A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria e o Arquivo Digital do Cante Alentejano contactaram, em três dias, com 10 grupos corais de sete concelhos do Baixo Alentejo, gravando em vídeo 43 modas, interpretadas por 171 cantadores. Uma iniciativa que adiciona novos registos documentais à história do cante alentejano.
Texto | José SerranoFotos | Ricardo Zambujo
O relógio marca as duas horas. Em Neves, freguesia de Beja, a cinco quilómetros da cidade, vive-se a calmaria típica de uma tarde dominical de uma aldeia baixo-alentejana, ainda mais sublinhada por ser o último domingo do calendário venatório deste ano e por, não muito longe, estar a ser disputado o Baja TT Montes Alentejanos. Houve quem fosse despedir-se da caça e quem fosse ver os carros de rally.
Na praça principal três velhos conversam, sentados no banco corrido da paragem dos autocarros sem destes estarem à espera. No jardim junto à escola, crianças, no seu costumeiro burburinho de liberdade, jogam à bola. As primeiras andorinhas trazem aos céus o seu inconfundível chilrear esvoaçante em voos acrobáticos impossíveis. Um cão pequeno ladra, no mesmo tom do seu tamanho, à motorizada que passa com vagar no motor.
Junto ao parque da aldeia, perto das hortas que dividem o casario do campo, um homem de chapéu preto de aba larga posto, com indumentária de antigo trabalhador rural, cumprimenta um seu congénere. Outros se lhes aproximam. Meia hora passada são agora 18 os homens que vistoriam, detalhadamente, os pormenores dos seus trajes etnográficos, compondo a larga e comprida cinta preta que se lhes enrola à cintura, afivelando os safões, dobrando com preceito as mantas que transportam ao ombro. Todos pertencem ao Grupo de Cantadores de Nossa Senhora das Neves. Aqui se encontram, como combinado, com Florêncio Cacete, coordenador do Arquivo Digital do Cante Alentejano, e Tiago Pereira, mentor e diretor do projeto de recolha de património musical nacional A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Desde há três dias, que os responsáveis por estas iniciativas palmilham sete concelhos do Baixo Alentejo. Chegarão ao fim deste domingo que vos relatamos, dia 16, com a gravação de 43 modas, interpretadas por 171 cantadores de 10 grupos corais alentejanos. Um trabalho que assenta, fundamentalmente, no registo videográfico de corais ligados a este património cultural, bem como na demanda de se encontrarem “novos tesouros”, que são, como diz Tiago Pereira, modas do cancioneiro popular alentejano, seculares ou contemporâneas, que nunca tenham sido, até agora, registadas. “O que importa, em primeiro lugar, é gravar o maior número de grupos, tendo sempre em atenção o reportório, pois dantes as pessoas aprendiam na taberna a cantar e hoje em dia aprendem no YouTube, com repetições eternas das mesmas modas”. O que poderá significar, frisa, que as mais complexas correm “o risco de se perder”, uma vez que implicam uma outra maneira de serem aprendidas. “Uma coisa é cantar-se de forma orgânica, cantar com o ‘outro’, outra coisa é cantar por imitação, que é o que se faz na Internet”. Desta forma, “com esta história da globalização e do digital”, o realizador diz ser imprescindível identificar as modas características “que, num determinado lugar, sempre foram cantadas”, referindo as circunstâncias das suas proveniências. “É muito forte esta coisa de percebermos os contextos, de onde é que vêm as cantigas. Essa pergunta tem de se fazer”.
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Se ouvires assobiar/não julgues que é caçador/anda agora muito em moda/assobiar ao amor O grupo de cantadores perfila-se agora em fila indiana, andando pelo carreiro que conduz até às proximidades da isolada e fotogénica azinheira, situada no meio do campo inclinado, “habituada” a estas andanças de ser adorno fotográfico dos grupos corais, feminino e masculino, da aldeia. Colocados estrategicamente os microfones, nas laterais da formação, marcando a posição da câmara de filmar a simetria dos cantadores, Tiago Pereira dá luz verde ao grupo para iniciar a primeira moda, de cinco que irão cantar. “Quem dá o tom sou eu”, sublinha Francisco Torrão, soprando o mestre, no lamiré, a terceira nota da escala musical aos seus cantadores – “o pessoal tá todo engripado, não conseguimos ir ao ré, vamos pró mi”. Concentração. Entra o ponto, arremata a cantiga o alto antecedendo a unissonância do grupo. Ouvir-se-á agora, pela pujança grave das vozes, “Santo Antoninho da Serra” em toda a aldeia, chegando os versos cantados, com certeza, aos senhores da paragem de autocarro, aos miúdos da jogatana, aos ouvidos dos pássaros… “Esta nunca a tinha escutado, nunca a tinha gravado”, diz Tiago Pereira, visivelmente satisfeito por mais uma inédita descoberta musical.
No total, são 25 as modas que neste périplo foram gravadas pela primeira vez, juntando-se o quarteirão às outras mais de 300, gravadas ao longo dos últimos 15 anos, pertencentes ao espólio do projeto, cantadas por 120 grupos corais no Alentejo, na diáspora e no estrangeiro. “Interessa-nos continuar a gravar modas diferentes, porque é preciso mostrar o património poético”, progressivo, diz, existente no cancioneiro do Alentejo, “transformando-se aqui muito mais do que nas cantigas dos outros sítios”, de acordo com vários fatores. Desde a necessidade laboral de se sair da região “para se trabalhar na margem sul do Tejo, quando os homens foram construir as grandes vias e a ponte 25 de Abril”, trocando-se os trabalhos rurais por os de construção civil, “à transformação da paisagem, com todas as repercussões que isso tem, em termos sociais e humanos – já há modas que falam dos olivais intensivos”. Nesse aspeto, “estão sempre a aparecer letras inéditas, que vão acompanhando os tempos, a nova realidade” – as cantigas e as modas têm permitido fazer, ao longo da história do cante, “um grande retrato sociológico” da região, sublinha Tiago Pereira.
Estes novos registos são também saudados por Florêncio Cacete, responsável por um projeto de arquivo que pretende estabelecer, desde uma antiguidade com quase um século de história até aos dias de hoje, uma “confiável” base de dados. “A nossa ideia é tentar resgatar tudo aquilo que seja arquivo físico dos grupos de cante – documentos, fotografias, cartazes – e, a partir daí, construirmos, ou reconstruirmos, a sua história”.
Recordando, de novo, a existência de formações criadas há perto de 100 anos, como é o caso do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, do Grupo Coral do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira de Aljustrel, do Rancho Coral e Etnográfico de Vila Nova de São Bento ou do Grupo Coral e Etnográfico Os Ceifeiros de Cuba, o exercício de preservação permitirá legitimar “muitas coisas que foram escritas” e, em outros casos, corrigir algo incorretamente estabelecido em arquivos de grupos corais, “por falta de fontes”. Um processo que pretende, assim, “reconstruir a memória e a verdade histórica” da evolução do cante ao longo dos tempos. “Temos, no Alentejo, grupos com muita história, e são principalmente esses que mais falta de documentação têm, porque havia o hábito do diretor, quando saía, levar os ‘papéis’ consigo, acabando alguns deles por se perderem. Alguns já os recuperámos e sabemos de outros que estão à nossa espera, para que os possamos digitalizar”.
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Santo Antoninho da Serra/onde foi fazer morada/lá no mais alto rochedo/atiras não matas nada Os cantadores continuam a entoar as suas vozes, pela tarde que se apresenta meteorologicamente incerta, ora nebulada ora soalheira, sob a atenta supervisão de Tiago Pereira, com o olhar fixo no ecrã da câmara de filmar, balançando para um lado e outro, timidamente, o corpo e a cabeça, ao ritmo da música a cappella que se escuta. Próximo dele está Florêncio Cacete, admirando, “pregado” ao chão e em absoluto silêncio, a atuação do grupo. O elo de ligação entre os projetos que estes dois homens representam consiste na construção mútua da história contemporânea do cante, através da partilha de informação. Se, por um lado, o Arquivo Digital do Cante Alentejano tem acesso “a vídeos de qualidade”, que podem ser exibidos, valorizando a apresentação do cante, “em conferências e colóquios”, por outro lado A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria usufrui do acesso à informação histórica fidedigna “disponibilizada no nosso acervo documental”, esclarece Florêncio Cacete, cujo projeto de arquivo conta com vários outros parceiros, “fundamentais”, a exemplo da Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo e da Universidade de Évora.
“Tratando-se de um processo evolutivo, há que ir escrevendo a história de cada um dos grupos e do cante ao longo dos tempos. Nessa perspetiva, aquilo que nós estamos a fazer com estes registos de vídeo é de alguma forma dizer que, ‘em 2025, o cante está assim’, com a existência de um determinado número de grupos, com os quais trabalhamos em arquivo digital todo o processo documental e arquivístico que lhe diz respeito”, elucida o responsável pelo Arquivo Digital do Cante Alentejano.
E sobre o momento atual do cante, Tiago Pereira discerne sobre a sua consolidação, perspetivando aquilo que pode ser a sua evolução. “O cante continua a ser superforte, a ser o retrato social daquilo que existe no território. Os elementos dos grupos estão cada vez mais velhos? Sim. Há cada vez menos jovens a regressar à terra depois de irem para a faculdade? Há. Mas continua a haver grupos corais e continua-se a cantar. Ainda ontem soube que há um cantador marroquino a integrar o Grupo Coral Os Cardadores da Sete. Até tem um caderno, que leva para os ensaios, em que tem escritas as modas em árabe. Eu acho que vamos ver cada vez mais essa realidade acontecer, porque, no futuro, haverá mais estrangeiros, que entretanto já vivem cá há 20 anos, que já falam português corretamente, até com sotaque, imagino eu, a integrar os grupos. E isso poderá dar ao cante outras variantes, porque essa massa humana poderá trazer novos melismas que têm a ver com outras lógicas, que vêm de outras orientalidades. Não sabemos…”.
Para além desta imaginável vindoura comunhão cultural internacional, o documentarista observa o encontro intergeracional que o cante, atualmente, proporciona. “Muitos grupos têm hoje o miúdo de oito anos e o velho de 83, a cantar juntos, coisa que há 10 anos não se via. Numa sociedade em que as pessoas não se ouvem umas às outras, em que se metem os velhos num lar e os miúdos na creche, estas gerações ouvem-se e unem-se no cante. E isto é extremamente importante”.Relativamente à capacidade do cante unir gerações, Florêncio Cacete conta um episódio por eles vivido poucas horas atrás. “Estávamos em Moura a almoçar numa taberna típica. De repente, de forma espontânea, começou-se a juntar gente – novos e velhos a cantar juntos. O cante tem esta riqueza, esta capacidade de juntar gerações, através da música, em redor de um sentimento de pertença ao Alentejo”, enfatiza, crendo que essa caraterística identitária que o cante apresenta será semelhante, agora e há um século.
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Uma “cola social”, como lhe chama Tiago Pereira, que provem do poder do cantar coletivo, diz. “Cantar em conjunto, só ‘porque sim’, num mundo em que cada vez mais só se canta nos palcos, é algo muito bonito, aglutinador, simples – porque no cante não precisas de mais nada para além da tua voz – e poderoso. Os cantadores, e quem os ouve, sentem esse poder”. Como mestre ensaiador e cantador, que reconhece, desde há muito, essa “poção mágica” que surge através do cantar coletivo, experienciada, para lá dos ensaios e atuações formais, em muitas tertúlias musicais e cantes ao balcão, entre amigos, Francisco Torrão considera muito importante este dia, pela inclusão do grupo que atualmente dirige nestes projetos de gravação e arquivo. “O cante é como um castelo, tem várias pedras e é preciso conservá-las a todas. A documentação atual, que ficará para as gerações vindouras, é vital para a preservação da história do cante e a inclusão do nosso grupo nestas iniciativas é mais um incentivo para nós, mais uma prova da importância do que estamos a fazer”.
O reconhecimento da importância do trabalho documental manifesta-se unânime junto dos grupos corais alentejanos, esclarece Tiago Pereira. “Somos sempre muito bem recebidos, tratam-nos com muito apreço. Porque os cantadores valorizam quem os valoriza e muitos grupos estão completamente perdidos, sedentos de alguém que os ouça. O Ministério da Cultura continua a não dar apoio ao cante alentejano quando ele é Património Cultural Imaterial da Humanidade e há 120 grupos no ativo… não se consegue compreender como é que todos os transportes têm que ser suportados pelas autarquias ou pelos próprios grupos… Mas a união entre os cantadores mantém-se e é essa união que faz com que o cante alentejano seja muito mais do que só cantar. É isso que faz isto tudo ser especial, porque em termos humanos é uma coisa muito forte. Como eles te recebem, como estão contigo, como se sentem agradecidos por alguém lhes dar atenção”.
O relógio marca agora as cinco horas. Um só velho, fumando um cigarro, permanece na paragem do autocarro. Perto da escola, a miudagem, em alarido, trocou a bola pelas bicicletas. As andorinhas continuam a sua função de perseguirem, habilidosamente, o seu alimento no ar. O minguado cão, à borda do passeio, olha para um lado e para outro, à espera de motorizadas para perseguir que não chegam.