Diário do Alentejo

Guiné

08 de fevereiro 2025 - 08:00
Cinquenta anos depois do 25 de Abril o “Diário do Alentejo” dá a conhecer as memórias de ex-combatentes no Ultramar

Integrado nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a Junta de Freguesia de Santiago Maior e São João Batista, em parceria com o Núcleo de Beja – Liga dos Combatentes, lançou em meados de outubro de 2024, nas redes sociais, o projeto “Memórias de Guerra”, que visa celebrar e valorizar o papel dos ex-combatentes da guerra do Ultramar. O projeto, que vai estar disponível até março próximo, apresenta 22 histórias de ex- -combatentes bejenses “que foram arrancados da sua cidade e das suas aldeias, obrigados a partir para os antigos territórios ultramarinos, sem saber em nome de quê ou quem, nem o que os esperava ou se algum dia voltariam a ver as suas famílias”. O “Diário do Alentejo”, ao longo de três edições (em janeiro, fevereiro e março), dará a conhecer alguns destes depoimentos. Nesta semana conversámos com António Monteiro, Manuel Paiva e José Saúde, combatentes na Guiné-Bissau.

 

Texto | José SerranoFotos | Ricardo Zambujo

 

“Iam todos para a guerra, coxos, aleijados, todos. Os que não serviam para combater serviam para apoio logístico, cozinhas, escritórios e coisas dessas, mas ia tudo. No meu tempo só cá ficavam aqueles que tinham grandes ‘padrinhos’, não se safava mais ninguém”. Quem o diz é António Monteiro, natural de Trindade (Beja), que chegou ao Regimento de Infantaria n.º 3 (atual RI1) de Beja em outubro de 1965 – “eu trabalhava no setor automóvel” – para cumprir o serviço militar obrigatório. Nessa altura, “o quartel de Beja já incorporava, a cada três meses, cerca de 1300 militares, vindos de todo o País. Fazia-se ali o treino operacional e ia-se tirar, a seguir, as especialidades a outros aquartelamentos. Tal como eu fiz”. Assim, depois de três meses no RI3, António Monteiro passou pelo quartel de Batalhão de Caçadores n.º 5, em Lisboa, “para tirar a especialidade de transmissões”, tendo seguido depois para o Centro de Instrução de Condução Auto n.º 3, em Elvas. “A minha especialização era em transmissões, mas com carta de condução, para poder andar com o veículo militar que tinha o rádio. Acabou por não servir de nada porque a Guiné é pequena e as distâncias são curtas e levava-se, geralmente, o rádio às costas. Só lá conduzi uma vez, cerca de 10 quilómetros, quando o condutor de um GMC [veículo de transporte e soldados] foi atacado por um enxame de abelhas e teve que ser transportado para uma enfermaria”, refere.

Para a Guiné, onde a luta armada do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (Paigc), liderado por Amílcar Cabral, contra a administração portuguesa, se iniciou em janeiro de 1963, António Monteiro embarcou, no dia 16 de novembro de 1966, a bordo do paquete Niassa, originalmente concebido para transporte de gado e, após a guerra do Ultramar eclodir, transformado em barco de transporte de tropas. “Quando nesse dia chegámos ao cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, com a trouxa às costas, ainda sem as armas, já as famílias estavam à espera dos militares que nesse dia iam embarcar, mais de 1000. Quem, como eu, não tinha lá ninguém subia às escadinhas do barco e ia lá para cima, assistir àquele momento profundamente triste, de forte emoção, com as mães e os pais, os irmãos, as namoradas e as esposas a chorar, abraçados aos seus soldados, numa tristeza absoluta… Foi por isso que eu não quis lá os meus”.

Uma semana depois – “passámos o tempo no mar a jogar às cartas, o barco a cheirar a gado” –, o Niassa chega a Bissau – “…o calor…, parece que a gente cai no inferno” –, capital da Guiné. “Um dia após atracarmos fui destacado para a região do Oio, composta por três grandes matas, que, na altura – na Guiné em todo o lado havia guerra –, era um dos piores sítios para se estar. Por isso, foram para lá deslocados dois batalhões – eu integrava um –, oito companhias, mais de 1000 homens, distribuídos pelos vários quartéis que havia na região – quando cheguei já estavam mais a ser construídos. Eu fiquei no quartel de Mansoa”. A primeira semana foi de adaptação e aprendizagem, orientadas pelos militares aquartelados prestes a serem rendidos, “fazendo os reforços da noite, as guardas nas guaritas”, todos os procedimentos de proteção ao quartel. “Seis ou sete dias depois entrámos na área operacional, que, na prática, é ir à primeira operação militar fora do quartel, sair para o mato, ir para a guerra, mesmo”. De início acompanhados de uma outra companhia, que estava de saída, para o treino operacional ser adaptado a um sistema já testado. “Duas ou três vezes mais e ficámos nós a tomar conta da zona de intervenção, porque quando a gente chega é para ir render alguém”, podendo a companhia combater naquela zona ou ser destacada para outro local, mais distante. “Três meses depois de chegarmos a Mansoa já nós tínhamos tido experiência de troca de fogo com o inimigo, fomos destacados, o meu batalhão inteiro, para a ilha de Komo, que era do pior, para fazer uma operação. Entrámos na região de Catió e viemos sair em Cufar. Ao fim de seis dias, tínhamos um morto e sete feridos. Mas estava previsto que nessa operação tivéssemos à volta de 15 mortos, o mesmo número de caixões, mostraram-nos, que esperavam por nós num armazém em Cufar”. António Monteiro, sublinhando a má preparação militar do exército português – “na ‘tropa macaca’ os soldados eram preparados muito à pressa, só as tropas especiais iam bem preparadas” –, expõe ainda a inferioridade dos militares portugueses ao nível do armamento. “O essencial da guerra são as armas pesadas, e se nós tínhamos o morteiro 60 eles tinham o morteiro 61, se a gente tinha o morteiro 81 eles tinham o morteiro 82. Havia por parte dos países um voto contra Portugal prosseguir a guerra do Ultramar, e muitos deles ajudavam os movimentos independentistas, a União Soviética, a China, os Estados Unidos da América, e outros, com armamento de toda a ordem. Aquela guerra foi um enorme erro”.Pela má preparação militar, de forma geral existente, e pela inferioridade de armamento do exército português face à força bélica do Paigc, António Monteiro, sublinha a importância que os soldados atribuíam às forças de comando. “As companhias que não tiveram disciplina, disciplina forte, trouxeram dúzias de mortos. Dúzias”. A necessidade de rigor teria de ser traduzida de várias maneiras, a exemplo da “forma como se progredia no mato, como a arma era transportada, como se atirava. Tinha que se andar em silêncio. Não se podia usar relógio, pelo reflexo que podia provocar e ser visto pelo inimigo. Fumar nem pensar, nem de dia, nem de noite. E havia muitos capitães que não ligavam a esses importantíssimos pormenores. Eu tive a sorte de ter dois capitães excecionais, indivíduos com grande experiência de guerra de guerrilha. Fundamentais para que a minha companhia chegasse ao fim de comissão ‘só’ com três mortos”.

O primeiro capitão de António Monteiro, “o capitão Alarcão, pessoa de grande integridade, era muito devoto”, relembra o ex-militar. “Ainda antes de chegarmos à Guiné, estávamos nós em instrução na Serra d’Ossa, perguntou quem é que dos soldados presentes não era batizado, porque dizia ele: ‘Comigo ninguém vai para o Ultramar sem estar batizado’. De maneira que eu e mais três camaradas acabámos por o sermos, em Evoramonte [Estremoz], na capela que fica lá em cima, no castelo. A minha madrinha de batismo foi Maria de Lourdes Pinto Basto, que vivia em Évora e que era sobrinha do comandante. Acabou por ser, também, minha madrinha de guerra, trocámos correspondência até à altura em que eu – num período que entrei em paranóia – deixei de escrever a todos, até à família…”.

A devoção do capitão Alarcão manteve-se presente nas incursões para o mato – “a ordem era um soldado levar, na mochila, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima”. Contudo, a proteção divina nem sempre foi suficiente para evitar baixas, tal como naquele dia 23 de junho de 1967, véspera do Dia de São João.

“Recebemos um reforço alimentar, um papo-seco com duas cavalas lá dentro, e saímos do aquartelamento, por volta das 11 horas da noite. Fazíamos o trajeto até às ‘casas de mato’ – era assim que chamávamos aos locais onde havia informação que existiam tropas inimigas – sempre de noite. Eu e um outro soldado, o Francisco Monteiro de Almeida, que era de Rio Tinto [Gondomar], tínhamos a nosso cargo as transmissões, ele com um rádio para comunicar com o quartel e eu com o ‘banana’, um rádio pesado com o feitio do fruto, que servia para pedir apoio aéreo caso fosse necessário. Eram seis da manhã quando chegámos ao nosso objetivo, estava o sol a despontar e vimos um inimigo armado, – atingimo-lo com uma rajada de metralhadora nas pernas, fazia-se o que se tinha de fazer, para sobreviver…. Continuámos a progredir e acabámos por cair numa emboscada. Houve uma enorme troca de tiros, nós a atirar desde uma ‘bolonha’ [pântano] conseguimos encostá-los à mata, mas eles circundaram-nos e atacaram-nos por detrás. Estivemos neste harmónio infernal, entre avanços e recuos, entre o pântano e a mata, mais de quatro horas. Nesse ataque – porque a minha companhia esteve debaixo de fogo 92 vezes – tivemos 32 feridos. O inimigo só parou de nos atacar após a chegada do nosso ‘helicanhão’, terrível quando começava a semear balas”. Foi também de helicóptero que esses homens foram transportados para os quartéis, para os hospitais. Um dos feridos, com uma clavícula fraturada e uma perfuração no pulmão, foi, precisamente, o capitão, fazendo questão de ser o último homem a ser evacuado. “Mas houve um de nós que morreu… o meu colega de transmissões, trespassado por uma bala, cujo corpo, naquela enorme confusão, não conseguimos recuperar. O Francisco Monteiro de Almeida ficou lá…”.

Quase 60 anos depois desse episódio, e de outros semelhantes que viveu, em plena juventude –“eu tinha 22 anos quando cheguei a África e era o mais velho da minha companhia” – António Monteiro, regressa, “àquele inferno”, por vezes. “Tenho noites terríveis, que não consigo descansar, revisitando em pesadelos, sobressaltado, as situações operacionais por que passei. Não quero com isto dizer que seja um indivíduo que tenha renunciado à vida, porque isso não aconteceu. Mas o trauma ficou comigo e metade de mim ficou na guerra”.

António Monteiro regressou da Guiné no dia 10 de agosto de 1968.

 

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“A NOSSA JUVENTUDE FOI-NOS ROUBADA QUANDO NOS MANDARAM PARA A GUERRA” Foi no primeiro dia do ano de 1972 que Manuel Paiva, com 21 anos, chegou ao Regimento de Infantaria (RI) n.º 3 de Beja, cessando, por força do serviço militar obrigatório, a sua atividade como técnico de ótica ocular, que exercia naquela cidade, sede de concelho da freguesia de Penedo Gordo, de onde é natural. Após três meses no RI3 seguiu para o RI16, em Évora, para tirar a especialidade. “Em boa verdade, o meu batalhão, durante os três meses que esteve em Évora, o que mais fez foram crosses diários por aqueles bairros limítrofes, sem nenhum tipo de treino operacional. Apenas nos ensinaram a mexer na metralhadora G3 e na pistola Walther e, naturalmente, porque íamos para a guerra, deveríamos ter tido mais conhecimentos sobre armas pesadas. Mas sobre essas não tivemos, rigorosamente, nenhum tipo de formação. Fomos para a Guiné completamente impreparados”.

No país, à altura colónia do Estado Português, aterrou no dia 14 de junho do mesmo ano, vindo do aeródromo militar de Figo Maduro, sendo que os dias que antecederam a viagem de mobilização foram de licença. “Davam-nos essa licença para que nos despedíssemos dos nossos. Mas eu, nesses dias, não me despedi de ninguém. Já o tinha feito, umas semanas antes, perante os meus pais e irmãos, na hora em que soube que estava mobilizado para a guerra. E foi, para todos, muito duro. Evitei a repetição desse choque profundo e eu e mais quatro amigos da minha companhia decidimos aproveitar essa liberdade para ir para Ilha da Boavista, uma povoação ao pé de Arraiolos, pois um camarada era de lá. Comemos, bebemos e divertirmo-nos, pois não sabíamos o que nos iria acontecer. Só sabíamos que íamos para a guerra, isso estava certo”.

Só já na Guiné o treino “em falta” começou a ser administrado, segundo o protocolo da Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) seguido nos teatros de operações ultramarinas. “Quando a minha companhia chegou, em junho de 1972, à Guiné – o calor era tão sufocante que era difícil respirar – ficámos no quartel de Cumeré, perto de Bissau. Fomos render soldados lá aquartelados que tinham acabado a sua comissão e só ali chegados começámos o nosso treino operacional, conhecendo o manejar de armas pesadas – metralhadoras, morteiros, o lançar de uma granada. Nós fizemos o IAO em pleno mato, no teatro de guerra, com fogo real. Isto é algo impressionante. Quando abalávamos do quartel, para aprendermos a manusear essas armas, podíamos ser emboscados, ninguém sabia se regressaria com vida”.

Ao cabo Manuel Paiva foi-lhe designada a especialidade de atirador, sem que o mesmo, ainda hoje, saiba o porquê de tal decisão. “Eu não era caçador, nunca tinha visto uma arma na minha vida, nem com uma flóber eu tinha atirado. Mas terão visto em mim um atirador especial e deram-me para as mãos, de início, um morteiro de 60, pesadíssimo, e, um tempo depois, o dilagrama”, um dispositivo adaptável a uma metralhadora G3, utilizado para o lançamento de granadas de mão a distâncias superiores às de um lançamento manual. Que teve de utilizar, por várias ocasiões. Um desses momentos ocorreu – “foi esse o meu primeiro contacto com o inimigo” – no dia 4 de janeiro de 1973, em Biambi, quartel “em pleno mato” que albergava cerca de 200 militares portugueses, para o qual fora destacado, concluído o IAO, um mês depois da chegada a Cumeré. “Tínhamos acabado de jantar, já o sol estava desaparecendo no horizonte, e a maioria de nós estava nas casernas, cada uma com 50 homens, todas subterrâneas, para maior proteção, a descansar um pouco, aguardando que a noite chegasse para depois entrarmos de serviço de vigilância noturna ao quartel. Eu estava a ler umas orações que a minha avó me tinha dado, para que me protegessem… De repente, o quartel começa a ser brutalmente atacado, com fogo de balas tracejantes vindas das kalashnikov do Paigc. Nós corremos para os nossos postos defensivos, uns para as armas ligeiras, outros para as armas pesadas, já debaixo de uma chuva de morteiros, de granadas, de tudo, de tudo… 20 minutos a defendermo-nos de um inferno, ‘com unhas e dentes’. No ataque, um camarada nosso, o cabo Costa, que era de Fafe, foi apanhado por um rocket. Ficou gravemente ferido, na zona dos pulmões, e foi transportando, assim que o dia nasceu –não se faziam evacuações à noite – para o hospital de Bissau, que tinha muito poucos meios, por uma avioneta. Acabou por morrer …”. Nesse ataque um outro soldado português, “o Nascimento, de Santa Comba Dão”, ficou gravemente ferido, ao deslocar-se da caserna para a vala de defesa – “foi apanhado, na perna e no joelho, por uma granada e também foi evacuado. Nunca soubemos o que lhe aconteceu…”.

Por este sangrento episódio, e outros semelhantes a que assistiam na primeira pessoa, os militares portugueses “sentiam muita revolta, sim”, diz Manuel Paiva. “A nossa juventude, minha e dos meus camaradas, foi-nos roubada na sua plenitude, tirada, assim, abruptamente, quando nos mandaram para a guerra, com a qual não tínhamos nada a ver, que não nos pertencia e que só servia os interesses do regime. E a revolta era enorme quando assistíamos à partida de colegas nossos, no início da vida, sem terem feito mal a ninguém… Foi, de facto, uma coisa horrorosa”.Pelo horror daquela guerra e do inferno que a mesma produzia na vida dos jovens militares, Manuel Paiva frisa a sua compreensão com aqueles que conseguiram desertar. Uma ideia que também a ele lhe surgiu. “Em maio de 1973 eu vim à metrópole (era como se dizia de Portugal, na altura). Consegui tirar um mês de licença. Quando os dias terminaram e me despedi dos meus familiares, sem saber se nos iriamos voltar a ver, a ideia de desertar começou a germinar em mim”. Só na porta de entrada para o avião, rumo novamente à Guiné, a hesitação se esfumou por completo. “Só não tomei essa resolução porque sabia que, ao fazê-lo, o regime, por retaliação, iria por em risco os meus familiares, persegui-los e não lhes permitiria ter trabalho, porque a PIDE, que foi a coisa mais horrorosa que existiu, não deixava que os familiares dos desertores tivessem vida. Era assim que atuavam”.

Após o regresso à Guiné, Manuel Paiva foi nomeado, juntamente com o furriel Mesquita, “que é de Braga e ainda é vivo, na graça de Deus”, para tirar um curso, “de mês e meio”, em Bissau, com a intencionalidade de darem aulas a adultos e crianças guineenses que viviam nas tabancas, localidades indígenas, próximas do quartel de Bissum, localidade junto à fronteira com o Senegal, para o qual o pelotão de Manuel Paiva foi destacado para render uma companhia de homens, que estavam, “completamente” esgotados. “Nesse quartel nunca ninguém nos atacou (havia quase um acordo tácito – tu não me atacas, eu não te ataco) e eu deixei de ser operacional. O meu furriel dava aulas de português, à primeira e à quarta classes, e eu à segunda e terceira classes. Tudo aquilo que me ensinaram eu transportei para aquelas crianças e elas sentiam-se muito felizes comigo, até porque eu lhes ensinava alguns movimentos de judo, arte de que eu era praticante. Esse foi o período de acalmia da minha comissão. Em Bissum nem eu nem os meus camaradas tivemos problemas de maior”. Camaradas de armas por quem Manuel Paiva continua a ter “uma amizade fortíssima” – “semelhante à que tenho aos meus familiares, inesquecível” –, perdurando desde há 50 anos, desde “o tempo da Guiné”. Onde o cabo Paiva mentalmente regressa, sempre que o pequeno estilhaço de granada, que lhe entrou pelas costas, naquele dia fatídico de ataque ao quartel de Biambi, lhe provoca “uma ligeira comichão”.Manuel Paiva regressou da Guiné no dia 14 de julho de 1974.

 

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“ESTÁVAMOS ALI A DEFENDER O QUÊ? INTERESSES POLÍTICOS, MAIS NADA “ Quando a porta do avião da TAP, oriundo de Lisboa, carregado de militares portugueses, se abriu, nesse segundo dia, “inesquecível”, do mês de agosto de 1973, o calor húmido abrasador que se fazia sentir no aeroporto de Bissalanca, nas proximidades de Bissau, apanhou desprevenido José Saúde, deixando-o incrédulo e asfixiado. Não obstante a exigente formação militar, “um treino duríssimo”, que havia recebido no Centro de Tropas de Operações Especiais de Penude (Lamego), o ranger furriel miliciano, natural de Aldeia Nova de São Bento (Serpa), inspirava, indefeso, pela primeira vez, aquele “bafo sufocante e pesado”, marcando-lhe a chegada, como quem apanha um murro no estômago, à guerra. A ordem de mobilização para a Guiné – “antes da tropa tinha acabado de tirar o Curso Geral de Comércio” – recebera-a umas semanas antes, o que lhe permitiu ir “à terra”. “As despedidas dos soldados, dos pais, da família, dos amigos, eram terrivelmente dolorosas, – ‘será que nos voltaremos a ver?’ – porque quem partia nunca sabia se regressava, era uma incógnita. Já muitos tinham voltado estropiados, outros entre quatro tábuas… Na ´aldeia’ as mães que tinham filhos na guerra usavam um xaile a tapar-lhes quase toda a cara, um sinal de dor em honra dos filhos que estavam no ultramar. Era terrível”. Já na Guiné, José Saúde fora destacado para a região de Gabú, no interior do país, para o quartel junto à povoação de Nova Lamego, com as funções de liderar, em conjunto com um outro seu camarada ranger, “o Álvaro”, um grupo de intervenção constituído por 20 soldados portugueses, da dita “tropa normal”, e seis guineenses que combatiam ao lado do exército português. Os nacionais, sublinha, “chegavam ao teatro de operações muito mal preparados, cabia-nos a nós, que tínhamos treino de operações especiais, dar-lhes os ensinamentos adequados”, respeitando os procedimentos fundamentais de segurança, “para que não fossem carne para canhão”. Os segundos, africanos, “tinham já muita experiência de guerra”, pois desde 1963, ano em que eclodira na Guiné, que vinham integrando os vários pelotões e grupos de militares portugueses “e eram muito importantes”, pois, para além de falarem os vários dialetos existentes na região, “conheciam o terreno melhor que ninguém”. Das várias missões para as quais o grupo do militar aldenovense era destacado, a proteção avançada, prevenindo ataques inimigos ao aquartelamento, era feita com regularidade prevista, intercalando os vários grupos militares essa ação durante vários dias. “Patrulhar no mato era duro, sempre preparados com a arma em posição de atacar, e passar lá as noites era horrível. No tempo das trovoadas, com chuvas torrenciais, todos caladinhos, sabendo que o inimigo estava por ali… era medonho. Nós, formados nas operações especiais, preparam-nos para tudo, dão-nos os ensinamentos de como devemos atuar nas diversas situações. Mas a crua realidade da guerra, quando lá nos encontramos, é muito diferente, sobretudo, pela incerteza que está sempre presente”. Incerteza que origina um alerta, receoso, constante, diz José Saúde. “O medo acompanha-nos sempre, e é preciso irmos sabendo lidar com ele, mantendo a calma. Com o tempo e com a continuidade das ações militares, de combate real, vai-se aprendendo ‘a conviver’”. Das várias situações de combate em que esteve envolvido, em que com o medo teve de saber lidar, José Saúde recorda a primeira sentida com grande intensidade de fogo. “Foi em novembro. Saímos do quartel por volta das quatro da tarde. O meu capitão informou-me da presença de um grupo armado do Paigc, próximo de uma tabanca e nós partimos ao seu encontro”. Deslocados de Unimog – veículo de transporte militar intitulado “burro do mato”, pela sua versatilidade em terrenos difíceis –, para lá do arame farpado que circundava o quartel, o grupo prosseguiu pela picada, em fila indiana, a caminho da aldeia referenciada. “Na guerra há sempre informação e contrainformação e a verdade é que os ‘turras’, uns quilómetros depois, estavam à nossa espera. Caímos numa emboscada e começámos a ser alvo de tiros de metralhadora, de granadas de mão, de RGP [granada lançada por foguete], que rebenta e deixa estilhaços por todo o lado. Nós ripostámos, mas não cheguei a ver nenhum dos inimigos, disparava-se para o infinito… Foram minutos intensamente terríveis… depois veio uma leveza, por ninguém ter ficado ferido. Dessa vez tivemos muita sorte…”.

 

Multimédia2Sorte que, umas semanas depois, não acompanhou a coluna militarizada, que ia de Nova Lamego para Piche, localidade onde havia, também, um quartel do Exército Português, à qual o grupo de José Saúde, entre outros, estava a fazer “proteção mais adiantada”, no mato, fiscalizando, por segurança, várias tabancas no caminho. “Os fulanos caíram em cima da coluna, que ia mais atrás, com uma força brutal. Com granadas perfurantes rebentaram com os dois Panhard [blindado com autometralhadora] que encabeçavam e fechavam a coluna. Os condutores e os soldados que manuseavam as metralhadoras desapareceram do mapa, ficaram reduzidos a nada… Nessa emboscada tivemos seis mortos, muitos feridos. Ainda falo com um dos soldados que, nesse ataque, ficou sem uma perna. Os tipos não tinham muitos efetivos, quando atuavam não eram com muita gente. Mas conheciam muito bem o terreno, estavam bem treinados (alguns comandantes deles eram cubanos) e armados de uma maneira muito superior, com armas de ponta que lhes eram fornecidas pela União Soviética. Era muito difícil…”.Dificuldade que podia ser medida de forma dramática. “Em 1974, de janeiro até ao 25 de Abril, morreram dezenas de militares portugueses pertencentes a quartéis da zona de Gabú. De tal forma que o stock de urnas que existia nos quartéis da região acabou. Tivemos que ir buscar caixões a Bafatá… Foi um período terrível”. Para além das muitas baixas provocadas em combate, “outras havia originadas por acidentes”, frisa José Saúde. “Enquanto lá estive, o meu grupo sofreu uma baixa. O Damásio… era lá de cima, do Norte… Estávamos a fazer a proteção a um descarregamento de uma avioneta que tinha chegado a Nova Lamego com soldados, munições, medicamentos, mantimentos… E, de um momento para o outro, durante este processo, o Damásio é atropelado por uma viatura civil. Uma morte tão estúpida… Fui eu que tive de fazer o auto e de juntar os meios pessoais dele – tinha 22 anos – para mandar para a família. Foi muito doloroso…”. Da guerra quem nela estava acentuava-lhe a sua brutal inutilidade. “Havia muita revolta, uma sensação de mal-estar, de incompreensão. ‘O que é que eu fiz para estar aqui?’, perguntávamo-nos. ‘Não fizemos mal a ninguém’. Eramos todos tão jovens. Eu olho hoje para um miúdo com 21, 22 anos, que eram as nossas idades, e vejo uma criança. Crianças que foram jogadas para as frentes de combate com uma arma nas mãos. Sem preparação, sem saber porquê. Estávamos ali a defender o quê? Interesses políticos, mais nada. Fomos heróis à força. Tínhamos de defender a vida. Matar para não morrer. Era assim”. José Saúde regressou da Guiné no dia 9 de setembro de 1974.

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