No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, patente no castelo de Beja até ao final deste mês. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Eis a história de Açucena Alves.
Texto | Nélia Pedrosa Fotos | Ricardo Zambujo
Açucena chegou à Comunidade de Inserção em novembro de 2022, vinda de uma casa-abrigo para vítimas de violência doméstica
”Foste, em pesares, desilusões, fracassos/ Um doce bálsamo na alma dolorida/ Refúgio onde sempre achei guarida/ E és na solidão quem me abre os braços (…)”. Um dos poemas que compõem a pequena brochura Pó de Borboleta, que faz parte da instalação artística “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, patente no castelo de Beja, ilustra bem a importância que a poesia sempre teve nos momentos mais sofridos da vida de Açucena Alves, pseudónimo com que assina alguns dos seus escritos e pelo qual prefere ser identificada. Uma vida marcada, desde bem cedo, pelo relacionamento complicado com a mãe, pela notória indiferença com que sempre foi tratada “em comparação” com os seus dois irmãos – “A minha mãe gostava mais de meninos e eu nasci menina e foi um problema para ela me aceitar” –, e, mais tarde, já casada, por incontáveis episódios de maus-tratos às mãos do ex-marido. E é precisamente num contexto de violência doméstica, perpetrada agora pela filha mais nova, a quem foram diagnosticados “problemas cognitivos e hiperatividade”, que Açucena chega, em janeiro de 2022, vinda da Margem Sul, a uma casa-abrigo do distrito de Beja e, em novembro desse mesmo ano, à Comunidade de Inserção (CI) da Cáritas Diocesana de Beja.
Foram quase quatro décadas de insultos, humilhações e agressões físicas por parte do ex-marido, que a antiga assistente operacional de 64 anos foi aguentando a pensar nas três filhas – hoje, com 38, 28 e 24 anos. Uma decisão que lhe pareceu a mais acertada na ocasião, mas que, agora, reconhece não fazer sentido. “No início [o ex-marido maltratava-a] porque tinha ciúmes, depois, porque não sei quê... Quando as coisas não lhe corriam bem batia-me. Mas eu tinha medo de sair de casa”. A mãe não lhe dava apoio. O pai dizia que não se podia divorciar porque tinha casado pela Igreja. “Ele dizia que a minha união estava abençoada por Deus, mas não tem lógica, não é?”, diz em voz baixa, quase sumida. O que julgava ser o seu “príncipe encantado” – temática recorrente dos seus escritos –, revelou-se, afinal, “um sapo”,“uma pessoa fria”.
Para Açucena, tudo se resume a um conjunto de más escolhas, desde o não ter prosseguido com os estudos universitários – o seu sonho era ser arqueóloga – ao ter casado com o pai das filhas, 13 anos mais velho, quando havia “muitos moços” da sua idade interessados. “Foi um mau casamento”, reforça, sublinhando, no entanto, que tudo fez para que “este resultasse”, assim como tudo fez “para ter uma boa relação” com as filhas, relação essa que até “foi próxima enquanto elas foram crianças”, só que, depois, na adolescência, “tomaram o lado do pai”. “Não entendo porquê, mas foi assim que aconteceu. As coisas saíram-me todas erradas, sinto-me fracassada”.As agressões por parte da filha mais nova tiveram início há seis anos, depois de atingir a maioridade e se recusar a continuar a ter acompanhamento psiquiátrico e a tomar medicação. “Tornou-se muito violenta e escolheu o lado mais fraco, que era eu. Atirava-me tudo a cima, mostrava-me facas”. Os episódios eram testemunhados pelo ex-marido que, “simplesmente, saía porta fora, deixando que aquele conflito se alastrasse”. Açucena aponta-lhe o dedo, considera que “é ele o principal culpado” de toda a situação, até porque, a partir do momento em que a filha foi “considerada inimputável”, começou a “picá-la” para que agredisse a mãe. “Dava-lhe jeito, o que ele queria é que eu saísse de casa, e acabei por sair. Ele mesmo dizia: ‘Arruma as tuas coisas e vai-te embora, divórcio não te dou’”, lembra, visivelmente perturbada.
Açucena suportou mais quatro anos de maus-tratos, até ao dia em que não aguentou mais. Pediu ajuda através de uma linha de apoio à vítima. O técnico que a atendeu disse-lhe que tinha de tomar uma decisão, que devia chamar a polícia quando voltasse a ser agredida. E foi isso que fez. “Estava cansada. Tinha feito já uma tentativa de suicídio que correu muito mal e ninguém me foi ver no hospital. É certo que fui eu que fiz, mas era porque estava em puro desespero, não tinha vontade de viver”, desabafa. Perguntaram-lhe se queria ser encaminhada para uma casa-abrigo. Açucena assentiu, reuniu “umas coisitas” e virou costas. Só mais tarde, acompanhada pela polícia e pelas técnicas da casa-abrigo, é que voltou para ir buscar as suas roupas e outros pertences.
Para trás deixou as filhas, os netos, a casa. Se não o tivesse feito, admite, provavelmente hoje “até estaria morta”, tal não era a gravidade das agressões. “A minha filha mandava-me tudo a cima, uma vez deu-me uma tareia na rua e ninguém se chegou. Agarrou-se-me aos cabelos, mandou-me para o chão e pôs-se aos pontapés e tudo isto no meio do passeio. Muita gente sabia da minha situação”. Mas apenas “uma vizinha” é que lhe dizia que “tinha de arranjar maneira de sair”, porque qualquer dia a filha “acabava” com ela.
Nestes últimos dois anos longe de casa, Açucena tem mantido contacto telefónico com os dois irmãos e com a mãe, “mais amiudamente” com esta, mas com quem continua a ter uma relação tensa. “A minha mãe perdeu a audição do ouvido direito e eu acho que ficava lá bem em casa a tomar conta dela em vez de estar aqui [na Comunidade de Inserção], mas ela quer estar sozinha”.Troca ainda mensagens com a filha mais velha, “que, entretanto, saiu de uma relação que não resultou e foi viver lá para casa com os dois filhos”, de cinco e 14 anos, e, “como não tem mais para onde ir”, acaba por não lhe telefonar “com receio de que o pai não goste”. Da filha do meio, que vive na Grécia, não tem notícias há um ano. Com a mais nova não tem qualquer contacto.