Diário do Alentejo

O “arrepio emocional, inexplicável e magnífico, que o cante proporciona”

24 de novembro 2024 - 08:00
“Cantadores das Neves” é apresentado no dia 27, em BejaFoto | José Manuel Costa

No dia em que o cante alentejano celebra 10 anos do seu reconhecimento pela Unesco como Património Cultural Imaterial da Humanidade, o Grupo de Cantadores de Nossa Senhora das Neves apresenta o seu primeiro trabalho discográfico. O “Diário do Alentejo” conversou com José Mata, presidente do coletivo, sobre a história do percurso deste grupo, que conta com uma mão cheia de anos de vida e outra tanta de grandiosas emoções.

 

Texto | José Serrano

O Grupo de Cantadores de Nossa Senhora das Neves lança na próxima quarta-feira, dia 27, às 19:00 horas, o seu primeiro álbum, intitulado “Cantadores das Neves”. A obra marca a chegada do grupo a um patamar simbólico de consistência, através de um caminho, com mais de 100 atuações ao vivo, que se iniciou há cinco anos. José Mata, presidente do grupo, conta a história. “A freguesia tem, desde 2004, o Grupo Coral Feminino da Casa de Povo de Nossa Senhora das Neves, mas nunca teve, antes de nós, um grupo de cantadores”. À exceção de uma tentativa de formação, há cerca de 50 anos, que não durou mais do que uns poucos meses. “Parece que se desentenderam, e aquilo, rapidamente, acabou”, diz.

Contudo, o presidente do coletivo coral, a viver nesta freguesia do concelho de Beja há 26 anos – “desde que casei” –, observava que nos cafés e tabernas da aldeia “a tradição de se cantar à alentejana permanecia viva”, com as modas tradicionais a serem entoadas espontaneamente pelos homens, aos fins da tarde, à roda de um petisco e de um copo de vinho – “há um que começa e, a partir daí, incentiva os outros a acompanharem-no, é assim que funciona”. Esta frequente confirmação da presença do cante na aldeia permitiu que germinasse a intenção de formar um grupo de cantadores e fosse, pouco a pouco, ganhando cada vez mais fôlego. “A minha ideia começou a ser bem aceite por alguns, que acreditavam que era possível pô-la em prática, que me ajudaram a desenvolvê-la e a expô-la a outros homens. Mas não foi fácil, porque há sempre os que desmotivam, os que me disseram ‘isso já se tentou e não vai dar em nada’. A verdade é que passado pouco tempo já estávamos 14 homens comprometidos com a criação do grupo”.

Faltava, à ideia, uma “peça” fundamental: conseguir um ensaiador. “Um dia, em Baleizão, encontrei o Paulo Barriga [jornalista], também ele um entusiasta do cante, e apresentei-lhe a minha intenção. Incentivou e aconselhou-me a falar com o Francisco Torrão, que tinha saído, não há muito, de ensaiador dos Cantadores do Desassossego. O Paulo referiu-se a ele como o ‘Mourinho do cante’ e eu decidi tentar a ‘contratação’. Apanhei o mestre num evento do Centro Unesco de Beja, em que ele participou numa palestra sobre cante, e expus-lhe o meu plano”. Francisco Torrão acolheu o desafio, agradando-lhe, sobremaneira, o facto de ir ensaiar cantadores que nunca tinham participado num grupo formal, ausentes “de vícios”, na forma de cantar.

Começados os ensaios, com o tom de cada uma das modas do reportório a ser dado pelo lamiré do mestre a uma dúzia e mais dois homens, adensava-se a curiosidade pelo coletivo, cada terça-feira, meia hora depois das sete da tarde. “Ensaiávamos no centro das Neves e aquilo, ao princípio, era uma novidade, que se fazia ouvir no largo. E começámos a ‘ter visitas’, muita gente a tentar perceber se, realmente, a coisa era ‘a sério’”. Com as dúvidas retiradas, foram entrando mais cantadores e “passinho a passinho o grupo foi-se construindo”. Até que, um ano depois, chegou a pandemia de covid-19, e as restrições sociais, com a segurança sanitária no centro da agenda política dos estados e das organizações internacionais, não deixaram o cante imune, levando à paragem dos ensaios e das atuações dos grupos. Porém, “quando a pandemia nos começou, pouco a pouco, a libertar”, o grupo regressou com vontade redobrada de prosseguir. “Nenhum de nós queria perder o que tínhamos começado a construir. Existia a saudade de cantarmos juntos e de mostrar a força do grupo. Regressámos cheios de confiança e apresentámo-nos ao vivo, pela primeira vez, no verão de 2021, quando houve autorização do Governo para se poder fazer alguns eventos de natureza cultural. Queríamos muito que a ideia fosse avante e a partir daí o grupo começou ‘a cavalgar’”.

Hoje, o coletivo, “muito acarinhado pela população”, que conta com 26 cantadores, entre os 15 e os 83 anos, é solicitado para um número de espetáculos superior àquele que pode aceitar. “Temos um ‘núcleo duro’ que, normalmente, não falha e apresentamo-nos em público sempre com três filas de homens. Sentimos orgulho por todos os convites que nos fazem, alguns deles grandiosos, mas não podemos dizer que sim a todos”.

Recusas que têm a ver, em particular, com questões prioritárias de conservação do bom ambiente matrimonial, informa José Mata. “Tento fazer uma gestão, de mais ou menos, 30 atuações por ano, ou seja, duas a três por mês, no máximo. Porque a maioria do pessoal é casada e se as saídas são muitas as nossas mulheres começam a perguntar: ‘então, a tua vida agora é só o grupo? Como é que é?’ Não podemos ir a todas. Nem tudo ao mar, nem tudo à terra”.

As solicitações advêm do “percurso muito interessante” que o grupo tem vindo a saber fazer, da “solidez” demonstrada, assente “na alegria e no convívio social que proporciona aos seus elementos” e na responsabilidade, “nunca esquecida”, de estar a representar um Património da Humanidade identitário de uma região. Sendo que, “nunca é demais sublinhar”, frisa José Mata, o êxito do grupo é indissociável da excelência do trabalho desenvolvido pelo ensaiador, da sua mestria em colocar os grupos que rege na primeira divisão. “Tal como tem vindo a fazer, numa série de grupos, ao longo da sua história, o homem continua a descobrir talentos. Aqui, no grupo, encontrou altos e pontos insuspeitos, nem os próprios faziam ideia de que cantavam tão bem. Estamos-lhe muito agradecidos”.

Agradecido, também, com o grupo ficou Pedro Abrunhosa que, num programa de televisão, gravado em Évora, se cruzou com o Grupo de Cantadores de Nossa Senhora das Neves, tecendo-lhe rasgados elogios e manifestando o seu interesse – “não sabia quando, nem como, mas que tinha de trabalhar connosco” –, numa parceria artística. “Essa atuação, onde também estava o Júlio Isidro presente, foi fantástica. Havia, na sala, pessoas a chorar de emoção. Quando isso se consegue, quando se sente esse arrepio emocional, essa união entre quem está a cantar e quem está a ouvir é algo muito forte”. É precisamente esse jogo de sentimentos que, por vezes, se sente nos espetáculos, “quando estamos a ser ouvidos por pessoas que apreciam o cante”, que o grupo quer fazer passar a quem ouvir este seu disco. “Que sintam esse arrepio emocional, inexplicável e magnífico, que o cante proporciona”, acentua José Mata.

 

 

“Cantadores das Neves”, o disco

Com arranjos e direção musical de Francisco Torrão, grafismo de Aníbal Carocinho, gravação, mistura e masterização de Hugo Bentes, o trabalho conta com 12 faixas gravadas na igreja de Nossa Senhora das Neves. Explorando o cancioneiro popular do Baixo Alentejo, o alinhamento conta ainda com temas de autoria de Francisco Torrão (“Nossa Senhora das Neves”), Zeca Torrão e Francisco Torrão (“As Mondadeiras Cantando”), Armando Torrão (“Mas Que Dia Tão Bonito”) e de José Lopes Gato (“Alentejo, Alentejo”). A edição e produção são da responsabilidade do grupo, que contou com o apoio da Junta de Freguesia de Nossa Senhora das Neves e da Câmara Municipal de Beja. O evento de lançamento está previsto para o próximo dia 27, às 19:00 horas, no Centro Unesco para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, de Beja, e no dia 7 de dezembro na Casa do Alentejo, em Lisboa, às 15:30 horas, integrado nas comemorações dos 10 anos da elevação do cante alentejano a Património Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. O CD já está disponível para venda, podendo ser adquirido na Casa do Povo de Nossa Senhora das Neves e requisitado através de cantadoresnsneves@gmail.com.

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