Diário do Alentejo

O que é hoje o comer? Surra-burra

31 de janeiro 2025 - 12:00
Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

Lilia Rogado 41 anos, Vila Verde de Ficalho (Serpa)

 

Texto |Ana Filipa Sousa de Sousa Fotos | Ricardo Zambujo

 

O dia amanheceu frio. A hora marcada para seguir para o campo e dar início à primeira matança do dia foi atrasada por algum tempo. Em cima da mesa, um pequeno manjar dá as boas-vindas aos vizinhos e amigos, alguns vindos do outro lado da fronteira, que decidiram ajudar naquela lide. Entre uma fatia de queijo, um punhado de amêndoas, uma ginja e um copo de aguardente espanhola a mescla de pronúncias surge de forma natural. Falam sobre política e sobre as principais diferenças entre o País e o seu vizinho enquanto, agilmente, entram nas carrinhas.

 

Uma hora mais tarde, com a primeira parte do processo concluída, regressa-se à horta. É tempo de chamuscar, partir e dividir a carne para as iguarias que se seguem. Cabeça de xara, linguiça, chouriço, presunto, papada, toucinho salgado, carne grelhada, salada de sangue e, o prato principal de hoje, surra-burra, também conhecido por moleja…

“A surra-burra é uma receita que é simples, tem poucos ingredientes, [mas é] extremamente nutritiva”, apressa-se a fazer notar Lilia Rogado. Enquanto os trabalhos prosseguem do lado de fora do casão, a técnica de análises clínicas dá os primeiros passos na receita de família que aprendeu com a avó. “Fui aprendendo desde pequenina. Andava aqui a correr no dia da matança e fui aprendendo. Era a minha avó, que já morreu, que fazia o almoço. Depois ela foi-me ensinando. Dizia: ‘Põe mais isto e põe mais aquilo e mexe mais, põe mais água’. Ia-me dando as dicas e hoje, que ela já cá não está, fazemos assim a pensar nela”, diz, sorrindo.

Num tacho de alumínio, Lilia prepara um refogado com cebola, alho, louro, azeite e sal – “Vou deixar um bocadinho a alourar e quando tiver um perfumezinho no ar adiciono as vísceras, os bofes, a cachola e os corações aqui ao nosso almoço”.

O pequeno fogão a gás, colocado estrategicamente num dos cantos do casão, é agora o ponto de encontro de uma ou outra mulher que se junta a Lilia para “mexer e não deixar colar ao fundo” o preparado. Com a carne frita, adiciona-se “água para acelerar o cozinhado”. “Temos aí 10 litros de água, acho pouco, acho que vamos precisar de 15”, admite a profissional de saúde.

Sentada numa cadeira e de olhos postos no seu cozinhado, recorda todos os invernos em que, por esta altura, a família se reunia para a matança, para comer a surra-burra e celebrar o aniversário da matriarca. “Fazíamos sempre no fim de semana mais próximo do aniversário dela. Juntávamos a família, cantávamos os parabéns à avó. Eram duas festas. Ela já cá não está, [mas] ficou o legado dela”.

A riqueza da receita não passa pela sua complexidade. A qualidade dos ingredientes –“praticamente todos biológicos” – e o ‘vagar’ com que são cozinhados agudizam o seu segredo. “Não é uma comida rápida de se fazer, demora algum tempo”, sublinha.Lá fora, os homens continuam os seus trabalhos e, entre um e outro copo de vinho, espreitam para o casão para sentir o aroma que paira no ar. “A minha mãe já foi apanhar as laranjas para depois, quem quiser, juntar ao prato”, acrescenta Lilia.

Com a hora do almoço a aproximar-se, retifica-se novamente o sal. Uns minutos depois. o tacho é retirado do lume e, com a ajuda das vizinhas, chega o momento de se juntar o “ingrediente rei”, ou seja, o sangue do porco. Com movimentos circulares, “para não deixar coagular”, mistura-se vagarosamente o preparado antes de voltar a colocar o tacho no fogão.

Enquanto se espera que o prato apure, Lilia sublinha que esta tradição, embora ainda junte um par de pessoas, está a perder-se e que, se não fosse o seu interesse e o do irmão, já há muito que tinha terminado. “Isto é muito trabalhoso, é muito dispendioso. Economicamente, o que nós fazemos não é rentável, é só pelo prazer da festa e pelo prazer de recordar os que já cá não estão [e] que faziam desta forma”, admite.

Finaliza-se a iguaria com uma “boa dose” de cominhos e cravinho e, rapidamente, o casão é invadido pelo forte aroma das especiarias. “Pai, prova lá”, pede Lilia. “Está bom, está. Podemos servir”, responde António Rogado.A mesa, que outrora estava deserta, começa agora a ganhar vida. Miúdos e graúdos, famintos por provar a surra-burra deste ano, fazem fila junto ao tacho. Há quem lhe junte fatias de pão, rodelas de laranja ou coentros e, acompanhando com um e outro copo de vinho, vão soltando palavras de agrado para com o prato. De repente, o casão é agora sítio de convívio. Volta-se a falar de Espanha, do tempo frio e do programa para a tarde e, entre garfadas, acena-se positivamente com a cabeça em jeito de confirmação – “Isto está muito bom, Lilia”.

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