No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Esta é a história de Hugo.
Texto | Nélia Pedrosa Fotos | Ricardo Zambujo
Hugo pede desculpa. Diz que é de poucas palavras. Que não gosta de falar de si. Que não se lembra de datas precisas, o que, admite, o deixa envergonhado. Que o incomoda estar muito tempo fechado no mesmo espaço. Em meados de novembro último, quando contou a sua história ao “Diário do Alentejo”, residia, desde maio, no Centro de Acolhimento de Emergência Social (CAES) de Beja, para onde foi encaminhado pela Equipa de Rua do projeto “Estou tão perto que não me vês”, da Cáritas Diocesana. O primeiro contacto com a equipa tinha-se dado há pouco mais de um ano, em setembro de 2022, tinha então 29 anos. Dormia, havia uns seis meses, no antigo “edifício da Refer”, também em Beja, num simples colchão, enrolado em mantas oferecidas por uma associação, a mesma que também lhe providenciava alguma da comida com que matava a fome. Não era, contudo, a primeira vez que se via numa situação de sem-abrigo, e não seria a última. Nos últimos tempos andava a pernoitar em carros, nas ruas de Moura, a sua cidade natal, depois de a mãe o ter expulsado, uma vez mais, de casa. Um dia, numa das habituais deslocações ao Centro de Respostas Integradas (CRI) de Beja, onde integra um programa de substituição com metadona, decide não regressar. “Sentia vergonha de estar na minha própria terra e estar na rua, sem apoio da família, porque a minha mãe abandonou-me mesmo e já não era a primeira vez”, justifica.
Hugo chegou ao “edifício da Refer” por intermédio de outras pessoas na mesma situação de sem-teto. Era “onde muita gente dormia” e como era inverno “precisava de um sítio mais abrigado”. Durante o dia “andava por aí, sem rumo”, sempre sozinho – “Nunca quis a companhia de ninguém” –, sem motivação alguma. “Nem tinha ânimo para pensar, não tinha prazer em fazer nada, não sei… uma pessoa está na rua, está sem ninguém, ninguém olha para a gente”.
Depois de começar a ser apoiado pelo projeto “Estou tão perto que não me vês”, ainda esteve mais cinco meses a fazer da rua casa, entre a “Refer”, “umas obras” e um edifício abandonado no centro da cidade, até que, em fevereiro de 2023, entrou na Comunidade de Inserção (CI) da Cáritas. Mas a aversão a espaços confinados, a dificuldade em se adaptar às regras, acabaram por falar mais alto. Aguentou cinco semanas. No mesmo dia em que saiu da CI deu entrada numa comunidade terapêutica no distrito de Setúbal. Mas também não conseguiu cumprir o tratamento. Ao fim de um mês e meio abandonou a comunidade e dias depois regressou a Beja. “É o stresse, é esta coisa de estar lá dentro [da comunidade terapêutica], sei lá, não consigo estar num sítio fechado, não consigo, e não se pode sair de lá e eu tinha medo, tinha medo de mim ali. Qualquer coisinha enervava-me, sou muito impulsivo”. Hugo vê-se novamente numa situação de sem-abrigo e por isso recorre à Equipa de Rua da Cáritas. E é aí que é sinalizado para a resposta CAES, de forma a minimizar o impacto de pernoita na rua e o contexto de insegurança associado. “Também há regras, mas não é tão rígido”.
Vários episódios traumáticos
Hugo não teve uma infância fácil. Os maus-tratos infligidos pelo pai, alcoólico, eram frequentes, conta. Aos sete anos sofreu queimaduras de terceiro grau nas pernas, um incidente que acabaria por ter um impacto tremendo no seu percurso escolar e, consequentemente, na sua personalidade. “Estive internado uns meses, [depois] andei na escola mas não fazia esforço nenhum”. Aos 15, 16 anos, inicia-se nas drogas ditas leves, só para experimentar. “Logo na primeira vez nem liguei muito a isso, mas, depois, as companhias… no meu bairro havia muita gente que consumia”. Daí à heroína foi um pulo. E com a dependência vieram os pequenos roubos e as “garreias”. “Coisas de moço mais novo”, diz. No fim da adolescência, início da idade adulta, dá-se outro evento traumático na sua vida, que acabou por dar origem à frase que acompanha o seu autorretrato que faz parte da campanha de sensibilização lançada pela Cáritas – “Aprendi muito cedo que uma corda pode ter na ponta um homem pendurado”. “Eu é que tirei o meu padrasto da corda, porque eu estava a dormir e a minha mãe chamou-me e quando saio do meu quarto vejo-o pendurado. Mas não gosto muito de falar disso, não gosto de lembrar”. É também por volta dessa idade, enquanto está em tratamento numa comunidade terapêutica em Beja, que finalmente aprende a ler e a escrever, ainda que mal. Alguns anos mais tarde, os roubos e as “garreias” acabariam por o levar ao Estabelecimento Prisional de Setúbal, onde esteve dois anos, sem qualquer visita da família. Outro evento traumático, admite. “Telefonaram uma vez para saber se eu estava lá preso e depois nunca mais disseram nada. Foi duro, porque não conhecia ninguém. Em dois anos ninguém me visitou”, lamenta.
Quando saiu da prisão, como não tinha onde ficar, acabou por ser apoiado pela Cáritas de Setúbal. “Deram-me dormida, comida, foi lá que me fizeram o meu primeiro Rendimento Social de Inserção (RSI), estive lá uns seis meses”. Ainda ponderou ficar por lá, mas os irmãos começaram a dizer-lhe que era uma cidade “muito tentadora”. “Diziam que era pior para mim, que era só maldades e drogas”. Hugo regressa, assim, a Moura e fica a viver com os irmãos. Pouco tempo depois arranja um “trabalho no campo” e um quarto. Tudo parecia estar a recompor-se. Até que “uma recaída, um único consumo”, acabaria por lhe trocar as voltas. Entretanto, “o trabalho acaba-se” e Hugo não conseguiria pagar a casa e alimentar-se só com o RSI. E é aí que decide trocar Moura por Beja. “Tinha o meu trabalho, a minha casa e, depois, tudo descambou. O que mais desejo agora é ter um trabalho, qualquer coisa, para manter a cabeça ocupada e ter o meu dinheiro para pagar as minhas coisas, porque já tive essa experiência, já tive isso”, dizia, em meados de novembro.