Um ano após o incêndio que consumiu 8,4 mil hectares no concelho de Odemira, os proprietários dos terrenos atingidos aguardam pela criação de uma área integrada de gestão da paisagem (AIGP), que permita “uma intervenção de fundo, planeamento e estruturação do território”. A candidatura está pronta, só falta o Governo “abrir o aviso” no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), sublinha o presidente da Câmara de Odemira.
Texto | Nélia Pedrosa Foto | José Serrano
Da floresta “linda”, autóctone, com árvores de grandes dimensões e antigas, que ladeava a estrada de terra batida que atravessa a pequena localidade de Vale d´Alhinhos, uma das mais fustigadas pelo incêndio que deflagrou a 5 de agosto do ano passado no concelho de Odemira, só sobreviveram os eucaliptos e os amieiros. Tudo o resto foi consumido pelo fogo que lavrou por 8,4 mil hectares durante cinco dias, obrigando à evacuação de duas dezenas de localidades. Cláudia Candeias, dona de 35 hectares de floresta naquele pequeno lugar da freguesia de São Teotónio, perdeu grande parte dos sobreiros e medronheiros existentes na propriedade, para além de instalações e material da reserva de burros gerida pela sua associação, a Arco do Tempo. Um ano depois o cenário mantém-se praticamente inalterado. Cláudia aguarda pela criação de uma área integrada de gestão da paisagem (AIGP), uma proposta do anterior governo, para avançar com o processo de reabilitação da sua propriedade.
“Depois do incêndio as pessoas mexeram-se e o presidente da Câmara de Odemira fez questão de ajudar. Pediu-nos, então, para formarmos uma cooperativa – a Terra Seixe –, porque o Governo, na altura, dizia que ia criar aqui uma AIGP, que permitisse tornar a área devastada pelo incêndio mais resiliente aos fogos. Seria a primeira em Portugal que nasceria de um pós-incêndio. E nós ficámos contentes, porque seria um projeto a longo prazo, com apoios durante 20 anos. Seria uma coisa consistente, em que seria feita a reflorestação e posteriormente a manutenção. Além disso ia-se repensar o território e fazer um planeamento a nível da floresta, agricultura e pecuária. Estávamos todos muito entusiasmados. Formámos a cooperativa há cerca de cinco meses, cumprimos os requisitos todos, temos a câmara que nos apoia, o ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] também, já temos a memória descritiva, o projeto todo feito, e agora mudou o governo e eles estão com ideias diferentes e então estamos muito apreensivos”.
Cláudia Candeias, que é também presidente da recém-formada cooperativa, adianta que o atual governo diz que o projeto de constituição de uma AIGP “está em cima da mesa e estão a ponderar”, justificando que “em outras AIGP as operações não foram feitas de acordo com o que esperavam”. A responsável garante que a intenção da Terra Seixe “é fazer uma coisa como deve ser” e que não têm “culpa que noutros sítios não tenha resultado”. “Já criámos a cooperativa, temos engenheiros que estão connosco, várias associações ligadas à floresta que iam apoiar-nos, temos a Rota Vicentina na cooperativa, vários turismos rurais, a minha associação [Arco do Tempo], a Arbutus [Associação para a promoção do Medronho], e criámos esta cooperativa com o intuito de dar voz aos proprietários e às pessoas que têm aqui negócios e conseguirmos ir com isto para a frente, florestar e tornar este território resiliente aos fogos, mas também que possa ser produtivo, para que fixe aqui os proprietários”, reforça, frisando que, após um incêndio, “a natureza vem por ela própria e regenera-se, o problema é como é que vem”. Por isso, defende, “esta restruturação tem de ser pensada, porque, se não, daqui a uns anos arde tudo outra vez. E tudo o que é construído durante 20 anos é como se fosse nada. Os meus sobreiros arderam quase todos, porque tirei a cortiça 15 dias antes. Se calhar temos de pensar se vale a pena tirar a cortiça a certos sobreiros ou se é preferível manter para não perdermos as árvores mais antigas, centenárias”.
Caso o projeto do AIGP não avance, diz, a reabilitação da sua propriedade “irá ser muito lenta, irá demorar anos”. A reserva de burros é que muito provavelmente não voltará a Vale d’Alhinhos, onde estava instalada desde a primavera de 2022. “Se não conseguir colocar isto em condições para os animais… nós tínhamos um plano muito específico, íamos fazer uma ponte de madeira para eles atravessarem, fazer um circuito… como se pode ver, agora não há caminhos sequer. Tem de se trazer máquinas para tirar a madeira que está queimada. É muito trabalho”. Independentemente do desfecho, revela, a única certeza é que quer avançar com a reconstrução de uma ruína existente na propriedade destinada a habitação própria. Ao contrário de outros proprietários, “que estão a querer vender porque não conseguem já lidar com a situação”, recusa-se a abandonar Vale d’Alhinhos.
“Gosto muito desta zona e quero continuar aqui. Mas é deprimente ver árvores que eram centenárias queimadas, das árvores mais importantes. E depois também porque é muito trabalho, já dá trabalho gerir 35 hectares, agora queimados ainda mais. Venho aqui à sede da associação buscar e levar material e vou-me embora, porque custa-me muito estar aqui”, admite Cláudia Candeias, sublinhando que, no seu caso, “é muito difícil contabilizar” os prejuízos. “Não faço ideia, a floresta é uma coisa muito rica hoje em dia, não é? Rica, principalmente, até para o planeta. Acho que isso nem sequer tem um valor financeiro, porque podemos rentabilizar uma floresta de várias maneiras. E era essa a nossa ideia. Neste momento está tudo em stand by”.
Incêndio, aliado a seca, obrigou a redução de efetivo A escassos quilómetros de Vale d’ Alhinhos, junto ao parque de campismo de São Miguel, para onde foram, numa primeira frase, evacuados os habitantes das localidades afectadas pelo incêndio – como foi o caso de Cláudia Candeias e também da sua reserva de burros –, fica situada a exploração agrícola de Maria Rosa Duarte. No incêndio de há um ano foram consumidos 40 hectares de pastos, cerca de 80 por cento da propriedade, mas, “felizmente, não houve perdas de efetivos”, que, então, “rondavam as cento e poucas cabeças de gado” bovino. “Houve só cascos queimados, porque as vacas passaram junto ao incêndio. Mas não houve perdas, houve despesas com os veterinários, mas não morreram animais”, reforça Luís Viana, um dos filhos de Maria Rosa, adiantando que o prejuízo rondou os 80 mil euros, “também por causa da cortiça, porque ardeu algum montado”, para além “de pastagens, tubos e vedações”. “Os bombeiros intervieram rápido e cedo, só que com os ventos não deu grandes hipóteses. Eram zonas com muito mato e com grandes declives. Foi uma aflição. Juntámos aí a família toda e amigos e tentámos também combater o incêndio junto da exploração. Ainda conseguimos salvar algum feno e algumas zonas porque estavam limpas, porque onde os animais pastavam não havia muita coisa para arder”, recorda.
Devido ao incêndio, “aliado à seca” registada no ano passado, que levou ao encarecimento das “forragens”, foram entretanto obrigados a “reduzir o efetivo em metade”. E só não acabaram com a exploração familiar porque “houve muitas ofertas de fenos”. “Dr. Rui, o veterinário aí da zona, conseguiu angariar junto de outros agricultores alimentos, rações e fenos, foi isso que nos salvou, porque, se não, os dias a seguir tinham sido uma desgraça, porque os animais não podem estar sem comer à espera de candidaturas e de verbas. Depois, em vez de gastarmos o dinheiro em comida, optámos por vender muitos animais. O valor dos animais também estava baixo. Não compensava economicamente estar a fazer um investimento em comida e depois o animal não pagar esse investimento”, esclarece Luís Viana.
Em termos de apoios, até ao momento, receberam 3500 euros, via Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, para “os alimentos dos animais”, um valor que consideram irrisório. De resto, têm vindo a reparar “aos poucos”, sobretudo, as vedações, porque “os sistemas de água foram reparados de imediato, dado que não havia alternativa”. Luís Viana espera, agora, tal como Cláudia Candeias, que com a criação da AIGP ainda possam obter alguns apoios para a requalificação “da zona da floresta” ardida. “Ainda tenho esperança…”.
No Monte West Coast, um turismo rural que se estende maioritariamente por um vale junto à ribeira de Seixe, já na fronteira com o Algarve, os vestígios do incêndio começam a ser disfarçados pela natureza. “Ainda há sinais, mas é mais no topo das montanhas. Na parte do vale, como podem ver, já está totalmente recuperado, até porque é uma área muito luxuriante, com muita água, com muita natureza e rapidamente recupera…”, sublinha Ricardo Pinho, o proprietário, aditando que “quem está aqui como cliente já não se apercebe [que houve um incêndio]”. Catarina, a mulher, acrescenta: “Os medronheiros queimam-se, mas rebentam de raiz, portanto, já estão com um metro e qualquer coisa. Não vamos ter produção de medronho neste ano, nem se calhar nos próximos dois, mas pelo menos não é preciso replantar, vai recuperar. Agora, tudo o que eram árvores que não aguentam com o fogo, a maior parte foi”.Quando o incêndio deflagrou, em plena época alta, o Monte West Coast estava “com as reservas completas”. Os hóspedes acabaram por ser evacuados para São Miguel, o casal ficou alojado em casa de amigos. “Achámos que isto ia arder tudo. No último dia fui dormir, evacuado, e tinha a certeza que ia arder tudo. Quando o staff de manhã me disse que as casas não arderam, nem queria acreditar, porque era uma bola de fogo a passar pelo vale. Foi avassalador”, confessa o proprietário, adiantando que as casas “sobreviverem” porque estão “muito bem preparadas” com “mecanismos anti-incêndio”. “Tínhamos as casas todas construídas com janelas com vidros térmicos, sem madeira por fora, e, mesmo nas casas em que o fogo chegou a lamber as paredes, nunca conseguiu entrar. Temos terraços de tijoleira da zona, com muros de pedra. O facto de usarmos esses materiais da região foi suficiente para o fogo nunca conseguir entrar nas casas”. Para além disso, tinham “um exército de ovelhas e de cabras que limpam o mato todo à volta das casas”.
Ainda assim, os prejuízos – não contabilizando “as árvores [sobreiros e pinheiros] perdidas e a paisagem, que é talvez o mais significativo”, frisa o casal – rondaram os 300 mil euros, incluindo danos em algumas infraestruturas elétricas e na piscina, “vidros estilhaçados”, mas também “as perdas de exploração, de tesouraria”, uma vez que tiveram de “devolver o dinheiro aos clientes que já tinham feito reservas”.
Sensivelmente oito meses após o incêndio, o Monte West Coast, que se insere numa propriedade de cerca de 220 hectares, reabriu portas, recuperando “muito mais rápido” do que as previsões dos proprietários. Para a reabilitação do espaço o casal contou com a indemnização da seguradora, apoios públicos do Turismo de Portugal e capitais próprios.
“No fundo, os nossos mecanismos funcionaram, claro que isto ficou tudo queimado, mas tivemos um inverno em que começou a chover muito cedo, logo em setembro, e choveu o inverno todo. A vegetação foi recuperando e nós conseguimos reabrir em abril”, diz Ricardo. Catarina sublinha, porém, que, em termos de reservas, estão a “80, 90 por cento”. “Ainda vai demorar vários anos para a natureza voltar ao que era. E os nossos clientes são sensíveis à beleza da paisagem. E não é só aqui na nossa herdade, é a toda a volta. Andar a passear na zona e ver os troncos todos queimados não é uma boa experiência…”, considera. Apesar disso, mostram-se otimistas. “Os clientes não procuram só a praia, procuram também a natureza. E nós aqui, na propriedade, temos um ecossistema com lontras e peixes incríveis, pássaros incríveis. Temos tartarugas, cágados e árvores espetaculares”. Quanto à AIGP, Ricardo Pinho diz que se esta não se concretizar, não irá avançar com a reflorestação da sua propriedade, “porque os investimento são enormes” e “do pondo de vista económico não são rentáveis”. “Isto tem de ser coordenado com o ICNF, com outras entidades, numa lógica de pro bono para a sociedade, porque temos um dos vales mais imaculados do País”, conclui.
Câmara de Odemira reclama verbas do PRR para tornar território mais resiliente
O “Diário do Alentejo” tentou obter um comentário junto do presidente da Câmara de Odemira, mas tal não foi possível em tempo útil. Contudo, em declarações à “Lusa” no final da semana passada, Hélder Guerreiro salientou que a criação de uma AIGP no território devastado pelo incêndio, já determinada numa resolução do Conselho de Ministros, permitiria “uma intervenção de fundo, planeamento e estruturação do território para o futuro”, como, por exemplo, “substituir eucaliptal por áreas de arvoredo autóctone”. “Fizemos tudo. Só falta o Governo abrir o aviso”, no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para “o ICNF [Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas] avançar com a candidatura e podermos ter uma AIGP naquele território”, afirmou. Questionado sobre o valor previsto para financiar as ações contempladas pela AIGP, Hélder Guerreiro disse que a candidatura “precisa de ser ainda estruturada”, mas apontou que será “sempre acima de seis milhões de euros”. O autarca destacou, ainda, o trabalho feito pela câmara com o ICNF no período que se seguiu ao fogo, nomeadamente, na reposição de condições do terreno, limpeza de cursos de água ou desimpedimento de passagens. De resto, considerou que, após o incêndio, os ministérios da Agricultura e da Economia deram “uma resposta rápida e estruturada” com apoios aos moradores, empresários e até autarquias com prejuízos. “Todos precisaríamos eventualmente de um apoio maior, mas o apoio inicial foi positivo e grande parte das pessoas afetadas que tinham atividades económicas não informais foi-lhe permitido esse apoio”, defendeu. O presidente do município reconheceu que, em relação a casas não licenciadas ou precárias, os proprietários “não tiveram essa possibilidade de apoio”, mas garantiu que para os que ficaram sem alojamento foi encontrada uma solução.