Diário do Alentejo

despedida

06 de julho 2024 - 08:00
Prestes a deixar a diocese de Beja, D. João Marcos faz o balanço dos seus oito anos de episcopado

Ao fim de oito anos, D. João Marcos passa o testemunho de bispo de Beja, no domingo, 7, a D. Fernando Paiva. “Aquilo que me espera aqui é um tempo difícil em que há coisas que acabam e não sei o que é que vai começar”, pensou, quando assumiu os destinos da diocese em novembro de 2016. Em entrevista ao “Diário do Alentejo”, D. João Marcos percorre as questões que marcaram o seu episcopado: da diminuição de fiéis aos casos de abusos sexuais na Igreja, passando pela situação financeira complicada que encontrou e a extinção do Departamento do Património Histórico e Artístico.

 

Texto  Marco Monteiro Cândido/Nélia Pedrosa Fotos Ricardo Zambujo

 

Assumiu a liderança da diocese de Beja a 3 de novembro de 2016, sucedendo a D. António Vitalino Dantas. Quais são as grandes diferenças entre a diocese de então e a diocese que agora deixa?

A diocese é a mesma, as pessoas… os idosos vão morrendo, os novos saem e isso nota-se bastante nas assembleias dominicais. Há, realmente, uma mudança. O número de praticantes tem diminuído um bocadinho, mas mantém-se um pouco o mesmo esquema. As pessoas não são muitas, mas são muito conscientes da sua fé, isso por comparação – embora seja complicado comparar – às pessoas do norte, onde ser católico pertence, mas até certo ponto. Aqui as pessoas levam a coisa mais a sério. São menos, mas a qualidade de vida cristã é melhor.

 

Mas qual é o balanço que faz do trabalho desenvolvido?

O trabalho que fomos fazendo foi sugerido e acompanhado, também, por aquilo que encontrei: uma diocese em pleno Sínodo Diocesano, o que foi bem preparado por D. António Vitalino [Dantas], meu antecessor. Num momento em que a diocese para e se pergunta: ‘quem somos nós, o que está bem, o que é preciso mudar?’. Em 2016 presidi a três sessões deste sínodo e redigi a constituição sinodal, ou seja, um texto resumo para a diocese, que responde a estas perguntas: quem somos nós, o que é o ministério da Igreja, o que é isto de ser Igreja e o que é que pretendemos que seja a Igreja de Beja daqui para o futuro.

 

Quando chegou, como referiu, estavam num momento de sínodo, de introspeção, até de autoavaliação da diocese. Em 2020 referiu que o seu episcopado era uma espécie de “fim de verão”, no sentido de transição entre uma realidade que terminava e uma nova que começaria. Isso vem no sentido da reflexão que foi feita?

Seguramente que sim… Esta diocese chegou até nós [devido] a D. José do Patrocínio Dias [bispo de Beja entre 1922 e 1965]. A diocese estava a zero, quase. D. José do Patrocínio Dias foi mal recebido na diocese, puseram-lhe bombas na Sé, na casa onde morava. Ele ria-se. Tinha sido capelão militar na guerra e estava habituadíssimo a bombas. Esteve aqui 40 anos como bispo e a diocese emergiu. O seminário foi feito por ele. Transformou a Sé, que era uma igreja paroquial antiga, em catedral. O que a diocese é, ainda hoje, em grande parte, é o que D. José do Patrocínio Dias fez. Mas há coisas que correram bem e outras que não. A questão do mosteiro do Sagrado Coração de Jesus, das monjas Carmelitas, não correu bem.

 

Porquê?

As pessoas que ficaram à frente tinham as suas dificuldades em viver a fé católica e isso numa casa cujo objetivo é exatamente esse. As vocações não apareceram. A certa altura, inevitavelmente, o mosteiro foi desativado. Existe, mas neste momento não tem lá ninguém. É uma situação complicada, muito dolorosa para o bispo que teve de o fechar, obedecendo a Roma. O “Notícias de Beja”, o jornal da diocese, também terminou como jornal impresso. Há uma série de coisas que terminam. Para quê? Para que surja uma realidade mais adaptada a este tempo que vivemos. O Colégio de São José, por exemplo, que já vai no seu terceiro ou quarto ano, está a ser uma experiência muitíssima positiva. Claro que estas mudanças são sempre dolorosas.

 

Em relação ao mosteiro, uma das suas intenções era que viesse uma nova comunidade…

Era e é.

 

E por que é que ainda não foi possível?

Os mosteiros são casas onde se vive segundo uma norma. Quando alguém pergunta: ‘mas o que é isso de ser cristão?’ Podemos dizer: ‘vai a um mosteiro e vê’. Quando no século XIX os mosteiros foram suprimidos, a Igreja deixou de poder dizer ‘vinde e vede’. Aí começou a falar-se do cristianismo como um ideal de vida (…) o problema do ideal é que parte do homem e regressa ao homem. O cristianismo, não. O cristianismo parte de Deus para nos levar a Deus. D. Manuel Clemente, que é historiador, diz que no século XIX a Igreja portuguesa perdeu o ser, ficou com o fazer e isso é o problema. Nós fazemos coisas, a Igreja trabalha muitíssimo, se pensarmos nas misericórdias, nos centros sociais. Se a Igreja deixa de fazer essas coisas o País entra em colapso. Também há o problema, hoje, das vocações. Tem a ver com esta sociedade em que vivemos. As famílias hoje não são como eram no século XVIII ou XIX. Há muito menos nascimentos, e, portanto, menos vocações sacerdotais, menos vocações celibatárias. O convento pertence às irmãs Carmelitas e elas estão dispostas a refundar esta comunidade, não têm é meios humanos. Há uma comunidade brasileira que veio ver o mosteiro, mas também não me pareceu muito interessada, porque é uma casa grande, com bastantes gastos.

 

Ao longo destes oito anos de episcopado, como foi olhando para questões como a exploração de trabalhadores imigrantes, o aumento de pessoas em situação de sem-abrigo, o agravamento das condições socioeconómicas das famílias? Que tipo de responsabilidade deve assumir a Igreja para atenuar ou inverter estes cenários? Que respostas tem a diocese procurado dar?

Há misericórdias na diocese que têm uma área de serviços impressionante, por exemplo, a de Sines, a de Grândola. Em Beja havia uma casa do estudante, do padre Joaquim Fatela. O senhor faleceu, ficou um grupo à frente da casa e resolveu terminar esse trabalho. A diocese herdou essa casa e pô-la ao serviço da Cáritas, que a tem usado para acolher imigrantes e tem feito um trabalho bom. A Cáritas tem sido, e continua a ser, uma instituição muito, muito, ativa, também a nível das paróquias. O número de refeições que se dão todos os dias são centenas. São coisas de que não se falam porque na Cáritas e nas coisas da Igreja o importante não é propagandear as coisas, é fazê-las. Há muita coisa que se faz e que fica entre quem a faz e quem a recebe.

 

Falou de duas misericórdias que são um exemplo, Sines e Grândola. Mas são misericórdias do litoral, não se referiu a nenhuma do interior. Há diferenças no funcionamento, nos apoios?

Cada misericórdia é diferente. A Misericórdia de Beja também é uma misericórdia notável, criada já no século XV. Há outras que têm mais dificuldade, também depende um bocadinho do espírito como se fazem as coisas, um bocadinho… um bocadão [risos]. O problema é quando em vez do Espírito Santo as pessoas têm outros espíritos [risos] e isso também tem acontecido. Mas posso garantir que a Cáritas de Beja está a fazer um ótimo trabalho.

 

A pandemia teve um especial impacto no normal funcionamento da diocese e, consequentemente, nas suas receitas, chegando a afirmar que a situação era “periclitante”. Como está a saúde financeira da diocese?

Tenho de confessar que não encontrei as coisas no “são” e as pessoas que estavam permaneciam agarradas a situações que, num caso ou noutro, não eram corretas e isso bloqueou um bocado o trabalho que era necessário fazer. D. Manuel Falcão [bispo de Beja entre 1980 e 1999] deixou em testamento, durante 10 anos, o rendimento de uma empresa em que ele também era sócio. Durante 10 anos recebemos todos os meses entre quatro a cinco mil euros, e isso dava uma certa estabilidade, no entanto, aconteceu o que aconteceu com o departamento de arte sacra e de história, com José António Falcão, e foi complicado…

 

Uma das primeiras decisões que tomou, em 2017, menos de seis meses depois de assumir o episcopado, foi a extinção, precisamente, do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. O que aconteceu realmente?

O departamento foi extinto e criámos uma comissão diocesana de arte sacra. Coloquei o padre Manuel António [do Rosário] à frente dessa comissão e tem trabalhado bastante bem.

 

Mas o que o levou a extinguir o departamento. Não havia o tal “espírito santo”, como referiu há pouco?

Não.

 

Então?

O Espírito Santo faz de nós servos, põe-nos ao serviço dos outros. Quando uma pessoa se põe a si própria no centro e busca os seus interesses pessoais e tudo o resto são pretextos [silêncio] a coisa não funciona.

 

Mas a forma como o departamento estava a ser conduzido também teve implicações na saúde financeira da diocese?Sim.

Em que medida?

São coisas sobre as quais é preciso termos muito tento a falarmos, porque são coisas complicadas e não quero pôr mais lenha nessa fogueira. O doutor José António Falcão trabalhou bem, humanamente, era um homem criativo, no entanto, as maneiras de fazer as coisas não eram corretas. E foi necessário a certa altura suprimir o trabalho dele. Para mim foi duro, mas a grande maioria dos padres ficou muito contente por eu ter acabado com o departamento.

 

Depois da extinção do departamento foi criada a referida comissão de arte sacra, que, em 2020, estava a restituir o espólio que se encontrava, na sua maioria, no seminário e na igreja de Santiago do Cacém. Quatro anos depois, qual é o ponto de situação?

Esse espólio foi restituído aos seus donos, às paróquias. Houve também uma série de móveis góticos que estavam em Santiago do Cacém e que tinham sido comprados em Inglaterra pelo Estado para mobilar a torre de Belém e que foram restituídos ao Estado, que já não sabia deles.

 

E qual era a justificação para não estarem onde era suposto?

[Silêncio] O doutor José António Falcão esteve 33 anos à frente desse departamento, aprendeu a funcionar dentro deste esquema [silêncio]. Os bispos, no princípio, confiavam nele, depois… temos aí a cópia de uma carta que D. Manuel Falcão enviou a José António Falcão em que que o critica. Verdadeiramente, encontrámos situações nada claras, nada claras, [silêncio] não vou dizer mais nada a este respeito, mas foi uma questão de aclarar a situação…

 

Neste momento já se fez luz sobre essas situações?

Sim. Lembro-me que veio de Beringel, umas duas ou três vezes, um grupo de pessoas a pedir que restituíssemos as coisas que tinham sido levadas da igreja. Eu não sabia de nada, naturalmente, mas essas coisas estavam realmente nas mãos do José António, isto vinte e tal anos depois da exposição em que estiveram expostas.

 

Iniciou o seu episcopado em 2016 mas esteve dois anos como bispo coadjutor. Já nessa altura tinha alguma noção dessa situação?

D. António Vitalino teve bastantes problemas com José António Falcão e não se deixou “atar” por ele. Eu até cheguei a pensar – aliás, chegámos a falar disso – que o D. António Vitalino iria acabar com o departamento. Ele deixou isso para mim. Do ponto de vista do episcopado dei o golpe de machadada [risos], mas a coisa estava muito mal já há bastante tempo.

 

Voltando à questão da saúde financeira…

Hoje a coisa está equilibrada. Sem esse dinheiro que vinha da herança de D. Manuel Falcão a diocese perdeu bastante. Nestes últimos dois anos a família de D. Manuel Falcão foi muito generosa para com a diocese, muito, e continua a ser. Eu quando cheguei pensei: “tenho de fazer isto, tenho de fazer aquilo…”, e disse para comigo: “aquilo que me espera aqui é um tempo difícil em que há coisas que acabam e não sei o que é que vai começar”. A diocese como organismo tem normas, há o direito canónico que vai muito além do que eu possa pensar que devo fazer ou não. Há normas concretas que é necessário atender (…) nesta diocese as pessoas foram-se agarrando àquilo que podiam e código do direito canónico nada [risos].

 

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Mas a diocese já conseguiu recuperar financeiramente agora que a pandemia, em que houve diminuição de celebrações e peditórios, já passou?

Sim, recuperar até certo ponto, ou seja, o meu sucessor tem o caminho aberto e limpo para continuar e penso que é um homem extremamente justo e muito capaz de por as coisas no seu lugar [risos]. Fiquei muito contente com a escolha. É um engenheiro, é um homem que usa a razão, mas dentro dos critérios do evangelho.

 

Sublinhamos a expressão que usou, “tem o caminho limpo”… Quando tomou posse não tinha o “caminho limpo”?

Pois não, e não por culpa dos bispos, mas por situações concretas que se foram criando e que foram perdurando…

 

Extinguiu o departamento, opôs-se ao uso de igrejas para a realização de certos concertos e encerrou outras – e também o Carmelo do Sagrado Coração de Jesus –, criou o seminário Redemptoris Mater, que é ligado ao Caminho Neocatecumenal… São isto sinais de conservadorismo?

[risos] É a visão possível para quem vê as coisas de fora. O cardeal Cerejeira quando morreu foi estigmatizado como “o cardeal do Salazar”. Os historiadores agora põem Salazar num lado e o cardeal no outro [risos]. Veem o Salazar que persegue os padres progressistas e o cardeal que os defende. O cardeal Cerejeira manteve sempre relacionamento com o Salazar, mas criticou-o duramente. Aqui é um bocado isso também. O bispo conservador? O bispo tem de ser conversador [risos]. A fé católica não é inventada por mim, nem pelo Papa Francisco (…). Não me preocupo muito com aquilo que as pessoas dizem ou possam dizer do meu episcopado. As festas que fizeram nos 50 anos da minha ordenação de padre [domingo, dia 23 junho] e também no Carmo [dia 24] consolaram-me muito. Muitas destas pessoas conheço-as, mas nunca falaram muito comigo, outras falaram bastante. Houve problemas com esta e com aquela, mas tudo se encaminhou. Sou um homem limitado como todos somos, não tenho a ideia de ser um génio [risos]…

 

Mas considera que isso poderá ter afastado mais pessoas da participação na vida comunitária da diocese? Não terá dificultado o processo de evangelização que assumiu como uma das suas prioridades?

Há pessoas que estão dentro da Igreja porque receberam o batismo, fizeram a primeira comunhão, casaram na Igreja, mas, verdadeiramente, a fé que têm é predominantemente religiosa, ou seja, o cristianismo não cabe aí. O cristianismo enche a vida da pessoa. A religião tem o seu quê de natural, portanto, as pessoas são religiosas. Quem sou eu, qual é a minha missão aqui, por que é que eu nasci? Há umas quantas perguntas que cada um de nós tem de responder, de uma maneira ou de outra, melhor ou pior, e o aprofundar da fé cristã leva-nos de uma atitude de abertura possível para uma certeza (…) de que Deus cumpre aquilo que promete, a vida eterna. Se eu tenho uma fé apenas religiosa, em que o centro sou eu e não Deus, aí não se chega a esta certeza de que Deus cumpre aquilo que promete e uma pessoa fica centrada em si e morre centrada em si.

 

E nesse sentido de mudar o paradigma, ao longo destes oito anos, que papel teve o Caminho Neocatecumenal na diocese?

Aqui há comunidades das primeiras do País, em Beja. Quando vim para aqui como bispo, um padre, Mario Pezzi, que é um dos iniciadores do Caminho, a nível mundial, com o “Kiko” [Francisco Gómez Argüello] e com a Carmen [Hernández], veio cá visitar os seus antigos catecúmenos e também a mim. Foi ele que me anunciou o Caminho. Portanto, o Caminho para mim é um meio ótimo de ajudar as pessoas nesta passagem da fé religiosa para a fé de homens, digamos. E pronto. E a minha pregação tem sempre isso como base. Há quem faça uma evangelização de outro género e também anuncie Jesus Cristo, mas o Caminho Neocatecumenal dá este percurso de anos em que a pessoa vai caminhando com os outros. Porque o cristianismo que nós herdámos é um cristianismo muitas vezes… teórico. Ou seja: “Está bem, eu acredito em Cristo, mas não quero nada com os outros. Não me venham chatear com os problemas dos outros”. Isto é cristianismo? Ah, um bocado coxo. Portanto, há muita gente na Igreja que não entende o Caminho Neocatecumenal. Também aqui nesta diocese há muita gente que não gosta do Caminho Neocatecumenal.

 

Mas porquê? No seu entender por que é que que isso acontece?

Haverá muitas razões, não é? Por mim, lembro também dos tempos em que eu não engraçava com o Caminho. Porque cria-se uma ideia errada dentro de nós.

 

Disse que há pessoas na diocese que são contra o Caminho. O facto de ser um defensor do Caminho poderá ter afastado alguns fiéis da Igreja?

Da Igreja, não. Quer dizer, eu, ao nível de leigos, nunca encontrei gente [que dissesse] assim: “Você é do Caminho, não o queremos cá!”. Não. Ao nível dos padres, já foi um bocadinho diferente. Mas, eu nunca falei do Caminho. Porquê? Porque o Caminho vê-se, mais do que ouvir-se, vê-se. E isso, quem tem olhos na cara que veja.

 

E também aplicou esse princípio à diocese?

Sim, sim…

 

Mas criou o seminário Redemptoris Mater…

Porque eu pedi um padre ao Caminho. E o padre Mario Pezzi disse: “Olha, padres não te podemos dar. Podemos é dar-te um seminário Redemptoris Mater”. E eu não estava muito convencido de que isso fosse muito possível aqui, dadas as circunstâncias da história da diocese. “Mas, é pegar ou largar!”. “Então, olha, pego”. Na altura houve protestos e mais isto e mais aquilo, mas neste momento o seminário está bem.

 

Protestos dentro da diocese?

Sim.

Em que sentido?

As pessoas não... Há aí problemas pessoais, coisas, enfim, muita coisa. Mas, graças a Deus, o Caminho não... Quer dizer, como desde sempre a minha política foi essa, às vezes imposta por quem mandava, tudo bem. Ou seja, não faço propaganda do Caminho.

 

Antes de ter chegado cá já havia comunidades na diocese ligadas ao Caminho. Depois do seu episcopado, essas comunidades saíram reforçadas?

Eu, quando vim, disse-lhes isto: “Eu sou bispo para todos. Para o Caminho também sou, mas sou para todos”. Os cursos de cristandade também evangelizam. Prometi-lhes isto: que não os favoreceria. Ou seja, o Caminho cresce na terra que tem. Às vezes é uma terra árida, seca, outras vezes é uma terra mais favorável, mas, como está escrito na Sagrada Escritura, é um rebento em terra árida muitas vezes. E, portanto, penso que foi bom eu ter esta atitude em relação ao Caminho. Fui celebrar a eucaristia com eles, mas, a certa altura, também não fui sempre que podia ir. Fui quando me pareceu que era bom ir. Portanto, não os desprezei – isso seria desprezar a minha história também, de certa maneira –, mas também não os favoreci. Tenho isso muito claro.

 

Apesar dessa sua equidistância, essa comunidade saiu reforçada?

O futuro o dirá. Neste momento, penso que sim. Uma característica do Caminho é a abertura à vida. Os pais transmitem a fé aos filhos também. A ligação à Igreja na paróquia é importante, mas há coisas que pertencem à família mesmo, como a transmissão da maneira de estar no mundo. E isso, estes pais, levam a sério.

 

Por que é que teve essa necessidade de dizer que não os desprezaria, mas que também não os favoreceria? É porque há, entre aqueles que percorrem o Caminho, algum preconceito para quem não o faz, como se fossem cristãos de primeira ou de segunda linha?

Não, isso não existe no Caminho. No Caminho, digamos, aprendemos a amar os inimigos, e, quando alguém nos persegue e diz mal de nós, achamos que é normal. E, portanto, aceitamos. Ou seja, o “Kiko” diz: “Os inimigos sempre nos ajudam, sempre”.

 

Mas talvez essa comunidade estivesse à espera que os pudesse favorecer de alguma forma, e daí a necessidade de dizer que não…

Cada um é diferente. Há outros bispos do Caminho que têm feito diferente de mim, e que também se metem em problemas e em coisas que, a meu ver, depois não ajudam nada. Eu lembro-me de um bispo, no Brasil, (…) chegou à diocese, conheceu o Caminho e quis impô-lo a toda a gente. Foi o cabo dos trabalhos, porque as pessoas são pessoas e é necessário respeitá-las como pessoas. E, portanto, eu sempre fiz isso. Ou seja, para mim foi importante isto de aprender a ser padre e a ser bispo para todos. Portanto, não [só] para os do Caminho, para todos. Qualquer padre pode testemunhar, que eu me lembre, que não houve encerramento nenhum de cursos de cristandade em que eu não estivesse presente. Estou muito tranquilo com as contas que hei de dar a Deus por isso.

 

Em 2016 a diocese de Beja já apresentava os mais baixos índices de prática dominical. Isto mantém-se?

Penso que sim. Não tenho assim números, mas penso que sim. Não temos elementos para poder dizer que houve menos gente. Isto é um sentimento que temos, mas até ao momento não houve uma contagem da prática dominical, assim, séria.

 

Mas a diocese tomou algumas medidas no sentido de inverter essa diminuição? O que é que não resultou?

Claro que sim. [silêncio] Eu não quero falar mal de ninguém… [risos] Mas, pronto, vejo que… [hesitação] Isso de eu ser do Caminho pode ter sido um travão nesse sentido. Isso, se calhar, mais a nível do clero do que ao nível das pessoas. [silêncio] E é isso… Portanto, vamos ver. Este bispo [D. Fernando Paiva] não vem do Caminho [risos]. Penso que está a ser bem recebido. Ele ainda não entrou, mas já cá tem vindo várias vezes. Temos falado bastante e penso que é o retomar de uma prática mais coerente, digamos. Porque eu tive um AVC, aqui há uns anos. Esse AVC limitou-me bastante. E essa limitação prejudicou-me e prejudicou a diocese. Nessa altura eu pedi para ser substituído. E de Roma responderam-me que aguentasse. E aguentei.

 

Falou na falta de vocações. Qual é o ponto de situação na diocese em termos do número de sacerdotes? E como é que se gere a segunda maior diocese a nível nacional havendo falta de padres?

Os padres têm uma prática, digamos, heroica. Muitos deles não têm tempo para coisa nenhuma, porque estão completamente apanhados pelo serviço das pessoas. Isso para mim tem sido um exemplo muito positivo. Claro que nem todos têm aquele amor a Cristo e aquela… mas eu aprecio bastante o trabalho deles e dou graças a Deus por eles. É assim, é confiando na providência de Deus. É verdade… Eu tenho evitado bastante admitir padres que venham de fora. Temos aí vários e alguns bastante bons, mas, como norma, se vêm de outra realidade, chegam aqui, muitos deles querem implantar aqui a sua realidade. Ou seja, esta diocese tem uma história, as pessoas são como são. No litoral há uma grande fatia de pessoas que vieram de outros sítios e que, portanto, têm tradições que aqui no Alentejo se perderam ou nunca existiram, não sei. E, portanto, estes padres de fora muitas vezes fazem problemas, problemas grandes. Tivemos alguns casos complicados a esse nível. Para mim, sempre que um padre sai – e tenho deixado sair alguns também –, é um problema grande. Quem é que vou pôr no lugar dele? Os padres que temos são os que são, mas, enfim, graças a Deus, não são muito idosos na sua maioria. Mas isso é um problema: quando um padre sai, quem é que vou pôr ali?

 

Quantos padres é que existem na diocese neste momento?

Temos 40 padres.

 

E o que é que seria o número desejado?

Bem, o normal seria uns 100, por aí. Temos 119, 120 paróquias.

 

Referiu que também havia menos vocação religiosa no Alentejo. Como é que se inverte esta situação: pouca vocação religiosa e depois precisar de padres que sejam da região?

As vocações existem. O problema está em suscitá-las, acompanhá-las. Porque o Alentejo tem dado vocações para franciscanos, para religiosas também, carmelitas. Também no seminário [diocesano] temos dois rapazes, um já no final do curso e outro ainda um pouquinho mais atrasado. No seminário Redemptoris Mater também temos dois rapazes. Estão a viver no seminário Redemptoris Mater de Évora, porque dois rapazes não fazem seminário, são de menos.

 

O seminário Redemptoris Mater também pretende pastores com uma vocação diferente dos restantes…

Cada seminarista é diferente, não é?

 

Quando foi criado, em 2017, o seminário Redemptoris Mater de Beja (sediado em Alvito) recebeu seis seminaristas. Desses, quantos ficaram aqui na região?

Vamos ver. O seminário cresceu com muita dificuldade. Ou seja, havia rapazes que estavam ali porque não sabiam o que queriam. Foram e pensaram: “Vou para o seminário”. E, um fulano assim cria mau ambiente. E isso aconteceu um bocado aqui no seminário...

 

Mas o seminário Redemptoris Mater teve os resultados esperados ou não?

As dificuldades, pois são… Não teve assim dificuldades maiores do ponto de vista económico e assim, porque as comunidades apoiam bastante o seminário.

 

Neste momento só têm dois seminaristas?

Só. Só, porque foram os que ficaram. Um saiu, outro saiu, outro saiu… Ou seja, a coisa não… eles não receberam…

 

E agora, com a sua saída de Beja, como é que acha que vai ficar o seminário, uma vez foi criado no seu episcopado?

Pronto, com a minha saída, o seminário fica nas mãos de Deus, que o criou, e será o que Deus quiser.

 

No próximo dia 7, será D. Fernando Paiva que entrará na diocese oficialmente. Que tarefa é que augura para o seu sucessor?

Que seja ele mesmo, que apascente, como já se viu que tem feito como pároco. Fiquei contente com a eleição dele. Portanto, não tenho muito a dizer-lhe, a não ser informá-lo das coisas. Levá-lo também a ver a diocese. Nesse sentido, vou permanecer aqui também, pelo menos durante uma parte do mês de julho, para o ir inserindo.

 

E o que será depois a sua vida?

Eu gosto de pintar, julgo que a pintura recuperará um bocadinho. Penso também que o que me pedem é que eu continue a ser diretor espiritual nos seminários para os padres, que vou ficar, pelo menos é isso que está mais ou menos orientado, no seminário Redemptoris Mater de Lisboa, em Caneças.

 

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“Se calhar existem [abusos sexuais], mas as pessoas retraem-se, não é? Oxalá não existam!”

 

A Comissão Independente para os Estudo dos Abusos Sexuais nas Crianças, na diocese de Beja, sinalizou quatro sacerdotes e um leigo, já falecidos. Depois, o senhor identificou outros quatro, na altura, com base na informação do arquivo diocesano. Um desses casos, referente a 2020, estaria relacionado com um leigo, em formação para o sacerdócio e que foi denunciado por assédio sexual. O suspeito teria sido expulso do seminário e o assunto entregue às autoridades civis e julgado aqui no tribunal da comarca de Beja. E aguardava-se a sentença, na altura. Em relação a este caso, já houve desenvolvimentos?

Que eu saiba, não. Penso que permanece em tribunal. Mas o rapaz desapareceu daqui e acabou-se.

 

Houve vítimas que tenham pedido formalmente uma indemnização?

Não houve, até ao momento, nada. Aliás, esta comissão Vita [sucessora da comissão independente] mandou-nos um relatório e na diocese de Beja, zero. Portanto, não há nem pedidos, nem isto, nem aquilo, não há nada. Ou seja, tudo o que foi aparecendo, eu encaminhei para onde devia encaminhar.

 

Como é que a Igreja recupera de uma situação destas? E que repercussões é que isto acabou por ter na diocese de Beja?

Uma coisa é a realidade, outra é a visão da realidade. A realidade é que os padres também são pecadores e pronto. E isso sempre foi assim. Houve alturas em que isso se tratava de outra maneira, enfim… Mas, neste momento, estamos assim, com esta tolerância zero no que diz respeito a enfrentar a realidade. Ou seja, não podemos fazer de conta que não existe. Na Igreja, a realidade concreta da vida é muito importante. A nossa fé mostra-se, vive-se, no concreto da vida. E, portanto, quando acontece um desastre desses, o bispo tem a obrigação, também como responsável jurídico pelos padres, de agir de acordo com as normas do Vaticano. E aqui sempre fizemos isso. Portanto, a Igreja manda que se comunique à Santa Sé, que se comunique também ao tribunal, e isso sempre fizemos. Agora, as acusações de padres que estão aí a trabalhar, todas eram acusações, como havemos de dizer, em que “não dava a bota com a perdigota”. Havia ali qualquer coisa de falso. Às vezes eram vinganças, eram coisas desse género. E os tribunais, portanto, rapidamente se dão conta disso. E todos os casos foram, assim, digamos, arrumados.

 

Isto impactou, de alguma forma, aqui a vida na diocese?

Do ponto de vista de vocações sacerdotais, penso que não. Não sei. O futuro também o dirá. Mas, tanto quanto é possível vermos hoje, acho que a coisa está pacificada.

 

No seguimento de todo este processo, aqui na diocese previa-se a reestruturação da Comissão Diocesana para a Proteção de Menores e Adultos Vulneráveis, afastando os membros do clero, integrando um médico, com a possibilidade de inclusão de outros profissionais, no sentido de as vítimas se sentirem mais confortáveis. E pretendia-se, paralelamente, que esta comissão viesse a ter um papel mais visível. Como é que está a funcionar atualmente?

Essa comissão tem duas senhoras, uma é advogada, a outra é psicóloga. Tem um médico também, tem um engenheiro, e está a funcionar. Ou seja, vão tomando conta dos papéis que mandam, mas não há casos.

 

Não têm recebido denúncias? Não houve mais denúncias?

Não. Aqui, na diocese, não. Os alentejanos são um bocado reservados. E isso pode também ter alguma influência, mas penso que não há casos neste momento.

 

Mas quando diz que são um pouco reservados, é a ressalva de que não quer dizer que não existam…

Exato. Se calhar existem, mas as pessoas retraem-se, não é? [silêncio] Se calhar existem, se calhar… Oxalá não existam!

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