No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Chegamos, hoje, ao fim, com a história de Dilan.
Texto Nélia Pedrosa Fotos Ricardo Zambujo
Dilan dormia há três noites junto ao Palácio da Justiça de Portimão, local estrategicamente escolhido por se situar perto da PSP – para se sentir em segurança – e da biblioteca municipal – o seu “porto seguro”, onde tinha acesso a livros e à Internet –, quando pediu ajuda à linha nacional de emergência social 114. Os sintomas de abstinência medicamentosa, devido à interrupção abrupta do tratamento para a ansiedade e depressão, haviam-se tornado insuportáveis – “cólicas, tonturas, fraqueza”, recorda. Tinha deixado de tomar a medicação poucos dias antes, quando percebeu que não conseguiria continuar a pagar o quarto arrendado há uns cinco meses, desde março de 2023, em casa de um amigo e que, por isso, não lhe restava outra alternativa senão sair. Ainda tentou que os pais – com quem entretanto não mantinha a melhor das relações – a acolhessem durante, pelo menos, um mês, mas a resposta foi que “o contrato de arrendamento não permitia outras pessoas”. Assim, sem dinheiro, e na iminência de ficar numa situação de sem-abrigo, “não teria como continuar a pagar a medicação”, justifica. O que não contava é que os sintomas fossem tão intensos e se prolongassem por tanto tempo. O plano inicial até era passar todo o mês de agosto na rua, “porque a partir de setembro” talvez conseguisse “ir para a universidade” e ter apoio “até ao nível do alojamento”. “Estava a depositar muito as minhas esperanças nisso”, sublinha.
A primeira noite na rua foi passada no chão, com o casaco a fazer de cama e a mala de almofada. Consigo tinha uma muda de roupa, comida, uma garrafa de água e uns livros da biblioteca. Na segunda já dormiu num saco-cama oferecido por uma amiga, a mesma que lhe quis pagar “um sítio” para pernoitar, mas que Dilan recusou. Os dias eram passados na biblioteca; as refeições eram cedidas pela instituição Grato. Em momento algum daqueles quatros dias e três noites que fez da rua casa sentiu que poderia correr perigo, ou melhor, admite agora, “não tinha muita consciência disso”.
Depois de acionar o 114 naquela madrugada de 4 de agosto de 2023, Dilan foi transportada para as urgências do hospital de Portimão. Lembra-se de lhe terem feito imensas perguntas, de dizerem que “era muito nova para estar numa situação de sem-abrigo”. Lembra-se de chorar, de se sentir “emocionalmente frágil”, de ter desabado. Acabou por ser atendida por um dos psiquiatras que a tinham assistido há três meses, em maio, aquando da sua tentativa de colocar termo à vida. “Um deles já sabia o que estava a acontecer com a minha família [os pais tinham entretanto sido diagnosticados com problemas do foro mental e internados compulsivamente] e a minha situação toda”. E foi então aí, depois de contactadas algumas entidades, que surgia a possibilidade de ser encaminhada, três dias depois, para o Centro de Acolhimentos de Emergência Social (CAES) de Beja, onde havia vaga. “Inicialmente”, frisa, a mudança foi “um alívio muito grande”. “Tinha acontecido tanta coisa nos últimos meses em Portimão que sentia necessidade de sair daquele ambiente e começar uma vida nova noutro sítio, quer fosse em Beja, quer fosse em Faro, mas para algum dos lados teria de ir”. Dilan começou desde logo a ser acompanhada pela equipa de rua do projeto “Estou tão perto que não me vês”, da Cáritas de Beja, e a frequentar o seu espaço Estórias, e é nesse contexto que se dá o convite para integrar os laboratórios criativos dinamizados pela cooperativa cultural Chão Nosso.
Não se “encaixava em lado algum” Dilan nasceu há 21 anos, em Portimão, com outro nome – o nome social neutro Dilan foi assumido há cerca de um ano por não se identificar nem com o género feminino que lhe foi atribuído à nascença nem com o masculino, apesar de não se importar de responder pelos pronomes femininos. Aos três anos foi viver para o Montijo com o irmão e com os pais, depois de estes terem ficado desempregados. Desses tempos na margem sul, de onde é natural a mãe e onde reside a família materna, recorda os “vários problemas familiares” devido ao mau relacionamento “entre os pais e os tios”; os períodos em que não tinha comida e em que se alimentava “de laranjas ou algo assim e em que não fazia os TPC para não puxar pelo cérebro porque depois iria ter fome”; os episódios de bullying de que foi alvo na escola.
Aos 11 anos, na sequência de problemas com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), volta a Portimão com os pais, o irmão e a irmã entretanto nascida no Montijo. “A possibilidade de eu e a minha irmã sermos retiradas aos meus pais era grande e então eles fugiram connosco para o Algarve”, conta. Com este regresso muito aguardado, porque sempre quis voltar para Portimão, Dilan sentia que, “finalmente, iria ter uma família”, que poderiam contar “com os familiares” paternos que residiam no Algarve. “Inicialmente eles ajudaram-nos, até a procurar um emprego para os meus pais, mas depois as coisas acabaram por não correr como eu estava à espera”, relembra, sublinhando que “a saúde mental” dos pais “sempre prejudicou muito a relação com o resto da família”.
Enquanto aluna, tanto no Montijo como em Portimão, Dilan diz que teve “várias fases”. “A fase em que era rebelde e mesmo assim tinha notas para passar. A fase em que faltava às aulas. Tive alturas em que fui aluna de excelência, em que me dava com todos os professores e era a menina querida, como se costuma dizer. A altura também em que tinha faltas disciplinares e me dava mal com alguns professores. Passei por todas essas fases”. As piores, frisa, geralmente coincidiam com “as mudanças de ciclo de ensino” e também “com os problemas” entre os pais e os familiares. Já só mais tarde, em 2022, quando é diagnosticada com transtorno do espectro do autismo, é que começa a relacionar alguns acontecimentos e a encontrar explicações para situações que até então não conseguia compreender, como o facto de, por exemplo, sempre ter sentido que não se “encaixava em lado algum”.
Com a sensação, como escreve na frase que acompanha o seu autorretrato elaborado no decorrer dos laboratórios criativos, de que o seu “livro de instruções foi rasgado à nascença”.
Dilan ainda chegou a ser acompanhada por psicólogos da escola, mas “desconhecido” o seu transtorno do espectro do autismo, assim como os problemas de saúde mental dos pais, “a ideia com que se ficava é que eu era uma menina mimada”. “Seria errado dizer que é só devido ao autismo, mas em parte é verdade, o autismo influencia um pouco o facto de eu não me encaixar”, reforça, sublinhado que o diagnóstico foi conhecido após ter pedido ajuda à médica de família. “Inicialmente desconfiei muito do diagnóstico, porque achava que tinha muita capacidade de socializar, mas a verdade é que eu sempre tive muitas dificuldades nas relações sociais e só depois do diagnóstico é que comecei a aperceber-me disso”.