Diário do Alentejo

Repair café

05 de fevereiro 2024 - 08:00
Biblioteca Municipal de Beja recebeu iniciativa que visa dar nova vida a objetos avariados
Foto| Luís Miguel RicardoFoto| Luís Miguel Ricardo

Reparar objetos, partilhar experiências e conhecimentos, mas também promover a circularidade de reaproveitamento de bens de consumo. É este o mote do mais recente repair café que passou no passado dia 13 pela biblioteca de Beja.

 

Texto | Luís Miguel Ricardo

 

É sábado. São 17:00 horas. Na secção infantil da Biblioteca Municipal de Beja José Saramago em vez de livros sobre as mesas, e crianças em redor das letras e das ilustrações, encontra-se uma parafernália de ferramentas, pequenos eletrodomésticos desmontados ou em vias disso, brinquedos estripados e várias pessoas com engenho nas mãos a arquitetarem planos para solucionar as maleitas de tantos despojos domésticos condenados ao descrédito.

Carlos Alcobia, um lisboeta atracado ao Alentejo há vários anos, explica que se está a realizar “um repair café, ou café reparação, organizado pela Buinho em conjunto com a Resialentejo, e inserido numa maratona de eventos semelhantes que percorrem os oito municípios de intervenção da entidade responsável pela gestão, tratamento e valorização de resíduos sólidos urbanos do Baixo Alentejo”. E um repair café “é um momento em que pessoas se juntam para reparar objetos, promovendo a partilha de experiências e conhecimentos, enquanto se promove uma cultura amiga da circularidade e reaproveitamento dos bens de consumo”.

Não sendo uma iniciativa inédita em Portugal e no mundo, é uma iniciativa pouco vista, embora, de acordo com Carlos Alcobia, seja um movimento em franco crescimento. Um movimento que teve a sua origem no ano 2000, na Holanda, e que conta, na atualidade, com mais de 2500 repair cafés oficiais, mais os não-oficiais e mais as comunidades de reparação espalhadas pelo mundo. “Em Portugal destacam-se os repair cafés de Lisboa, Almada, Viva Lab – Porto, e o do Buinho, que abarca Messejana, Castro Verde e Ferreira do Alentejo”, complementa Carlos Alcobia, acrescentando que “no mês de janeiro se realizou a terceira Conferência Europeia de Repair cafés e a Buinho apresentou, de forma breve, o projeto Erasmus, que desenvolveu relativo a repair cafés em pequenas vilas e aldeias rurais na Europa”.

E sobre o Buinho, entidade responsável por dar a conhecer este conceito na região, explica: “É uma associação sem fins lucrativos, criada em 2015, e com sede em Messejana. Distingue-se por ser o único laboratório de prototipagem digital (Fablab) no Baixo Alentejo, e pelo seu programa de residências criativas internacionais, que é um dos poucos no mundo estruturados em torno do conceito de uma vila maker. A Buinho estrutura-se em torno de três grandes eixos de atuação: O eixo que explora as interseções entre arte, tecnologia e sociedade, e que se centra em torno do programa de residências; o Buinho Educativo, que visa a capacitação de crianças, jovens, docentes e adultos em competências digitais (programação, fabricação digital, robótica, etc.); e, por fim, um eixo dedicado exclusivamente ao desenvolvimento de soluções DIY [Do it Yourself – ‘faça você mesmo’], que permitam aumentar a circularidade dos recursos e aumentar a sustentabilidade, a que chamamos o ‘Buinho Transição’, e que engloba não só as atividades relacionadas com o movimento de reparação, mas também o projeto ‘Precious Plastic de Messejana’, e mesmo iniciativas de sensoriamento cidadão”.

Voltando ao repair café da biblioteca de Beja, e ao frenesim entusiasta que evolui em torno das mesas de reparação, a atenção é atraída por um cartaz com as palavras “Learn. Make. Play”, que remete para o conceito por detrás da iniciativa. “A Buinho defende o princípio de que o conhecimento se alcança pelo aprender fazendo, e que a aprendizagem tende a ser mais eficaz e duradoura se nos divertirmos no processo. É esse, aliás, um dos valores partilhados pela cultura dos fazedores, ou makers, e dos quais temos procurado ser embaixadores na região do Baixo Alentejo desde 2015”, refere Carlos Alcobia.

E quem aprende fazendo são os beneficiários do projeto, ou seja, “são as pessoas que têm algo que não se encontra em boas condições ou não funciona, mas dos quais não se querem desfazer devido à sua utilidade, valor sentimental, impossibilidade de comprar substitutos ou resistência a esta sociedade de desperdício”. Beneficiários “são também as populações mais idosas que podem beneficiar com o contacto social e a capacitação relevante para problemas reais do seu dia a dia”. Beneficiários “são também os públicos escolares, quando levamos a aprendizagem do troubleshooting, da reparação e do hacking para dentro das salas de aula e tornamos palpável e dinâmico o processo de aprendizagem de economia circular”. Beneficiários “são também os municípios e demais instituições e organizações como a Resialentejo, que necessitam de implementar novos hábitos e práticas junto da população ou atingir determinados indicadores de reaproveitamento, reciclagem e reparação, mas têm dificuldades em encontrar soluções que efetivamente garantam o envolvimento e a educação das populações de forma a atingir esses objetivos”, elucida.

Já o caminho para se chegar a um repair café pode ser feito de várias maneiras. Nos centros urbanos de maior dimensão, os interessados inscrevem-se on line, identificando o objeto e o problema alvo de reparação, facilitando, desta forma, a mobilização dos voluntários orientadores das reparações. Nas regiões mais rurais, o caminho faz-se através do passa-a-palavra e da marcação de sessões, muitas delas sequenciais, possibilitando que alguns consertos transitem entre eventos.

 

O entusiasmo de quem participa

 

Num dos flancos do repair café que evolui na biblioteca de Beja soa uma campainha e veem-se sorrisos mais amplos que o habitual e que contagiam toda a equipa. Significa que uma maleita acabou de ser debelada, e que uma segunda vida foi dada ao objeto intervencionado. Em redor da mesa ficam os voluntários reparadores, com a satisfação desenhada no rosto. Entre eles está João Catarino, que viajou de Almada para reforçar a equipa. É técnico de manutenção industrial e eletricista de instalações certificado e já leva seis anos de colaborações em repair cafés, alguns deles dinamizados pela Oficina D´Almada Makerspace, uma associação por si dirigida. Para João Catarino, participar nestas iniciativas “é sempre uma aventura, um convívio, uma troca de experiências e de saberes, sem esquecer a satisfação de ver as pessoas saírem com aparelhos ou objetos a funcionar, quando os mesmos já estavam dados como perdidos”.

E sobre as pessoas que são os beneficiários, refere que, no começo, chegam desconfiadas e tímidas, mas que, à medida que os contactos evoluem, as emoções vão-se expandido e ficam histórias das suas passagens pelos cafés reparação. Como “a situação de uma senhora, já idosa, que levou um telemóvel de tampa e que queria que o ecrã não desligasse e mantivesse os números. Outro caso foi a de uma outra senhora que o marido também reparava equipamentos, em vida, e que lhe dizia precisamente aquilo que me ensinaram ao longo dos anos, que ‘o material tem sempre razão’. E dizia-me isto enquanto eu teimava com uma peça para a encaixar, e com isso ia-me deixando atrapalhado por não seguir os meus próprios conselhos”, partilha João Catarino.

E histórias é também o que guarda na memória Madalena Martins, uma bejense responsável pela sensibilização ambiental da Resialentejo. “Histórias curiosas de pessoas que levaram objetos que tinham guardados, por lhes terem muita estima, e que passaram através de várias gerações. Uma senhora guardou um órgão de música que era do filho, durante 30 anos, na esperança de o mandar arranjar e poder oferecer ao neto. Tal não foi o espanto e alegria por ser a própria a participar no processo de reparação. Também já existiram situações de pessoas que foram só espreitar, mas acabaram por ficar as três horas de duração do evento e ofereceram-se como voluntários nas próximas edições. Destaco também um dos momentos que decorreu num mercado municipal: pessoas que nem sabiam da existência da iniciativa e foram a casa buscar equipamentos. No caminho, foram passando a palavra, o que resultou numa adesão fantástica. Além de proporcionarem a reparação gratuita de vários objetos, os cafés reparação são também fundamentais para educar e capacitar a comunidade sobre a importância de reparar e reutilizar. Podemos dizer que estes momentos dão um contributo fundamental na nossa missão e representam os valores da Resialentejo, de dar uma nova vida aos resíduos”, conta Madalena Martins.

E é para que a estas histórias se venham a juntar outras e mais outras que a Resialentejo, em 2023, iniciou a realização de uma maratona de cafés reparação em toda a sua área de intervenção territorial. “Consideramos que este circuito de cafés reparação foi um passo significativo para a expansão da cultura de reparação no Baixo Alentejo e colocou a região na linha da frente deste tipo de ações a nível nacional. Foi a primeira vez que se realizou uma iniciativa desta dimensão, associada ao movimento de reparação em Portugal, mas não será a última”, garante Madalena Martins.

Já sobre os recursos que viabilizam a realização destes eventos, a responsável pela sensibilização ambiental da Resialentejo assume que o financiamento é exclusivo da entidade que representa, contando com “a parceira da Buinho Associação e dos seus voluntários, que oferecem os seus conhecimentos e capacidades para ajudar e ensinar os participantes a reparar uma variedade de itens, desde pequenos eletrodomésticos até móveis e bicicletas”.

Porém, nem todos os café reparação são suportados nestes moldes. “Os repair cafés de Messejana, Castro Verde e Ferreira do Alentejo são suportados integralmente com receitas próprias da Buinho Associação. Para o futuro, e, em particular, para podermos alcançar alguma sustentabilidade, fixámos em 300 euros o valor por repair café. Valor que iremos pedir às entidades que necessitem do nosso apoio, de forma a permitir custear os gastos de combustíveis, consumíveis, almoço para os voluntários, coffee break e investimento que temos feito em ferramentas. Castro Verde e Ferreira do Alentejo irão sempre beneficiar do facto de serem parceiros estratégicos do Buinho Educativo, e Messejana, que é a nossa casa, constituindo as únicas exceções. Temos também um projeto de evoluir de um evento repair café para um programa estrutura de educação não formal em torno da reparação e utilização – Academias de Reparação Senior”, explica Carlos Alcobia, terminando com a informação sobre o agendamento dos próximos repair cafés: a 24 deste mês, em Messejana; no dia 2 de março, em Ferreira do Alentejo; e no dia 27 de abril, em Castro Verde.

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