A herdade do Monte da Ribeira, no concelho de Vidigueira, é agora “casa” de cinco casais de abutres-pretos. No final do mês de agosto terminou a sua época de reprodução e as novas crias começaram, aos poucos, a deixarem-se ver e a fazerem os seus “primeiros voos prospetores”. O “Diário do Alentejo” acompanhou o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) na segunda visita de observação à colónia.
Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa Fotos | Ricardo Zambujo
O dia amanheceu cinzento. O nevoeiro que paira no ar, assim como o frio que pede um ligeiro casaco por cima dos ombros, não condiz com as temperaturas que o início do mês de setembro trouxe. O caminho, ainda em alcatrão, feito dentro da carrinha 4x4 do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) até à entrada da herdade do Monte da Ribeira, no concelho de Vidigueira, faz-se com os vidros abertos e muita conversa à mistura. Esta é a segunda visita de observação à colónia de abutres-pretos, encontrada no final de julho, e a primeira após a colocação do equipamento de monitorização.
“Na prática, descobri a colónia [dos abutres] porque ia à procura das águias-reais e o ninho destas não está muito distante de onde estão agora estes abutres negros”, começa por dizer, ao “Diário do Alentejo” (“DA”), Nuno Ventinhas, técnico do ICNF.
A “descoberta” deu-se por mero acaso. Nuno Ventinhas, apelidado de “pai da colónia”, conta que estava a tentar observar a outra espécie quando os abutres-pretos começaram “a aproximar-se” e a baixar em direção a um dos pinheiros com “as patas para baixo”.
“Comecei a vê-los a ter alguns comportamentos, [como] um deles a agachar-se, mas não fiquei com a confirmação. Como já era tarde e estava um calor descomunal não quis estar a incomodar e a observar mais os bichos. Como não consegui confirmar logo se tinham crias, não quis arriscar, àquela hora, que saíssem do ninho e as deixassem sozinhas”, recorda.
Numa outra visita pela herdade, “um bocado mais abrangente”, a equipa do ICNF conseguiu localizar 10 indivíduos adultos, o que correspondeu, “mais ou menos, com o número de ninhos” avistados.
“Temos cinco vales e encontrámos cinco ninhos. Percebemos [esse padrão] ao segundo vale e começámos a ir de vale em vale. [Por isso], costumo dizer que tropeçámos em cinco ninhos, porque tropeçámos mesmo, se tirarmos da equação os pássaros que ali estavam pousados não conseguimos ver nada ali para dentro”, esclarece Carlos Carrapato, biólogo do ICNF.
O portão da herdade do Monte da Ribeira já está aberto. O solo árido devido aos últimos calores faz com que o caminho comece a ficar atribulado e a ser cada vez mais difícil manter a conversa. As pedras que se soltam do chão batem no metal da carrinha e ecoam no seu interior.“Tens a certeza que é por aqui? Eu acho que nunca passou um carro aqui”, questiona Carlos Carrapato. “Avança! Estamos certos. Ali à frente viras à direita”, orienta Nuno Ventinhas.
A última vez que a equipa do ICNF esteve no terreno foi no dia da “marcação de um dos animais”. O intuito da colocação do “emissor GPS (sistema de posicionamento global)”, segundo explica o biólogo, passa por “saber quais os comportamentos expressivos destes bichos” nesta colónia em específico. “Normalmente, nós batizamos os animais pelo número de anilha, pelo número do emissor ou, muitas das vezes, por nomes que achamos que podem ter piada para a situação em causa. [Neste caso], telefonei à proprietária e ela perguntou-nos se o nome do animal poderia ser ‘Pousio’, porque a herdade tem um vinho e um azeite com esse nome. [Agora] cada vez que são publicados as deslocações, os movimentos e a atividade deste animal já vem apelidado de ‘Pousio’”, refere. E acrescenta: “Portanto, isto para mostrar a relação muitas das vezes próxima que nós temos com os proprietários”.
A colaboração das herdades Com a carrinha parada numa das estradas da herdade, o horizonte perde-se de vista. Em frente, a grande serra do Mendro, no concelho de Portel; ao redor, o azul do Alqueva e os campos verdes de Beja e Vidigueira. A herdade, com mais de 1000 hectares, plantada de azinheiras, sobreiros e medronheiros, é já casa de outras espécies, como lebres, veados, javalis, águias-reais e grifos-eurasiáticos.“Quando viemos falar com a proprietária, [depois de descobrir a colónia], uma das primeiras perguntas que ela nos fez foi: ‘E agora? O que é que eu posso e o que é que eu não posso fazer?’. Nós, o que respondemos sempre é que os proprietários devem continuar a fazer tudo aquilo que fizeram até então, porque eles vieram para cá com a sua gestão. São os animais que escolhem as condições para se instalarem, [e o que percebemos é] que a gestão agroflorestal desta exploração tem sido compatível [com a colónia]”, refere Carlos Carrapato.
Por esse motivo, os técnicos assumem-se grandes defensores das medidas de apoio económico do Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (Pepac) atribuídas aos proprietários e que permitem “distinguir quem está a fazer bem”.
“Por exemplo, há uma medida no Pepac, no âmbito das agroambientais, em que os proprietários das herdades podem candidatar-se e ter uma majoração e um prémio, à volta dos 450 euros por cada ninho, durante cinco anos. Em contrapartida, o que nós impomos é que eles, num raio de 500 metros, não podem fazer o que quer que seja que comprometa a presença dos animais, [ou seja] não pode levar para lá um aparcamento, não pode fazer floresta sem nos pedir autorização e se a fizer tem de ter medidas ou executar essas medidas fora do período de nidificação”, clarifica. Em relação aos comedores regulares neste tipo de explorações, Carlos Carrapato e Nuno Ventinhas são perentórios. Se a espécie se instalou no terreno sem qualquer tipo de comedor, então “é porque vão buscar comida a algum lado” e não há necessidade “de inventarmos a roda, porque a roda já foi inventada”.
“A questão é [que] estes pontos de alimentação para fomentar a estabilidade da colónia têm de estar de acordo e em harmonia com as herdades, porque, por exemplo, este proprietário daqui faz azeite e vinha, não tem gado, só uns veados e uns javalis, mas não em quantidade suficiente para manter um comedor”, refere o biólogo. O colega acrescenta: “Esta quantidade toda de grifos [que se vê aqui na herdade], por exemplo, é sinal de que há comida e que esta não está muito longe”.
Ainda assim, os técnicos garantem ao “DA” que os pontos de alimentação regular, existentes na herdade da Contenda, em Santo Aleixo da Restauração, no monte dos Lameirões, em Safara, e em três explorações na zona de Mértola, são bons substitutos da natureza e evitam “constrangimentos da ausência de alimentos”.
“Se nós lhe retirarmos a comida alternativa, como não há carcaças de espécies selvagens em quantidade, as populações caem. Os bichos fixam-se aqui, mas se não tiverem alimento num raio de 100 quilómetros a população acaba por cair e por desaparecer. Porém, a tendência atual é estar a crescer”, salienta Carlos Carrapato.
O seu papel sanitário De binóculos nas mãos, Carlos Carrapato e Nuno Ventinhas, de cima de um dos vales, vão observando um ou outro abutre-preto que sobrevoa e assenta no terreno. Ao “DA” admitem que o tempo húmido e frio da manhã permite que os avistamentos nos ninhos sejam mais usuais, uma vez que “eles preferem levantar voo com ar quente, porque com o calor é mais fácil de elevar o peso”, e “nestes dias frios ficam mais tempo pousados nas árvores”.
Em jeito de descrição da espécie, os técnicos do ICNF avançam que os abutres-pretos são “o maior pássaro” que existe em Portugal com “dimensões consideráveis”. Descrevem-nos como sendo “coloniais”, contudo, “apesar de gostarem de estar próximos uns dos outros, mantêm uma distância [entre ninhos] para terem uma certa privacidade”.
“Uma das suas principais características é ser o talhante chefe, porque é ele quem vai cortar as primeiras partes, as mais difíceis, e penetrar na carcaça, [sendo] um dos primeiros a comer”, explica Carlos Carrapato, adiantando que, fisicamente, é através da distribuição das penas pela cabeça que se conhece o tipo de alimentação que fazem sobre o animal morto.
“Os abutres-pretos têm penas até ao início do pescoço e um bico muito forte, então vão rasgar a pele da carcaça e comer as partes duras, musculares e mais nutritivas. Eles são os responsáveis por desmanchar a carcaça e permitir que as restantes aves necrófagas iniciem o seu processo de alimentação”, justifica.
É desta forma que os abutres-negros se assumem como um ótimo “agente sanitário”. Quando um animal morre, seja numa exploração ou não, estas espécies necrófagas ao se alimentarem dele “têm o papel sanitário de limpar o campo” e “controlar a propagação de eventuais doenças”, uma vez que “os sucos gástricos dos abutres e dos grifos conseguem acabar [com elas]”.
“Isto já foi demonstrado com estudos científicos. Os animais estavam em câmaras isoladas sem qualquer contacto com o exterior, foram inoculadas doenças em pedaços de carne e dado aos bichos e quando se analisaram as fezes não havia continuidade da doença, portanto, está demonstrado que eles são o grande agente sanitário da natureza”, conclui.
De regresso, com o sol a aparecer por entre as nuvens, o calor começa a fazer-se sentir. O relógio pouco passa das 11:00 horas e, para Carlos Carrapato e Nuno Ventinhas, é hora de deixar a herdade do Monte da Ribeira. Comentam entre si que conseguiram observar alguns dos cinco casais nidificados, porém, com o novo GPS, mais pequeno e sem a antena, não foi possível perceber se algum deles seria também o pequeno “Pousio”.“A cria saiu do ninho há 15 dias e os movimentos ainda são muito reduzidos, mas é bem provável que tenha sido um destes que passou”, admite Nuno Ventinhas.
Colónias de abutre-preto estão a crescerSegundo os últimos dados fornecidos pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), “após mais de meio século de declínio demográfico e ausência como nidificante no País”, o abutre--preto “restabeleceu a condição nidificante em Portugal em 2010, com algumas pequenas colónias”. Para além dos últimos 10 indivíduos adultos encontrados na herdade do Monte da Ribeira, no concelho de Vidigueira, estão identificadas mais quatro colónias: no Parque Natural do Tejo Internacional, na serra da Malcata, no Parque Natural do Douro Internacional e na herdade da Contenda, no concelho de Moura, com 20 casais, descoberta em 2015. Atualmente a espécie apresenta o estatuto de “criticamente em perigo”, no entanto, é considerada “de interesse comunitário e prioritário no contexto da ‘Diretiva Aves’”.