Diário do Alentejo

identidade

28 de junho 2024 - 12:00
Relatório alerta para o aumento de ataques organizados à comunidade Lgbti+, transversais a todos os países europeus
Ilustração| Susa MonteiroIlustração| Susa Monteiro

Junho é internacionalmente comemorado como o Mês do Orgulho, procurando a comunidade Lgbti+ que o celebra alertar para a discriminação e violência que, sob várias formas, os seus membros são alvo. O Beja Pride, que tem lugar amanhã, dia 29, no jardim municipal, é a iniciativa, da responsabilidade da Arruaça, que assinala as festividades na cidade. Numa altura em que as perseguições às minorias sexuais estão em crescendo no País, em consonância com os restantes países europeus, o “Diário do Alentejo” conversou com alguns membros da associação que, pela quarta vez, ergue a bandeira deste festival.

 

Texto | José SerranoIlustração | Susa Monteiro

 

“Porra… na infância foi terrível. Eu dava-me muito com as raparigas. Brincava com bonecas e não jogava à bola. Sentia a crueldade dos miúdos. Chamavam-me maricas”. Quem o diz é Bruno Guerreiro, regressando, mentalmente, aos seus tempos de criança, vividos em Setúbal. “Julgo que sempre tive, desde pequenino, pela forma como explorava o meu lado feminino, a perceção de que era homossexual, mas só comecei a descobrir, verdadeiramente, a minha orientação, e a perceber o que realmente me dava prazer, por volta dos 14 anos”. Até lá, olhando para trás, “ao refletir, percebo que o que sentia era que gostava de pessoas, apenas por elas serem quem eram”, independentemente do género a que pertenciam, afirma. “Apaixonei-me por raparigas, e aí podia assumir a liberdade de o dizer, mas também me apaixonei por rapazes”, sendo que, nesses casos, a liberdade de o poder contar, pelo incómodo que traria, estava ausente. No entanto, pouco a pouco, “fui-me aceitando. Falei primeiro com os meus amigos e, depois, com os meus pais, que me compreenderam”. Ainda assim, fora dos portos seguros do lar e do seu grupo de amizades a experiência perturbadora da infância revelou-se ininterrupta, colando-se, mesquinha, ao longo da sua adolescência. “Gozavam comigo, por tudo e por nada e eu tive uma crise de identidade muito grande, reprimindo-me, tornando-me cada vez mais tímido”. Uma situação de tal forma incómoda e opressiva que espoletou a sua fuga para a frente, decidindo, “teria 16, 17 anos”, assumir a sua orientação sexual perante todos, aos olhos da sociedade. “No 12.º ano já namorava com um rapaz”, sem ser às escondidas. “Quem não goste ‘que meta na borda do prato’, como se costuma dizer, foi o que eu pensei”. E a partir daí – “é nessa altura que eu começo a lutar pela minha liberdade, pela igualdade” – foi “sempre uma descoberta”, com o abrir de um nova realidade, coincidente com o ingresso no curso de Turismo, no Instituto Politécnico de Beja. “Adorei os anos que vivi na cidade, gay friendly, com a qual continuo a ter uma ligação muito forte, onde nunca senti qualquer tipo de repressão”.

Uma opinião partilhada por Nádia Mira, que considera a existência, na urbe, “de bastante tolerância, no que respeita às liberdades sexuais”. A jurista, de 37 anos, assume-se como queer, “termo chapéu” para identidades e orientações sexuais “diversas do comum”, utilizado pejorativamente “durante muito tempo” e agora adotado por minorias sexuais, “de forma a empoderarem-se”, esclarece. “Eu não sou uma pessoa heterossexual – é claro para mim, agora, que desde muito cedo o sabia, mas na infância esse entendimento não é fácil”. Só na adolescência, “em que se despertam os interesses amorosos”, percebeu que tinha atrações mais alargadas, “que a simples opção rapaz/rapariga” não era, exatamente, aquilo que queria. “Eu nunca senti que estava errada, mas sentia, por vezes, que a sociedade podia achar que eu não estava certa, o que, em determinados momentos, me criou algum desconforto. Ainda assim, sou uma privilegiada, pois estive sempre inserida em grupos de pertença mais alternativos, em que havia muitas referências de pessoas homossexuais, o que me permitia viver, pacificamente, a minha sexualidade”.

Também para Eva Cabaço o grupo de amigos foi preponderante para poder expressar, aos 16 anos, “de forma confortável”, que não gostava só de rapazes. “Eu tinha, há já algum tempo, essa certeza e quando fui para a Escola Secundária Diogo de Gouveia, em Beja, onde encontrei muitas pessoas assumidamente Lgbti+ [lésbicas, gays, bissexuais, trans, intersexo e outras identidades], tive a possibilidade de, naturalmente, me assumir – inclusive perante a minha família. E foi tranquilo. Estar com pessoas que pensavam e sentiam o mesmo que eu ajudou-me bastante nesse processo que me ofereceu uma enorme libertação”. Eva, que se define como mulher pansexual – pessoa que se sente atraída afetiva e/ou sexualmente por pessoas, independentemente de atribuições e/ou identificações quanto a sexo/género, – vive desde há três anos em Lisboa, ida do Baixo Alentejo com 19. Embora não tenha tido “qualquer problema” em Beja, a empregada de mesa não considera, “de todo”, a cidade segura para os membros da comunidade. “Há quem saia do Alentejo por não se sentir confortável a andar com o seu parceiro ou a sua parceira na rua. Um homem gay, uma pessoa não binária ou transexual pode não se sentir confortável a vestir-se como gostaria, porque se o fizer sabe que vai poder ouvir algum tipo de comentários menos próprios. E, depois, Beja é uma cidade muito pequena, onde tudo se sabe, o que pode contribuir para trazer problemas a quem ainda não se assumiu aos pais”. Assim, diz, existe uma tendência para os mais jovens, pertencentes à comunidade Lgbti+, se deslocarem para cidades maiores, à procura de um certo anonimato e uma maior liberdade. “O assumir de uma orientação sexual ‘fora da normalidade’ é difícil em qualquer lado, mas em localidades pequenas do interior é ainda mais complicado”.

Todavia, a insegurança vivida pelas pessoas Lgbti+ tem-se vindo a intensificar em Portugal, independentemente da dimensão da cidade e do seu número de habitantes.

O discurso de ódio De acordo com a ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo, o relatório anual da ILGA Europe, apresentado em fevereiro, que avalia as tendências, em 2023, na promoção da igualdade e dos direitos humanos das pessoas Lgbti+, revela um aumento transversal a todos os países, no contexto europeu e centro-asiático, “do discurso de ódio e da propagação de desinformação sobre a chamada ‘ideologia de género’, à semelhança do que já havia sido apontado em relatórios anteriores e seguindo uma preocupante tendência global”.

No caso português, refere a ILGA, este incremento do discurso de ódio agrega-se ao aumento dos ataques organizados a eventos e espaços com e para pessoas das comunidades Lgbti+ por parte de grupos “que instrumentalizam as crianças e jovens, invocando falsas preocupações com a sua segurança”, apelando o relatório “a uma reflexão aprofundada” sobre as implicações deste discurso “na democracia e nos direitos fundamentais”.

Como exemplo de ataque organizado o documento relata a vandalização, em junho do ano passado, de uma exposição que reunia trabalhos de pintura, fotografia, escultura e gravura da autoria de vários artistas, no âmbito do programa da primeira edição do Évora Pride. O ato foi praticado por três homens que fizeram refém o funcionário da câmara municipal que se encontrava no local, que foi, segundo o noticiado pela agência “Lusa”, à data, “agredido verbalmente, coagido e ameaçado”.Já neste ano, outros ataques, com motivações semelhantes, aconteceram no País, a exemplo do ocorrido em maio, em Cabeceiras de Basto (Braga), no qual o candidato às eleições europeias do partido Ergue-te e mais três elementos da associação Habeas Corpus invadiram uma sessão sobre questões de género e orientação sexual acusando um dos invasores a autarquia de usar dinheiro público para “promover a homossexualidade, a degeneração e a desconstrução da família”.

Um outro exemplo idêntico ocorreu, no passado sábado, 22, num centro comercial, no Porto, com membros da suprarreferida organização de extrema-direita a impedirem a apresentação de um livro de Mariana Jones, escritora de livros infantis, com estatuto de vítima devido a ameaças de que é alvo desde há meses, supostamente, por causa de um título de um livro seu – O Pedro Gosta do Afonso. Um episódio comum, agora, às duas maiores cidades do País, uma vez que, já no início do mês, na Feira do Livro de Lisboa, a autora estava a apresentar o referido livro quando foi interpelada por um membro da mesma organização que a apelidou de “promotora da homossexualidade infantil e da pedofilia”.

Episódios como estes e outros – “há, constantemente, relatos de pessoas Lgbti+ que são agredidas verbal e fisicamente só por estarem na rua de mãos dadas”, refere Eva Caseiro – acentuam o temor do crescendo de um conjunto de práticas ou atitudes agressivas direcionadas a pessoas da comunidade Lgbti+. “Sinto que a presença de um partido na Assembleia da República legitima este discurso galopante de ódio. Pessoas homofóbicas (e racistas) sempre existiram, mas, agora, estão mais à vontade para proclamar as suas ideias. Nas redes sociais esse alastrar de animosidade é notório e preocupante”, diz Bruno Guerreiro. Com extrema dificuldade em entender a intolerância perante as minorias – “talvez essas pessoas não sejam felizes e, por egoísmo, não querem que outros o possam ser” –, o jardineiro, de 36 anos, frisa a necessidade de o momento, difícil, dever ser de maior comunhão na luta pela igualdade, contra o preconceito. “Tenho algum receio do futuro. Se houver uma escalada das forças de extrema-direita é possível que alguns dos direitos conquistados possam vir a ser postos em causa. Mas estaremos todos cá para nos insurgirmos contra isso”, expressa.

A mesma apreensão, referente ao discurso homofóbico, “legitimado” pelas eleições, é partilhada por Eva Caseiro – “tenho bastante medo que a perseguição às minorias sexuais aumente, porque o ódio está agora mais expressamente vincado, assente no conforto do grupo” – e por Nádia Mira. “Temo, justificadamente, esse retrocesso legislativo, sim. O partido que mais o tem pretendido não está ainda representado no Governo, mas isso pode vir a acontecer. E nós sabemos qual é o caminho que defende, porque a nossa extrema-direita tem vindo a imitar os passos dos ‘trumps’ desta vida”.

Neste contexto, de mimetismo político, a jurista adiciona uma nova variável à equação da liberdade sexual ou de género: “Não me admirarei se viermos a ver a religião, em Portugal, a imiscuir-se em questões políticas, tal como acontece nos Estados Unidos ou no Brasil, ajudando a eleger pessoas junto dos partidos extremistas de direita. Na verdade, não sei se não está já a acontecer, aqui, algum financiamento de partidos através de grupos religiosos…”.

 

IV Beja Pride celebra uma vez mais o orgulho Lgbti+Amanhã, sábado, vigésimo nono dia do Mês do Orgulho Lgbti+ que celebra a procura contínua de justiça igualitária para as minorias sexuais e pretende alertar para os preconceitos e a violência que continuam a incidir sobre a comunidade, o jardim Público de Beja recebe a IV edição do Beja Pride. Uma festa que, de acordo com a associação Arruaça, entidade organizadora à qual pertencem todos os entrevistados desta peça, celebra “as pessoas e as suas identidades, os corpos e a sua diversidade, o amor e a inclusão, a visibilidade e a resistência”. Cristina Matos, presidente da Arruaça, ainda que não sendo uma pessoa pertencente à comunidade Lgbti+, não crê que Beja “seja dos sítios mais tolerantes” às minorias sexuais, uma vez que “num meio pequeno tende a haver mais ‘olhares’ discriminatórios, mais conflito”, mais dificuldade em se poder assumir uma identidade diferente da biológica ou uma orientação não-heterossexual.

“Tenho amigos que se foram embora assim que puderam, porque se sentem mais à vontade em sítios com mais população, onde há a possibilidade de se ser mais livre”. Desta forma, evindencia a importância da descentralização destas iniciativas, elevá-las nas localidades do interior. “Como há muitos que partem, os que cá ficam sentem falta de uma comunidade mais próxima e, assim, o Pride serve, também, para lembrar que as pessoas Lgbti+ que estão cá, que vivem na cidade, na região, não estão esquecidas e que estamos todos do mesmo lado”. Valorizando a presença de pessoas heterossexuais nas edições anteriores do Beja Pride, “por amizade, pela festa em si, demonstrando o seu apoio, sem qualquer tipo de problema em participar no evento”, Cristina Matos apela à participação, nesta quarta edição, de toda a comunidade bejense, em geral – “faz muito mais sentido se estivermos lá todos” –, celebrando e reivindicando, em conjunto, o direito de todos a viver livremente, sem violência nem discriminação a sua sexualidade. De acordo com Nádia Mira, o Beja Pride deste ano, pelo crescimento do discurso anti-Lgbti+ no País, reveste-se de uma importância ainda maior. “Sempre houve homofóbicos, nós sempre o soubemos. A diferença é que antes eles tinham vergonha de o dizer e agora declaram-no com orgulho. E, desse ponto de vista, cada vez que nos disserem que devíamos ter vergonha em sermos como somos, nós estamos cá para dizer que temos orgulho em sermos como somos, contrariando as dificuldades que nos são impostas por parte de um grupo da sociedade que se arroga a considerar que a nossa orientação sexual ou identidade de género não é a que deveria ser. Por isso, é muito importante que continuemos a fazer estas iniciativas”. A importância da luta contra o preconceito, pela igualdade, afirmada, diz Bruno Guerreiro, “em alegria e comunhão” no festival, é sublinhada, também, por Eva Caseiro. “O Beja Pride, ao permitir que a comunidade Lgbti+ expresse a sua liberdade sexual, de forma orgulhosa, sem qualquer receio, é uma ilha que surge dentro da cidade. O que pretendemos é que este encontro permita agregar forças para que essa pequena ilha, de liberdade, possa, através de uma corajosa luta quotidiana, crescer. E estar presente em todos os dias do ano”.

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