Maria José Vaz62 anosCabeça Gorda (Beja)
Texto | Nélia PedrosaFoto | Ricardo Zambujo
De olhos postos no chão, com as mãos atrás das costas segurando um escarafuncho, Rodrigo Picado avança vagarosamente por entre tojos e estevas, procurando um dos recursos silvestres mais conhecidos, colhidos e consumidos na região entre os inícios de fevereiro e meados de março, a silarca, de seu nome científico Amanita ponderosa. A acompanhá-lo nesta demanda vai a avó, de cesto de verga no braço – “para as sementes irem caindo na terra” – e a quem caberá, mais tarde, transformar o produto da recolha numa açorda de silarcas, uma das iguarias que Maria José Vaz irá confecionar durante mais uma edição do Festival do Cogumelo, que decorrerá entre os dias 7 e 9 de março, na aldeia de Cabeça Gorda, numa organização da junta de freguesia local.
Ainda que a chuva que tem caído durante este inverno tenha ajudado à proliferação de silarcas, que a extensão do Parque Biológico da Cabeça Gorda seja vasta – cerca de 325 hectares, em que sobressaem como espécies dominantes o sobreiro e o eucalipto – e que o jovem de 24 anos tenha já larga experiência na arte da apanha deste recurso silvestre, que lhe foi transmitida pelo avô e pelo pai ainda em criança, não é tarefa que se afigure fácil. E a razão é simples: cada vez são mais os que se dedicam a apanhar cogumelos, quer para consumo próprio, quer para venda, justifica Rodrigo. Para o parque biológico “vem toda a gente”, reforça.
Ao fim de uma meia hora, Rodrigo lá descobre um pequeno alto no solo, gretado. Por baixo, praticamente enterrado, surge um cogumelo ainda em desenvolvimento, em forma de “batata”. O jovem afasta a terra que rodeia o fungo e com o escarafuncho estrategicamente inclinado, enterrando-o à profundidade de cerca de “um palmo”, retira o cogumelo do solo sem o danificar. Ao raspar “a cabeça, fica meio arrosada, tem o ‘saco’ a envolver o pé, cheira a terra, portanto, é uma silarca”, assegura. Uns metros mais à frente, quase despercebido, encontra-se um outro cogumelo, já mais desenvolvido, com um “chapéu” de cor branca repleto de “pequenas lâminas visíveis”. Mais um sinal de que se trata de uma silarca, afirma Rodrigo. Em caso de dúvida – porque há espécies não comestíveis e até mortais – o melhor é não arriscar, adverte, revelando que a apanha de cogumelos se tornou “um vício”.
Já na pequena cozinha semi-industrial do Centro de Convício da Cabeça Corda, gerido pela junta de freguesia, Maria José, cozinheira na Base Aérea de Beja, dá início à preparação da açorda de silarcas, prato da sua autoria e que segue os preceitos de uma simples açorda alentejana. “Desde que viemos para o Festival da Silarca, cada um foi inventando as suas receitas. E como as pessoas foram gostando, a gente nunca foi deixando de cozinhar”, conta. Começa, então, por remover a pele das silarcas, que, preferencialmente, não deverão ser lavadas, somente em caso de extrema necessidade, “porque já têm muita água”. Em seguida, corta-as, aos cubos ou às rodelas, conforme se trate de cogumelos em forma de “batata” ou com “chapéu”.
À semelhança da açorda de silarcas, também a esmagadora maioria das propostas que constam das ementas apresentadas no Festival do Cogumelo, do ensopado de borrego à pastora com silarcas à cachola frita com silarcas, passando ainda pelas migas com este recurso silvestre, são criações modernas, mais elaboradas, sublinha Maria José, relembrando que no tempo dos seus pais e avós comiam-se “silarcas com ovos, assadas com uma pedra de sal ou com feijão feito na panela de barro”, pratos pelos quais ainda hoje revela preferência, pela sua simplicidade, pelo facto de o sabor, intenso, sobressair, não sendo “mascarado” por outros ingredientes.
A cozinheira passa agora à feitura do “piso” típico de uma açorda. Coentros, poejos, um dente de alho, uma tira de pimento verde e uma pitada de sal. Tudo “muito bem pisadinho”. E enquanto o forte aroma das ervas invade a pequena cozinha e se aguarda pela fervura da água onde serão escalfados os ovos, Maria José aproveita para cortar o pão, com, pelo menos, dois dias – “quanto mais duro estiver melhor fica” –, em fatias “fininhas e pequenas”. Os ovos são agora partidos, um a um, e colocados na panela, no máximo de três em simultâneo. Quando “vierem ao de cima estão prontos”, avisa a cozinheira, frisando que a gema “ainda deve estar mole”. Escalfados os ovos, fritam-se as silarcas em azeite e alho laminado, a que se junta depois uma pedra de sal e alguns poejos. Cozinham até obterem uma cor “acastanhada”, mas o ponto de fritura dependerá do gosto de cada um. “Há pessoas que gostam delas mais fritas, outras que gostam menos. Há pessoas que gostam de juntar as silarcas no caldo da açorda, outras que gostam de as colocar numa travessa e vão tirando consoante querem”, realça Maria José.
Por fim, a panela onde foram escalfados os ovos volta ao lume, agora para ferver a água que será vertida por cima dos ovos, das silarcas e da pasta de coentros, poejos e alho, já na terrina de louça, pronta a ir para a mesa. “Mexemos devagar, por causa dos ovos, e provamos de sal”, conclui.