3.º Ato: a prisão
Dia 4 de dezembro de 1977. Com 24 anos, José da Cunha e o seu amigo “Chico Béu” foram presos por terem roubado 500 escudos (o equivalente, tendo em conta a inflação, a cerca de 54 euros, aos preços de hoje). Por altura da feira da Vidigueira, junto a uma casa de pasto, em Beja, os dois amigos decidiram roubar um sujeito para terem dinheiro para irem para a tal feira. Segundo José da Cunha, o amigo roubou os 500 escudos e ele apenas terá batido no homem. “A pé das Portas de Mértola, a polícia em cima da gente: ‘Venham cá os dois’. Dissemos logo que não tínhamos dinheiro. A mim não me bateram. Mas quando o ‘Chico Béu’ se abriu todo, caíram-lhe logo as notas do rego do cu para o chão. Trinta meses de cadeia e 600 escudos de multa”. O destino foi o Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz, no concelho de Grândola. Numa das saídas precárias que teve, não voltou. Fugiu para o Algarve, para o Livramento. Descobriram e foram-no lá buscar. Acabaram-se as saídas precárias.
Durante esse tempo, a apenas dois ou três meses de sair, foi dado como cúmplice de um colega seu que assassinou outro recluso. Levou mais sete anos. Um episódio que recorda de forma injusta. “Sem fazer mal a ninguém apanhei mais sete anos. No monte, lá em cima [na prisão de Pinheiro da Cruz], quando se vai para a praia da Raposa [areal a que se acede através das praias vizinhas do Pego e da Aberta Nova ou através da própria prisão] houve um que matou outro, que eu nem sabia que ele ia fazer a asneira que fez. Quando chegou ao pé de mim, disse-me: ‘Olha, matei o homem’. ‘O quê?’, perguntei. ‘Espetei-lhe uma faca na cabeça’. ‘O que é que tu foste fazer?’”. Sem ver nada, sem saber o que o outro ia fazer, José da Cunha diz que foi considerado cúmplice da morte. A pena aumentou e por lá continuou.
Os anos de prisão, apesar de estar habituado a saltar de poiso em poiso, de viver em liberdade, diz, até que se levaram bem. “No meu tempo, [a vida lá dentro] era rigorosa. Lá não se brincava. Quem andasse na linha, não pegavam. Os castigos eram duros. Chegavam às celas e batiam: faziam um xis na porta e pumba”.
Também os momentos das visitas não eram fáceis, por se ver afastado daqueles de quem gostava, como a sua mãe. E, depois, porque foi lá que conheceu aquela que viria a ser a mãe dos seus filhos, através de um anúncio. “Eu engracei com ela, ela engraçou comigo…”. No entanto, entre um sorriso e outro, José da Cunha lá confessa que o início desse amor tem uma história. E começa a desbobinar: “Havia um moço que estava lá preso e quem lhe fazia as cartas era eu. Ele sabia escrever, mas não tinha cabeça. Eu fazia-lhe as cartas, mas ele não me dava a direção para eu meter. Até que lhe perguntei: ‘Olha lá, então eu faço-te as cartas e quem é que faz as direções?’. ‘Ah, sou eu’, respondeu-me. ‘Então, tu sabes escrever? Está bem…’”. A partir de aí, José da Cunha decidiu mudar de estratégia. “Eu já andava com ela fisgada. Ele descuidou-se e eu vejo a direção: Maria Amélia dos Santos, Tondela. Pego numa carta e enviei a dizer-lhe que ele estava a enganá-la, que não era enfermeiro (como dizia). Entretanto, eu, que só tinha visitas de mês a mês da minha mãe, recebo uma visita. ‘377, para a visita’, anunciaram. Lá fui. Cheguei à visita, não vi ninguém. Só uma mulher, com a filha”. Sem ver alguma cara conhecida que justificasse a sua presença na sala de visitas, indagou o guarda prisional. “’Oh, Zeferino, não estarão enganados? Então vim para a visita fazer o quê?’ Até que ele me diz que era aquela senhora”. Sentou-se, sem conhecer a mulher misteriosa. Ela perguntou-lhe se sabia quem era. Até que lhe apresentou uma carta. “‘Não sabe quem sou eu? De quem é esta carta?’. ‘Fui eu que escrevi’”, retorquiu José da Cunha. À sua frente estava a pessoa a quem havia escrito a dizer que o seu colega recluso não era quem dizia ser, a quem escrevia cartas em nome do colega. Ali estava ela, à sua frente, vinda de Tondela, no Norte do País: Maria Amélia dos Santos. “Pronto. A partir de aí ela marimbou-se no outro”. O outro, que a mulher nunca viu pessoalmente e que apenas veio a saber quem era numa das visitas que fez a José da Cunha, em que este lhe disse quem era o tal recluso que a enganava. Foi esse o começo da vida em conjunto, que começou e continuou com as cartas escritas. Estiveram juntos 18 anos até se separarem. O amor que começou na prisão acabou por não sobreviver à liberdade.
Mas, e voltando à vida na prisão, alguns episódios são recordados por José da Cunha, ainda hoje, com alguma nostalgia. “Eu ainda sou do tempo, pelo Natal, da Lena de Água ir lá cantar, ainda me lembro bem, a ‘Demagogia’. Foi a primeira música que ela cantou lá. E nessa noite em que ela foi lá cantar, houve uma fuga. Ela a cantar e os irmãos Carlos fizeram uma fuga. Furaram a cela na parte de cima, mas foram logo apanhados a pular o muro, que aquilo é alto. E ela a cantar a ‘Demagogia’”.
Chegou ainda a conhecer os irmãos Cavaco e aqueles que fugiram com eles [os irmãos Cavaco foram a dupla mais mediática de um grupo de seis reclusos que, em 1986, fugiu da prisão de Pinheiro da Cruz e que, durante a fuga, assassinou três guardas prisionais]. “Eu sou do tempo deles todos. Quando se deu a fuga, eu já não estava lá. A cadeia? Aquilo não é uma cadeia, é uma escola de crimes. Lá aprende-se tudo e mais alguma coisa. Se for para lá burro, sai de lá esperto, de certeza. Só que eu nunca tive esse vício de roubar”.
Entretanto, diz, saiu e fez a sua vida normal, até hoje: “Mesmo bêbado como eu andava, fazia a minha vida normal. Não me metia com ninguém. Cumpri, vim-me embora e comecei a andar por aí. Trabalhava, não trabalhava, trabalhava, não trabalhava…” . Meteu na cabeça que não havia de lá voltar. Fez à cadeia como haveria de fazer ao vinho, anos mais tarde: “Não havia de lá voltar!”.
4.º Ato: o álcool
A partir do momento em que saiu da prisão voltou à rotina da rua. Sem trabalho certo, fazia o que aparecia: era para cavar, cavava. Era para carregar palha, carregava palha. “O que viesse, eu fazia. E andava assim. Nunca consegui ter nada para mim… Com o álcool, nunca consegui ter nada para mim”. Entretanto foi pai, com a senhora que conhecera na cadeia. Teve dois filhos. Um deles faleceu aos 14 anos. Com o outro, emigrado na Suíça, não tem contacto.
A sua vida recheada de episódios esparsos, ao longo dos anos, era cada vez mais dominada pelo álcool, tendo por fiel companheiro aquele que o acompanhava há anos: o vinho. Como a situação, em Beja, em que se viu, novamente, envolvido no assassinato de um homem. Assistiu a tudo, numa cena de tiroteio digna de um filme, num armazém da cidade. Chamado a depor, contou o que viu. O relato, por ser bastante pormenorizado, escusa-se de ser reproduzido nestas linhas. No entanto, quem ouve José da Cunha a descrever as situações percebe a minúcia e o pormenor com que o faz. E não deixa de perceber, que esta história, como outras que conta, poderia dar um filme, sem precisar de se mudar, sequer, os nomes das personagens. Mais uma vez, as histórias de José da Cunha superam a ficção. E envolvem pancadaria, tiroteios, balas a zumbir, perseguições, esperas e ameaças de morte.
Na cidade de Beja, um dos cenários centrais da vida dominada pelo álcool foi sempre o jardim público, junto de um grupo de homens que costuma e costumava parar por ali, alcoólicos. Era por aí, até há bem pouco tempo – início de 2022 – que José da Cunha passava os seus dias, entre vinho e o tempo que corria. “Andava sempre bêbado, mas ajudava as pessoas”. E nunca fazia mal a ninguém, apenas a si próprio, como o comprovam as cicatrizes que traz nos braços. “Cortava-me para não fazer mal aos outros”. E foi aí, no jardim público, que a equipa de rua do projeto “Estou tão perto que não me vês”, da Cáritas Diocesana de Beja, o foi encontrar (ver caixa) e fez o primeiro contacto. E que, aos poucos, o foi resgatando à rua e ao álcool.
5.º Ato: o renascimento
“Eu nasci outra vez. O que eu era e o que eu sou, eu nasci outra vez. Se eu não parasse, já não estava cá”. É assim que José da Cunha define esta nova fase da sua vida, em que renasceu. Desde que começou a fazer parte do projeto da Cáritas e a frequentar as instalações do mesmo, há cerca de dois anos, a sua vida começou a mudar. Tudo, porque o álcool ficou para trás. “A minha vida é aqui, a minha segunda casa é aqui e aqui estou bem. Porque se me for embora, se for para o jardim, mais dia, menos dia, estou outra vez agarrado à bebida. Porque eu não sei beber”.
Muito mais sereno, e ciente até das responsabilidades que tem no âmbito do projeto, em que se assume como alguém que está para ajudar e até para servir de modelo a outras pessoas, José da Cunha é um homem de 70 anos que carrega muitas vidas em si. E que depois do circo, da guerra, da prisão e do álcool, conseguiu sobreviver a todas elas.