“Sorte e fé, de mão dada uma com a outra”
Tal como José Carvoeiras, também a 12 de abril de 1969, mas no “Niassa”, embarcou Vital Guerreiro rumo a Moçambique. Hoje, com 77 anos, recorda esses tempos, uma experiência quase rara, quando comparada com tantos outros camaradas de armas. Assentou praça em 1968, em Lagos, seguiu para o Porto, para Infantaria, e tirou a especialidade de Condutor. Depois, Viana do Castelo, para fazer a IAO. Quando recebeu a notícia da mobilização, confessa que não o impactou muito. “Quando eles deram a notícia, a gente já não se preocupava. Porque antes disso deram-me uma injeção dessas de cavalo, que um gajo perde a cabeça. Aquilo mexia com um gajo, que já não via, nem se preocupava com coisa alguma. Vais para a guerra? Vamos embora! Estava pronto para tudo. Custou-me mais antes de ir para a tropa, porque a malta que tinha vindo de lá e dizia o que fazia, o que acontecia, morria assim, morria assado. Aí custou-me mais do que custou nessa altura, porque a gente fica tão concentrado, ou seja, fica tão parvos que dizemos: vamos embora, vai”. E foi.
Quando chega a Moçambique desembarca em Lourenço Marques. Levaram “vinte e tal dias” por terra rumo a Vila Cabral [atual Lichinga, capital da província de Niassa], a cerca de 2300 quilómetros. Em Vila Cabral estiveram dois dias e, daí, seguiram para Maniamba, a 80 quilómetros, direito ao quartel onde havia de ficar estacionado. E é aqui que começa a sorte de Vital Guerreiro e dos seus camaradas. “A minha experiência foi boa e má. Má, porque logo quando íamos na viagem tivemos a infelicidade de um rapaz que caiu de cima de uma Mercedes e passaram-lhe os dois rodados por cima. Essa foi a primeira. Um condutor. E depois tivemos que ficar lá nessa noite... Era para chegar, por exemplo, na noite de hoje, e nessa noite o quartel foi atacado. E a gente não estava lá. Estavam a contar que a gente chegasse lá. Se não fosse aquela infelicidade, a gente chegava nessa noite”.
Esse foi o primeiro sinal de que a sorte, em tempos de guerra, estava do lado de Vital Guerreiro. O que se veio a verificar ao longo da totalidade da sua comissão. “Para mim, foi guerra de arame farpado. E tive sorte, também, no sítio onde fiquei”. Ficou encarregado por conduzir um Unimog 411, fazer a limpeza e levar os géneros [alimentícios] para o quartel, que estavam a umas centenas de metros. “Esse carro nunca saía para patrulhas. Porque é um carro que leva quatro pessoas. Nunca dá para fazer uma patrulha. (…) Depois eu era carpinteiro [trabalhava na construção civil quando foi chamado para o serviço militar]. Qualquer coisinha que era preciso, lá ia eu. Por um lado, tinha de ir buscar os géneros, por outro, tinha de fazer aquelas coisinhas todas”. Mais um sinal de sorte.
Vital Guerreiro conta que nunca ouviu um tiro dado por um guerrilheiro inimigo. E que o momento mais complicado, mais assustador, que viveu nem sequer foi causado por alguém. “Apanhar mais medo, foi só uma vez, que estava de serviço. Raramente fazia serviço. Mas quando os pelotões saíam, o quartel ficava diminuído. E tínhamos de fazer sentinela. (…) O meu turno foi das quatro às seis de manhã, a hora mais perigosa que a gente tinha. Os outros foram-se embora e fiquei sozinho. Vejo passar um bicho. Não dei alarme, porque aquilo passou tão de repente que eu disse: ‘Uma pessoa a correr não corre tão depressa’. E depois um gajo pensa tanta coisa. Pus-me ali ao pé da metralhadora: ‘Se houver alguma coisa, tenho de disparar’. Ela estava preparada, era só chegar e puxar o gatilho. Mas passou, até às 6 de manhã. (…) Foi um medo muito grande. Não cheguei a saber o que era. Havia ali bicheza por todo o lado. Mas não tive assim mais problemas”. Mais uma vez, mesmo no momento de maior susto, a sorte esteve a seu lado. “Sorte e fé, de mão dada uma com a outra”. Regressou a 10 de junho de 1971.
Uma guerra sem sentido
Entre tantas coisas que unem e distinguem João Sousa, José Carvoeiras e Vital Guerreiro na guerra do Ultramar, se há um ponto em comum é o propósito da guerra e em como este nunca fez sentido.
Diz João Sousa, mais de 50 anos depois: “Não fazia sentido. Até porque a gente… Aquilo, às vezes, um gajo nem os via, eles faziam fogo contra a gente, e a gente fazia fogo contra eles. Só quando se fazia, depois, o reconhecimento: ‘Olha, morreram mais dois ou três”. Aí é que íamos dar com os corpos”. A custo, lá diz: “Sentia-me... Para me matarem a mim, matem outro. Queríamos salvar-nos, sobreviver”.
José Carvoeiras é ainda mais veemente quanto ao despropósito da guerra: “Aquela sensação de que a gente chega lá e ao fim de três dias de lá estar a gente diz assim: ‘Porra, esta porcaria é deles, não é minha. A gente não tem nada a ver com isto’. Estivemos lá 400 anos nem sequer o português lhes ensinámos. Era nosso? Era nosso? Aquilo era deles! E a gente tinha a sensação... A gente não estava lá para defender aquilo, a gente estava lá para se defender a nós. A gente sabia que aquilo, mais dia menos dia, não tinha outra saída que era eles tomarem conta daquilo e a gente abandonar e virmos embora. E quanto mais tarde fosse, pior era”. E desenvolve: “A gente vai daqui, somos imbuídos ali de uma situação em que temos de defender aquilo, nós estamos a ser atacados, temos que defender aquilo porque aquilo é nosso. E um gajo vai, que aquilo é uma data de bandidos, de malandros, que não querem trabalhar... Um gajo chega lá ao fim de três dias ou quatro dias e começa-se a relacionar com as pessoas e começa a ver que não. A gente não consegue dizer àquelas pessoas que aquilo era nosso, eles sabiam que aquilo era deles. (…) Não havia necessidade nenhuma de se fazer uma guerra naqueles moldes!”.
Vital Guerreiro também partilha a mesma ideia: “Depois de lá estarmos, começamos a ver que aquilo era uma guerra de negócios. Porque todos queriam apanhar o que lá estava, o ouro, a minério e essa porcaria toda. Mas, todos é todos. Porque as guerras são todas de negócios. Fazer sentido, não fazia. Estávamos lá obrigados. Tínhamos de lá estar aquele tempo”.
As marcas que ficaram
A maioria dos ex-combatentes veio marcada, de forma permanente, do Ultramar, independentemente do teatro de operações. Fosse por aquilo que ficou enterrado na pele, fosse pelo que ficou enterrado na memória.
João Sousa refere hoje, olhando para esses anos, que deixou um pedaço de si em Moçambique. De forma algo contida, diz: “Vim mais homem do que quando fui. A gente tem, como costumamos dizer, a experiência... Pelas coisas que passamos, vamos adquirindo uma certa experiência, não é? Eu e os meus colegas viemos mais homens, mais... Um bocadinho mais tarimbados do que quando fomos para lá”. E com o sobressalto e a excitação e os pesadelos que o fazem acordar, ainda hoje, a meio da noite, mais de 50 anos depois.
Por outro lado, Vital Guerreiro é perentório e telegráfico sobre as marcas da guerra: “Aquilo não me marcou porque não saí do quartel, praticamente. Sempre fui um homem de sorte”.
“O Zé Carvoeiras que foi não foi o Zé Carvoeiras que veio…”, assim afirma o próprio. E continua, em tom de torrente que lhe sai do peito e da memória: “A gente nunca mais é o mesmo. (…) Vim mais... mais amargurado! (…) Quando estou acordado são os [momentos] bons [que pesam mais]”. Quanto aos momentos traumáticos, de horror, que lá viveu, é à noite, sobretudo, à noite, que regressam. “Essas imagens, de vez em quando, a gente, de noite, está a vivê-las. Eu tive uma altura… Até aqui na própria Liga [dos Combatentes] e nas consultas que havia aí, porque eu me via um bocado desorientado. Foi um bocado duro. (…) O que é certo é que foram momentos ótimos em termos de camaradagem... Amizades que se criam, que ainda hoje existem... Mas houve muita coisa má...”.