A semana entre 16 e 22 de novembro de 1974, nas páginas do “Diário do Alentejo”, é tão boa como qualquer outra para comprovar a importância que os militares tiveram não só na realização do 25 de Abril, mas também na governação do País nos tempos (anos) que se seguiram, e em que António de Spínola e Otelo Saraiva de Carvalho se apresentam como a cara e coroa de uma moeda que, é certo, teve outros protagonistas e foram o garante do sucesso da transição de um regime opressivo para uma vida em liberdade.
Na edição de sábado, dia 16, na última página, noticiava-se a publicação “de um decreto-lei que [reduzia] consideravelmente a idade com que os oficiais [deixavam], obrigatoriamente, funções de comando” e que, por isso, “o ex-presidente da República, general António de Spínola, [passava] à situação de reserva, juntamente com algumas centenas de oficiais dos três ramos das Forças Armadas”.
Nascido em Estremoz, a 11 de abril de 1910, Spínola cedo enveredou pela vida militar. Aos 10 anos ingressou no Colégio Militar e ao longo da sua carreira foram vários os cenários de guerra que presenciou: frente russa acompanhando as manobras da Wehrmacht no cerco a Leninegrado, guerra civil de Espanha, onde participou na escolta de comboios alimentares de apoio aos falangistas, e, com o início da guerra colonial, em Angola (1961/63) e na Guiné- -Bissau (1968/72), onde foi nomeado governador militar.
Em janeiro de 1974, já regressado à metrópole, toma posse como vice-chefe general das Forças Armadas e, um mês depois, lança o livro Portugal e o Futuro, obra que contribui para acelerar o movimento conspirativo e o transformou num mito.
Na sequência da Revolução dos Cravos é convidado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) para o cargo de Presidente da República, mas, devido às contradições e tendências diversas, acaba por se demitir, a 30 de setembro de 1974, na sequência do falhanço da manifestação da “Maioria Silenciosa”.
Em março do ano seguinte lidera o golpe falhado do 11 de março e parte para o exílio – primeiro em Espanha, depois no Brasil –, de onde preside à organização terrorista de direita, Movimento Democrático de Libertação Português (MDLP). Em agosto de 1976 foi-lhe permitido o regresso a Portugal, patrocinado pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes, e pelo então primeiro-ministro, Mário Soares, após a dissolução do MDLP em abril desse ano.
A 13 de agosto de 1996 morreu aos 86 anos, vítima de embolia pulmonar, no Hospital Militar de Belém, em Lisboa.
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No mesmo dia, a 16 de novembro de 1974, o “DA” noticiava que “o brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, governador Militar de Lisboa e ajudante do Copcon, deslocou-se, de helicóptero, a Évora, onde teve uma reunião de trabalho no Quartel- -General, que se prolongou por algumas horas e em que participaram o comandante da Região Militar de Évora, o chefe do Estado Maior e outros oficiais”. Enquanto a “velha raposa” se despedia, Otelo assumia-se como protagonista do movimento.
Otelo nasceu em Lourenço Marques (hoje Maputo), a 31 de agosto de 1936. Na juventude balança entre uma carreira de ator e o ingresso na vida militar. Ganhou a segunda hipótese e, em 1955, ingressa na Escola do Exército.
Em 1959 é promovido a aspirante e colocado na Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas – de onde sairia a coluna de Salgueiro Maia – até agosto de 1960, ano em que passa a alferes. Um ano depois, já capitão, embarca para Luanda, onde toma contacto com a realidade do colonialismo português e conhece o tenente-coronel António de Spínola. Aí permanecerá por três anos e regressará a África de 1965 a 1967. Em 1970 é colocado na Guiné no quartel-general onde chefia a secção de radiodifusão e imprensa, assuntos civis e ação psicológica.
Nomeado para a direção do Centro de Informação e Turismo da Guiné, em junho de 1971, será demitido do cargo por Spínola pouco tempo depois. A sua consciência política, mas também o seu desgosto face à situação, terão aumentado grandemente durante essa comissão. A sua atividade conspirativa tem início na Guiné (movimento dos capitães) e culminaria com o seu empenho operacional em construir o 25 de Abril. Integra a direção do MFA, antes da revolução, sendo um dos principais estrategas.
Com o andar da carruagem, foi graduado em brigadeiro e nomeado comandante-adjunto do Copcon e comandante da Região Militar de Lisboa. Na prática, ficou com o comando efetivo do Copcon desde setembro de 1974, e que se tornou “pau para toda a obra”. “Todos os dias, a partir das 05:30h, extensas filas humanas se formavam (…) e a todos procurávamos atender, aconselhando ou resolvendo questões pessoais ou familiares, dando solução a problemas habitacionais com o apoio de comissões de moradores, arbitrando conflitos laborais norteados pela divisa que eu instituíra de que ‘os trabalhadores, em princípio, têm razão’”, disse Otelo numa entrevista.
Passou pelo 28 de Setembro, pelo 11 de março e pelo PREC (Processo Revolucionário em Curso), fez parte do conselho da Revolução, visitou Cuba e conheceu Fidel e, em agosto de 1975, assume publicamente divergências com Vasco Gonçalves, abrindo a porta a Pinheiro de Azevedo e ao VI Governo Provisório.
Com o 25 de novembro de 1975 é despromovido, o Copcon desmantelado e o Grupo dos Nove – militares moderados – assumem o poder de facto. Otelo é preso por “suspeita de responsabilidade de natureza militar nos acontecimentos”.
Em 1976, nas eleições presidências, concorre e fica em segundo lugar (16 por cento) atrás de Ramalho Eanes. Em 1977, com base nos Grupos de Dinamizadores de Unidade Popular (GDUP), tem início a constituição do Projeto Global com o apoio das Forças Populares 25 de Abril (FP25).
Abril de 1980 marca o lançamento do Manifesto ao Povo Trabalhador e o nascimento de uma “organização de tipo novo [para] dar resposta à situação repressiva que a burguesia exerce sobre os trabalhadores e revolucionários, (…) e vir a constituir direcção política da insurreição armada e da tomada de poder”.
Neste mês iniciaram uma série de atentados à bomba em todo o País, nomeadamente, a instalações da GNR e edifícios do Estado. Otelo foi detido em 20 de junho de 1984, sob a acusação de ser um dos fundadores e dirigente da organização terrorista das FP25. Em outubro de 1985, Otelo foi julgado e condenado em tribunal pelo seu papel na liderança das FP25 e condenado a 15 anos de prisão efetiva. Foi libertado em 17 de maio de 1989, após menos de cinco anos na cadeia, passando a aguardar julgamento em liberdade provisória, uma vez que a sentença ainda não tinha transitado em julgado e por excesso de prisão preventiva. Em 1996, a Assembleia da República aprovou uma amnistia que o libertou definitivamente.
Morreu a 25 de julho de 2021, vítima de falência cardíaca.
Aníbal Fernandes