigo edifício da Refer]. Estabilizaram a vida e estão a servir à mesa e a ajudar na cozinha, numa herdade de turismo rural, muito conhecida, ao pé de Beja. Encontram-se agora completamente integrados. Casos de sucesso temos alguns, mas, infelizmente, não é a maior parte. O número é menor, mas é emocionalmente muito importante. É a isto que a gente se agarra. Se não conseguíssemos estas vitórias já tínhamos fechado a porta.

 

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Falta de financiamento coloca em risco continuação da Associação Estar

 

Referiu em fevereiro passado, ao nosso jornal, que a não aprovação da candidatura aos financiamentos europeus podia determinar o encerramento da Estar. Como é que está a situação?

Tivemos, recentemente, a resposta de que não temos financiamento. A candidatura veio reprovada. Não sabemos o dia de amanhã. Recebemos, em junho, um balão de oxigénio, ao vencermos o prémio “Dia CA Mais Sustentável”. Para nós foi uma coisa extraordinária, mas são 10 mil euros, que para a máquina que nós temos significam três meses. E nós temos muito para fazer, é muito necessária a nossa existência.

 

E, agora, existe um “plano B”?

Temos de dar um passo atrás, mudar a nossa sede, ir para um espaço mais pequeno. A renda foi, agora, aumentada – são 900 euros todos os meses, que nós não temos. Nós recebemos da câmara 500 euros que nos apoia com a loja social (mas é irrisório o dinheiro que nós fazemos ali).

 

O que significaria para Beja o encerrar das portas da Estar?

Nós fazemos um trabalho invisível que, faltando, se vai fazer sentir muito. Somos a estrutura que dá apoio a todas as entidades de emergência. Temos pedidos de ajuda, todos os dias, da Câmara de Beja, da Segurança Social, da Cáritas, de todo o lado. Somos a rede de suporte das pessoas que não têm qualquer tipo de apoio. E não falo só de imigrantes. Nós temos muitas famílias, nascidas aqui, a quem damos apoio. Esperamos, assim, que a medida inscrita no Plano de Ação para as Migrações, definida como “reforçar o apoio financeiro às associações de imigrantes e da sociedade civil que operam no setor”, se venha a efetivar. Porque se formos obrigados a fechar será um grande rombo para a comunidade.

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