Diário do Alentejo

Invisíveis: ruturas

15 de março 2024 -
Depois de seis meses a ser apoiada pela Cáritas de Beja, Dilan regressou a Portimão para estar mais próxima da irmã

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Chegamos, hoje, ao fim, com a história de Dilan.

 

Texto  Nélia Pedrosa  Fotos Ricardo Zambujo

 

Dilan dormia há três noites junto ao Palácio da Justiça de Portimão, local estrategicamente escolhido por se situar perto da PSP – para se sentir em segurança – e da biblioteca municipal – o seu “porto seguro”, onde tinha acesso a livros e à Internet –, quando pediu ajuda à linha nacional de emergência social 114. Os sintomas de abstinência medicamentosa, devido à interrupção abrupta do tratamento para a ansiedade e depressão, haviam-se tornado insuportáveis – “cólicas, tonturas, fraqueza”, recorda. Tinha deixado de tomar a medicação poucos dias antes, quando percebeu que não conseguiria continuar a pagar o quarto arrendado há uns cinco meses, desde março de 2023, em casa de um amigo e que, por isso, não lhe restava outra alternativa senão sair. Ainda tentou que os pais – com quem entretanto não mantinha a melhor das relações – a acolhessem durante, pelo menos, um mês, mas a resposta foi que “o contrato de arrendamento não permitia outras pessoas”. Assim, sem dinheiro, e na iminência de ficar numa situação de sem-abrigo, “não teria como continuar a pagar a medicação”, justifica. O que não contava é que os sintomas fossem tão intensos e se prolongassem por tanto tempo. O plano inicial até era passar todo o mês de agosto na rua, “porque a partir de setembro” talvez conseguisse “ir para a universidade” e ter apoio “até ao nível do alojamento”. “Estava a depositar muito as minhas esperanças nisso”, sublinha.

A primeira noite na rua foi passada no chão, com o casaco a fazer de cama e a mala de almofada. Consigo tinha uma muda de roupa, comida, uma garrafa de água e uns livros da biblioteca. Na segunda já dormiu num saco-cama oferecido por uma amiga, a mesma que lhe quis pagar “um sítio” para pernoitar, mas que Dilan recusou. Os dias eram passados na biblioteca; as refeições eram cedidas pela instituição Grato. Em momento algum daqueles quatros dias e três noites que fez da rua casa sentiu que poderia correr perigo, ou melhor, admite agora, “não tinha muita consciência disso”.

Depois de acionar o 114 naquela madrugada de 4 de agosto de 2023, Dilan foi transportada para as urgências do hospital de Portimão. Lembra-se de lhe terem feito imensas perguntas, de dizerem que “era muito nova para estar numa situação de sem-abrigo”. Lembra-se de chorar, de se sentir “emocionalmente frágil”, de ter desabado. Acabou por ser atendida por um dos psiquiatras que a tinham assistido há três meses, em maio, aquando da sua tentativa de colocar termo à vida. “Um deles já sabia o que estava a acontecer com a minha família [os pais tinham entretanto sido diagnosticados com problemas do foro mental e internados compulsivamente] e a minha situação toda”. E foi então aí, depois de contactadas algumas entidades, que surgia a possibilidade de ser encaminhada, três dias depois, para o Centro de Acolhimentos de Emergência Social (CAES) de Beja, onde havia vaga. “Inicialmente”, frisa, a mudança foi “um alívio muito grande”. “Tinha acontecido tanta coisa nos últimos meses em Portimão que sentia necessidade de sair daquele ambiente e começar uma vida nova noutro sítio, quer fosse em Beja, quer fosse em Faro, mas para algum dos lados teria de ir”. Dilan começou desde logo a ser acompanhada pela equipa de rua do projeto “Estou tão perto que não me vês”, da Cáritas de Beja, e a frequentar o seu espaço Estórias, e é nesse contexto que se dá o convite para integrar os laboratórios criativos dinamizados pela cooperativa cultural Chão Nosso.

 

Não se “encaixava em lado algum” Dilan nasceu há 21 anos, em Portimão, com outro nome – o nome social neutro Dilan foi assumido há cerca de um ano por não se identificar nem com o género feminino que lhe foi atribuído à nascença nem com o masculino, apesar de não se importar de responder pelos pronomes femininos. Aos três anos foi viver para o Montijo com o irmão e com os pais, depois de estes terem ficado desempregados. Desses tempos na margem sul, de onde é natural a mãe e onde reside a família materna, recorda os “vários problemas familiares” devido ao mau relacionamento “entre os pais e os tios”; os períodos em que não tinha comida e em que se alimentava “de laranjas ou algo assim e em que não fazia os TPC para não puxar pelo cérebro porque depois iria ter fome”; os episódios de bullying de que foi alvo na escola.

Aos 11 anos, na sequência de problemas com a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), volta a Portimão com os pais, o irmão e a irmã entretanto nascida no Montijo. “A possibilidade de eu e a minha irmã sermos retiradas aos meus pais era grande e então eles fugiram connosco para o Algarve”, conta. Com este regresso muito aguardado, porque sempre quis voltar para Portimão, Dilan sentia que, “finalmente, iria ter uma família”, que poderiam contar “com os familiares” paternos que residiam no Algarve. “Inicialmente eles ajudaram-nos, até a procurar um emprego para os meus pais, mas depois as coisas acabaram por não correr como eu estava à espera”, relembra, sublinhando que “a saúde mental” dos pais “sempre prejudicou muito a relação com o resto da família”.

Enquanto aluna, tanto no Montijo como em Portimão, Dilan diz que teve “várias fases”. “A fase em que era rebelde e mesmo assim tinha notas para passar. A fase em que faltava às aulas. Tive alturas em que fui aluna de excelência, em que me dava com todos os professores e era a menina querida, como se costuma dizer. A altura também em que tinha faltas disciplinares e me dava mal com alguns professores. Passei por todas essas fases”. As piores, frisa, geralmente coincidiam com “as mudanças de ciclo de ensino” e também “com os problemas” entre os pais e os familiares. Já só mais tarde, em 2022, quando é diagnosticada com transtorno do espectro do autismo, é que começa a relacionar alguns acontecimentos e a encontrar explicações para situações que até então não conseguia compreender, como o facto de, por exemplo, sempre ter sentido que não se “encaixava em lado algum”.

 

Com a sensação, como escreve na frase que acompanha o seu autorretrato elaborado no decorrer dos laboratórios criativos, de que o seu “livro de instruções foi rasgado à nascença”.

Dilan ainda chegou a ser acompanhada por psicólogos da escola, mas “desconhecido” o seu transtorno do espectro do autismo, assim como os problemas de saúde mental dos pais, “a ideia com que se ficava é que eu era uma menina mimada”. “Seria errado dizer que é só devido ao autismo, mas em parte é verdade, o autismo influencia um pouco o facto de eu não me encaixar”, reforça, sublinhado que o diagnóstico foi conhecido após ter pedido ajuda à médica de família. “Inicialmente desconfiei muito do diagnóstico, porque achava que tinha muita capacidade de socializar, mas a verdade é que eu sempre tive muitas dificuldades nas relações sociais e só depois do diagnóstico é que comecei a aperceber-me disso”.

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

O regresso a Portimão No início de fevereiro, quando contou a sua história ao “Diário do Alentejo”, Dilan tinha deixado o CAES e residia há poucos dias na Comunidade de Inserção da Cáritas. Continuava a dividir os seus dias entre as atividades no espaço Estórias e o estudo para os exames de junho necessários para se candidatar ao ensino superior, ao tão desejado curso de Psicologia. Esta resposta de alojamento da Cáritas acabaria, no entanto, por não se revelar a mais adequada às suas necessidades. Cerca de 10 dias depois foi internada no serviço de Psiquiatra do hospital de Beja na sequência de um “episódio de crise”. No passado dia 4, depois de um internamento de três semanas, regressou a Portimão para estar mais próxima da irmã, que por estes dias deverá ser institucionalizada.

Partilha agora um apartamento com mais cinco mulheres em situação de vulnerabilidade, no âmbito de um projeto da associação Grato. Entretanto, os planos mudaram. “Agora é trabalhar, juntar dinheiro e ser independente. E estou a pensar ir para a universidade só depois dos 23 anos, [ao abrigo] da inscrição especial [no ensino superior].

Precisava mesmo de voltar a Portimão e não estava a conseguir estudar mais para os exames de junho. Então decidi parar um pouco”, justifica.

A adaptação à nova estrutura de alojamento, diz, está a decorrer dentro da normalidade, embora se sinta “um bocado deslocada”, porque as companheiras de casa são todas “mais velhas”. Aos poucos também vai retomando as amizades que deixou quando rumou a Beja, mas também não está a ser fácil. “Um dos meus amigos está na universidade e não tem tempo, uma amiga foi mãe enquanto eu estive em Beja, outra ainda está em França”.

Ainda assim, admite, o facto de estar perto da irmã deixa-a “mais tranquila”. O único receio é não “ter força suficiente para andar para a frente com a questão do trabalho”. Por isso, sublinha, ajudaria muito “ter uma relação um pouco mais próxima” com o irmão e ver os “pais melhorarem”.

Já só mais tarde, em 2022, quando é diagnosticada com transtorno do espectro do autismo, é que começa a relacionar alguns acontecimentos e a encontrar explicações para situações que até então não conseguia compreender, como o facto de, por exemplo, sempre ter sentido que não se “encaixava em lado algum”.

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

O “importantíssimo” papel no processo dos laboratórios criativos

Dilan integrou os laboratórios dinamizados pela Chão Nosso, no âmbito do projeto “Estou tão perto que não me vês”, já eles estavam a decorrer há algum tempo. Cristina Taquelim, mediadora do laboratório dedicado à narração e escrita, recorda que a jovem, no primeiro dia, “depois de uma breve conversa”, colocou “os headphones nas orelhas” e fez-lhe um sinal “do género: deixe-me ficar na minha”.

E a verdade é que esse “deixe-me ficar na minha”, sublinha a também psicóloga de formação, “fez com que ela naquela manhã quase praticamente terminasse a proposta [de trabalho] apresentada”. “[Estava] muito concentrada e até num comportamento um bocadinho de alguma evitação, absolutamente compreensível numa miúda que em meia dúzia de dias teve de contar a sua história a 400 mil técnicos diferentes que foi encontrando pelo caminho”, reforça.

A mediadora acrescenta que Dilan “mostrou sempre grandes competências de escrita, de leitura, uma sensibilidade para a questão artística, um sentido de autonomia”, mas, também, “uma dor, fruto das ruturas que a acompanham em muitos contextos”.

Ao contrário dos outros participantes, que optaram por elaborar um comum autorretrato, lembra Cristina Taquelim, Dilan “recusou a proposta, evitando olhar-se ao espelho, e perguntou se o autorretrato podia ser emocional”. “Não estamos à espera de ouvir uma pergunta daquelas num contexto destes.

Acabou por fazer um autorretrato onde afirma as suas questões enquanto não binária, enquanto autista, portanto, é uma pessoa muito diferenciada, e se há casos em que, com um acompanhamento especial, poderiam ter condições para sair deste ciclo de exclusão e de rutura, claramente a Dilan tem esse perfil, precisa é de se estabilizar emocionalmente, de apoio ao nível psiquiátrico. Mas tem competências, tem um olhar sobre o mundo e tem objetivos”.

Segundo a mediadora, a jovem foi “importantíssima no processo” dos laboratórios, “porque tinha um grau de autonomia e capacidade para funcionar até como tutora, e com algumas pessoas do grupo, com o Rodrigo [Martins], por exemplo, funcionava muito bem”. “Era muito bem aceite no grupo, as pessoas ouviam-na, respeitavam-na. Quando a ouviam falar faziam aquele olhar de ‘olha lá, a mocinha’. Até podem não perceber, mas percebem que aquilo que ela diz é uma coisa de valor ou pensada.

O Zé da Cunha fazia aquelas caretas, como quem diz, ‘esperta, esperta’. Fazia aquele olhar de valorização”. Apesar da distância, Cristina Taquelim frisa que a Chão Nosso “gostaria de poder contar com a Dilan no seu catálogo de edições”, de ter condições “para fazer um projeto com ela”, porque “temos muito material”.

E conclui que os laboratórios acabaram por ser importantes para a jovem “em termos da sua valorização, do reconhecimento das suas competências”, e ao permitir que encontrasse “um espaço artístico para acrescentar mais camadas às suas fraturas dos afetos, das emoções, da socialização”.

Durante as três semanas em que esteve internada, Dilan continuou a ser acompanhada pela coordenadora do projeto “Estou tão perto que não me vês”, Filipa Duarte, com o objetivo de a ajudar “a lidar com a ansiedade e a instabilidade” e a “clarificar os seus objetivos”. “Ela sempre teve esta vontade de, mais à frente, ir para Portimão. A ideia era arranjar trabalho aqui [em Beja] e depois, de uma forma, autónoma seguir para Portimão, mas a verdade é que aqui não havia vagas [adequadas às suas necessidades, depois de ter alta hospitalar].

E isso foi sendo sempre falado com ela [enquanto esteve internada]. Foi sendo explicado como estava a situação das vagas, a clarificar as suas vontades, os seus desejos e daí se ter começado a articular com a equipa do Algarve.

A estrutura onde foi acolhida é um apartamento partilhado, e que lhe permite também ter uma equipa que a acompanha”, explica a também coordenadora da equipa de rua, sublinhando que o objetivo “é que as respostas de alojamento sejam cada vez mais próximas daquilo que é uma habitação”.

Por isso, considera “que foi muito bem-sucedida esta passagem dela por aqui”, frisa, adiantando que ao longo dos quase sete meses em que a Dilan permaneceu em Beja “foi-se trabalhando, a pedido dela também, as dificuldades que apresentava nas interações sociais”, assim “como a capacidade de continuar a sonhar”.

“Basicamente era ir relembrando as competências dela, que são muitas, e que poderia associar a isso a vontade de sonhar e de alcançar os seus objetivos. Houve um acompanhamento muito presente e ela foi sempre a figura central da sua intervenção. Os técnicos, reforço, devem ajudar a clarificar aquilo que são os objetivos das pessoas, não interferir, e o objetivo da Dilan sempre foi voltar ao Algarve”. Este “acompanhamento muito continuado, durante todo este período”, por parte da equipa de rua, adianta, irá manter-se, mas agora telefonicamente, sempre com o objetivo de evitar “uma reincidência”.

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

Futuro do projeto está dependenteda aprovação de nova candidatura

A continuidade do projeto “Estou tão perto que não me vês”, que arrancou em março de 2022, está dependente da aprovação de uma nova candidatura submetida em janeiro no âmbito do Alentejo 2030, diz Isaurindo Oliveira, presidente da Cáritas Diocesana de Beja.

Sem financiamento desde o final do ano passado, tem-se mantido até agora mediante um protocolo estabelecido com a Câmara de Beja.

“No final do ano passado falámos com o município, expusemos o problema e este concordou com a proposta que apresentámos de reduzir a equipa de rua de cinco para três funcionários para mantermos o serviço minimamente a funcionar e para não perdermos esta relação com as pessoas [em situação de sem-abrigo] com quem tínhamos trabalhado, uma vez que são relações extremamente difíceis de se encetar.

O município concordou e, teoricamente, está a adiantar-nos o dinheiro”. Caso o projeto seja aprovado, a Cáritas “restituirá o valor” à autarquia. Caso não seja, a câmara acabará por “assumir a responsabilidade dessa verba”.

O responsável considera, no entanto, “que estes problemas não se coadunam com este tipo de projetos”.

“É um trabalho contínuo, que não pode ser interrompido, porque o problema mantém-se. É um problema complicado, complexo, porque temos aqui vários tipos de pessoas.

Temos imigrantes, que são a maior parte, mas que, destes, uma parte significativa poderá deixar a situação de sem-abrigo se arranjar emprego, uma habitação, etc.. E depois temos uma quantidade significativa de nacionais, que são pessoas que têm problemas de saúde mental, de álcool, de consumos, e cuja recuperação ou reinserção é muitíssimo mais difícil”.

Isaurindo Oliveira reforça ainda que “a relação com estas pessoas em situação de alta vulnerabilidade é muito complexa, nem sempre é fácil uma aproximação, nem sempre é fácil que ganhem confiança, porque são muitos anos de muitos traumas”, pelo que quando se interrompe esse trabalho “volta-se à estaca zero”, e defende uma intervenção articulada, com “todas as entidades”, para que estes problemas “possam ser minimizados, uma vez que muitos deles não têm solução, porque não há habitação ou a saúde mental funciona com dificuldade”.

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