Diário do Alentejo

Cortejo Histórico e Etnográfico de Serpa regressa neste domingo, dia 31, à cidade raiana

29 de março 2024 - 12:00
tradição

Os 50 anos do 25 de Abril e os 10 anos da elevação do cante alentejano a Património Imaterial da Unesco são os destaques do cortejo histórico e etnográfico deste ano. No total, desfilarão pelas ruas de Serpa 40 carros alegóricos, com representações de quadros locais, acompanhados por 700 a 800 figurinos, naquele que é considerado o evento “alma do concelho”. O “Diário do Alentejo” acompanhou os últimos preparativos antes do grande dia.

 

Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa

Foto | Ricardo Zambujo

 

O cheiro a tinta fresca invade toda a carpintaria. De um lado, em cima do carro principal deste ano, um quadro alusivo aos 50 anos do 25 de Abril de 1974, um dos trabalhadores municipais desenha minuciosamente, a cinzento claro, as letras da palavra “liberdade”. Mais à frente, grandes blocos que compõem a palavra “abril”, e que enfeitarão o carro principal, ganham vida, em tons de vermelhos, pelas mãos de Joaquim Carrasco, carpinteiro da Câmara Municipal de Serpa (CM de Serpa).

“Estou cá há 39 anos, mas quando entrei já se fazia [o cortejo]. Esta é uma altura do ano de que gosto muito, porque faço carros novos e restauro os antigos”, explica, de forma simples, ao “Diário do Alentejo” (“DA”).

Homem de poucas palavras, mas de sorriso fácil, Joaquim Carrasco, atualmente com 60 anos, tinha 10 aquando da Revolução dos Cravos. É um dos funcionários mais antigos da carpintaria, e, por sua vez, também uma das pessoas que acompanha a preparação do cortejo há mais tempo. Começou nestas andanças aos 21 anos e desde então nunca mais se distanciou, tornando-se num dos “pensadores” por detrás dos quadros históricos representados nos carros alegóricos. Ao “DA” não o revela, mas os seus colegas, entre risos, apressam-se a denunciá-lo. “Eu só venho aqui ajudar”, brinca um. “Ele é que sabe o que é para falar, nós só fazemos”, graceja outro. “Ele manda e nós fazemos”, ouve-se lá de trás.

“Não é ser pensador, às vezes dizem que têm uma ideia para determinado carro e depois nós aqui vamos sugerindo coisas em tentativa e erro. Por exemplo, há pouco tempo já tivemos de operar um cravo dali porque como era fino partiu-se, mas foi só aquele”, justifica-se.

A poucos dias de domingo, altura em que o cortejo sairá à rua, poucos são os carros que faltam retocar. Há cerca de “cinco/seis meses” que, semana após semana, a carpintaria, nas instalações do parque de máquinas da câmara municipal, não tem descanso. Do papel passou-se à ação e entre placas de madeira, moldes em esferovite, cola quente e parafusos têm-se avançado passo a passo.

“Há meses que os nossos funcionários estão a trabalhar nos carros para que estes estejam prontos a tempo, porque uns têm de ser restaurados e outros têm de ser feitos de novo por causa dos estragos, mas o trabalho, na verdade, é contínuo, [porque] quando acabamos um [cortejo], praticamente estamos já a pensar no ano seguinte”, esclarece Palmira Guerreira, vereadora da CM de Serpa e uma das responsáveis pela iniciativa “no terreno”.

De ano para ano, o ciclo repete-se. Primeiro a restauração e execução dos carros alegóricos, depois o desfile e, por fim, a desmontagem e a preparação da edição seguinte. “Praticamente só temos um interregno de três a quatro meses [de trabalho prático], porque de resto o cortejo ocupa-nos muito tempo. Os nossos pensadores estão o ano todo a ter ideias e seis meses a executar, mas este é um evento que não pode acabar nunca, uma vez que faz parte da nossa tradição. É o ponto alto e uma referência do concelho”, elucida.

 

45 anos depois...

 

O Cortejo Histórico e Etnográfico de Serpa data o seu início de 1979, altura em que foi organizado, no domingo de Páscoa, a cargo da comissão que representava, nesse mesmo ano, as Festas em Honra de Nossa Senhora da Guadalupe. O intuito, conforme se mantém, passava por “representar quadros locais, mostrando a história, a etnografia e o património construído”, afirmando-se daí em diante como “uma das principais atrações do programa” das festividades em nome da padroeira de Serpa.

Nos últimos anos, ao nível histórico, os quadros que têm saído à rua evocam as épocas romanas e islâmicas, a primeira conquista cristã de Serpa, os besteiros do conto, as cortes de Coimbra, o foral manuelino à vila, a Guerra da Sucessão de Espanha, as invasões francesas, a praça da jorna e figuras serpenses emblemáticas, como o abade Correia da Serra, o conde de Ficalho e os jornalistas da revista “A Tradição”. Por sua vez, em relação à etnografia do cortejo, tem sido possível reviver ofícios tradicionais desaparecidos ou em risco, como os sapateiros, os oleiros, os abegões, os amola-tesouras, os ferreiros, os ferradores, as costureiras e os alfaiates, assim como lembrar o património edificado, os trajes tradicionais, o cante, as festas e os jogos populares.

“É um evento que realmente foi criando proporções muito grandes, crescendo muito e ganho muito peso em termos culturais e turísticos, porque vem muita gente aqui à cidade na Páscoa propositadamente só para este horário e, muitas vezes, sem qualquer ligação à terra”, revela a vereadora. E acrescenta: “Vêm porque ouviram falar do cortejo ou porque alguém lhes passou a mensagem e isso é extremamente importante, percebe-se que o cortejo tem interesse tanto para os locais, como para as pessoas de fora, e isso é muito bom”.

 

Homenagear a liberdade

 

Ao fundo da carpintaria, de x-ato na mão, Hilário Serra monta, delicadamente, um futuro cravo. Conta, orgulhoso, que é um dos funcionários que por esta altura deixa em segundo plano as suas funções de fiscal municipal para vir reforçar a “ajuda” na carpintaria e que o faz com um “enorme gosto”.

“Eu sou novo aqui [na preparação] do cortejo quando comparado com os meus colegas, faço-o há apenas 20 anos. Eles é que são quase da idade do cortejo”, graceja. “Ver o cortejo sair dá-me muito contentamento e um certo orgulho, porque quem é que não gosta de ver o que faz e o que ajuda a fazer a passar? Toda a gente gosta e a mim dá-me um enorme contentamento”, confessa.

O seu colega Manuel Calatroia, que prepara uma estrutura em madeira para o novo reboque, concorda. “Quando o cortejo sai é um sentimento de alegria de que fizemos e acabámos algo que as pessoas podem apreciar. É bonito e importante, porque é uma tradição aqui do nosso concelho”, garante, afirmando de seguida que é com entusiasmo que participa na sua execução há 24 anos.

De momento ambos se encontram a fazer “uns acabamentos” e “umas pinturas” para o carro alegórico do cortejo em homenagem à Revolução de Abril, o único que foi construído de raiz neste ano e que será o “destaque” desta 42.ª edição. Segundo Palmira Guerreiro, esta representação foi a forma que o município encontrou para reafirmar “a importância do 25 de Abril e da liberdade” e assinalar meio século de democracia.

“Além disso, são também os 10 anos [da elevação] do cante alentejano [a Património Imaterial da Unesco] e não poderíamos deixar de reforçar aquilo que é a alma deste Alentejo e do concelho de Serpa, [ou seja] o cante”, elucida.

Dentro de pouco tempo, o trabalho do ano será novamente revelado ao público. Amanhã, sábado, será o último dia para os aperfeiçoamentos e o nervosismo miúdo começará a dar de si. Para trás ficará uma carpintaria salpicada de tinta vermelha e com pincéis, parafusos e madeiras espalhados por cima das bancadas de trabalho. Na segunda-feira, dia 1, recomeçará o ciclo para a 43.ª edição.

“No domingo sairá um cortejo e entrará logo outro. Não há pausas, só descansamos as horas em que este parte daqui e está na rua, depois começamos de novo”, conclui Manuel Calatroia.

 

O percurso

O 42.º Cortejo Histórico e Etnográfico de Serpa sairá neste domingo, dia 31, às 16:00 horas, do parque de máquinas da Câmara Municipal de Serpa e seguirá pelas ruas Dr. Palma Santos, Dr. Eduardo Fernandes de Oliveira, alameda Abade Correia da Serra, ruas do Calvário, Nova e dos Lagares, terminando, passado umas horas, na rua dos Arcos. “Penso que, neste fim de semana, todos os caminhos vêm dar a Serpa, porque vale a pena. São umas horas, é um percurso que vale a pena as pessoas acompanharem e usufruírem daquilo que é a nossa tradição e o ponto alto das Festas da Nossa Senhora da Guadalupe”, afirma Palmira Guerreiro, vereadora do município.

 

Festas de Serpa decorrem até terça-feira

As Festas em Honra de Nossa Senhora da Guadalupe, organizada pela Comissão de Festas de Serpa, já estão no terreno desde ontem, quinta- -feira. Para hoje, dia 29, está agendado o rally-paper do Clube de Futebol de Serpa (09:30 horas) e as atuações de Ojos Gitanos (00:00 horas) e DJ Luigy (03:00 horas). No sábado, dia 30, o grande destaque está no concerto de Mastiksoul (03:00 horas), enquanto no domingo, dia 31, na subida a palco de Los Romeros (22:00 horas). Na segunda-feira, dia 1 de abril, decorrerá a missa solene, a procissão e o terço em honra da padroeira de Serpa, seguindo-se o baile com o artista Manuel João. As festividades encerram na terça-feira, dia 2 de abril, com o baile no Altinho.

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