Diário do Alentejo

Invisíveis: desalento

31 de janeiro 2024 - 08:00
Mãe... Eu quero de novo outro pato entre nós! L

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, patente no castelo de Beja até ao final deste mês. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Eis a história de Açucena Alves.

 

Texto | Nélia Pedrosa Fotos | Ricardo Zambujo

 

Açucena chegou à Comunidade de Inserção em novembro de 2022, vinda de uma casa-abrigo para vítimas de violência doméstica

 

”Foste, em pesares, desilusões, fracassos/ Um doce bálsamo na alma dolorida/ Refúgio onde sempre achei guarida/ E és na solidão quem me abre os braços (…)”. Um dos poemas que compõem a pequena brochura Pó de Borboleta, que faz parte da instalação artística “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, patente no castelo de Beja, ilustra bem a importância que a poesia sempre teve nos momentos mais sofridos da vida de Açucena Alves, pseudónimo com que assina alguns dos seus escritos e pelo qual prefere ser identificada. Uma vida marcada, desde bem cedo, pelo relacionamento complicado com a mãe, pela notória indiferença com que sempre foi tratada “em comparação” com os seus dois irmãos – “A minha mãe gostava mais de meninos e eu nasci menina e foi um problema para ela me aceitar” –, e, mais tarde, já casada, por incontáveis episódios de maus-tratos às mãos do ex-marido. E é precisamente num contexto de violência doméstica, perpetrada agora pela filha mais nova, a quem foram diagnosticados “problemas cognitivos e hiperatividade”, que Açucena chega, em janeiro de 2022, vinda da Margem Sul, a uma casa-abrigo do distrito de Beja e, em novembro desse mesmo ano, à Comunidade de Inserção (CI) da Cáritas Diocesana de Beja.

Foram quase quatro décadas de insultos, humilhações e agressões físicas por parte do ex-marido, que a antiga assistente operacional de 64 anos foi aguentando a pensar nas três filhas – hoje, com 38, 28 e 24 anos. Uma decisão que lhe pareceu a mais acertada na ocasião, mas que, agora, reconhece não fazer sentido. “No início [o ex-marido maltratava-a] porque tinha ciúmes, depois, porque não sei quê... Quando as coisas não lhe corriam bem batia-me. Mas eu tinha medo de sair de casa”. A mãe não lhe dava apoio. O pai dizia que não se podia divorciar porque tinha casado pela Igreja. “Ele dizia que a minha união estava abençoada por Deus, mas não tem lógica, não é?”, diz em voz baixa, quase sumida. O que julgava ser o seu “príncipe encantado” – temática recorrente dos seus escritos –, revelou-se, afinal, “um sapo”,“uma pessoa fria”.

Para Açucena, tudo se resume a um conjunto de más escolhas, desde o não ter prosseguido com os estudos universitários – o seu sonho era ser arqueóloga – ao ter casado com o pai das filhas, 13 anos mais velho, quando havia “muitos moços” da sua idade interessados. “Foi um mau casamento”, reforça, sublinhando, no entanto, que tudo fez para que “este resultasse”, assim como tudo fez “para ter uma boa relação” com as filhas, relação essa que até “foi próxima enquanto elas foram crianças”, só que, depois, na adolescência, “tomaram o lado do pai”. “Não entendo porquê, mas foi assim que aconteceu. As coisas saíram-me todas erradas, sinto-me fracassada”.As agressões por parte da filha mais nova tiveram início há seis anos, depois de atingir a maioridade e se recusar a continuar a ter acompanhamento psiquiátrico e a tomar medicação. “Tornou-se muito violenta e escolheu o lado mais fraco, que era eu. Atirava-me tudo a cima, mostrava-me facas”. Os episódios eram testemunhados pelo ex-marido que, “simplesmente, saía porta fora, deixando que aquele conflito se alastrasse”. Açucena aponta-lhe o dedo, considera que “é ele o principal culpado” de toda a situação, até porque, a partir do momento em que a filha foi “considerada inimputável”, começou a “picá-la” para que agredisse a mãe. “Dava-lhe jeito, o que ele queria é que eu saísse de casa, e acabei por sair. Ele mesmo dizia: ‘Arruma as tuas coisas e vai-te embora, divórcio não te dou’”, lembra, visivelmente perturbada.

Açucena suportou mais quatro anos de maus-tratos, até ao dia em que não aguentou mais. Pediu ajuda através de uma linha de apoio à vítima. O técnico que a atendeu disse-lhe que tinha de tomar uma decisão, que devia chamar a polícia quando voltasse a ser agredida. E foi isso que fez. “Estava cansada. Tinha feito já uma tentativa de suicídio que correu muito mal e ninguém me foi ver no hospital. É certo que fui eu que fiz, mas era porque estava em puro desespero, não tinha vontade de viver”, desabafa. Perguntaram-lhe se queria ser encaminhada para uma casa-abrigo. Açucena assentiu, reuniu “umas coisitas” e virou costas. Só mais tarde, acompanhada pela polícia e pelas técnicas da casa-abrigo, é que voltou para ir buscar as suas roupas e outros pertences.

Para trás deixou as filhas, os netos, a casa. Se não o tivesse feito, admite, provavelmente hoje “até estaria morta”, tal não era a gravidade das agressões. “A minha filha mandava-me tudo a cima, uma vez deu-me uma tareia na rua e ninguém se chegou. Agarrou-se-me aos cabelos, mandou-me para o chão e pôs-se aos pontapés e tudo isto no meio do passeio. Muita gente sabia da minha situação”. Mas apenas “uma vizinha” é que lhe dizia que “tinha de arranjar maneira de sair”, porque qualquer dia a filha “acabava” com ela.

Nestes últimos dois anos longe de casa, Açucena tem mantido contacto telefónico com os dois irmãos e com a mãe, “mais amiudamente” com esta, mas com quem continua a ter uma relação tensa. “A minha mãe perdeu a audição do ouvido direito e eu acho que ficava lá bem em casa a tomar conta dela em vez de estar aqui [na Comunidade de Inserção], mas ela quer estar sozinha”.Troca ainda mensagens com a filha mais velha, “que, entretanto, saiu de uma relação que não resultou e foi viver lá para casa com os dois filhos”, de cinco e 14 anos, e, “como não tem mais para onde ir”, acaba por não lhe telefonar “com receio de que o pai não goste”. Da filha do meio, que vive na Grécia, não tem notícias há um ano. Com a mais nova não tem qualquer contacto.

Escrevo-me

Escrevo-me/porque preciso de respirar o voo/deste corpo de pássaro.

Voar na língua e retornar/ao meu corpo/como o sinto/como o sonho./Vulcanicamente livre!

E da caneta em ondulação,/entre a memória dosmeus dedos/deixo que a tinta e a imaginação/reproduzam os ecos dos meus segredos.

“ABRIR DE VÁRIAS FERIDAS, AINDA EM CARNE VIVA”

Embora tenha facilidade em passar para o papel o que lhe vai na alma, Açucena admite que o trabalho desenvolvido nos laboratórios, que resultaram na instalação artística, “foi difícil”. Foi o “abrir de várias feridas, que ainda estão muito em carne viva”, mas que acabou por ajudá-la “a ir ao fundo” e tentar mostrar a sua “solidão”, o seu “abandono”. Confessa que se sente “muito só” e que, apesar de ter acompanhamento ao nível da saúde mental e de frequentar, desde setembro, uma formação profissional de cozinha e pastelaria, não vislumbra qualquer futuro. Apenas vive o agora. O dia a dia. Sem planos. Sem sonhos. “Não penso muito no futuro e tento também não pensar no passado. Sinto um certo cansaço de viver – lembrei-me agora do Fernando Pessoa, que também admiro muito, que tem uma fase parecida [risos]. Agora, com 64 anos, começar tudo de novo? E com quem? Só sei que nunca pensei que pudesse vir a estar nesta situação”. Ainda assim, gostaria de publicar um livro com os seus poemas – até agora só participou em algumas antologias –, de ter “uma casinha pequenina”, porque sente falta do seu “espaço”, e de voltar a ver os netos. “Tenho saudades deles”.

A Açucena “mostrou desde logo ser uma pessoa com um olhar muito diferenciado sobre as coisas que a gente propunha”, lembra Cristina Taquelim, da cooperativa cultural Chão Nosso. “Percebeu-se, ainda antes de se ter conversado muito com ela, que, do ponto de vista da linguagem, do ponto de vista da experiência artística, e, depois, também, do ponto de vista da escrita, era uma pessoa com práticas muito diferentes do grupo e foi por aí que fomos com ela”, esclarece. Mas isso não impedia, no entanto, que a sua primeira reação a qualquer proposta da equipa de mediadores, “a qualquer situação que lhe causava um bocadinho de desconforto”, fosse sempre: “Eu não consigo, eu não sou capaz”. Depois, “no fim, já dizia: ‘Eu não pensava que era capaz’”. Uma mudança de discurso muito importante, assinala a também psicóloga de formação, tendo em conta a sua baixa estima, “que a torna refém de muita coisa na vida”.“A verdade é que há ali, por exemplo, uma fratura de fundo em relação à mãe, à figura da mãe, e que depois eu vou encontrar nas coisas que ela escreveu, como a expressão [que acompanha o autorretrato da campanha de sensibilização] ‘Mãe… eu quero de novo outro parto entre nós’, [que faz parte de um poema escrito na adolescência dedicado à progenitora]. E não é por acaso que a gente escolheu essa expressão. Mas acho que ela nem tem plena consciência desse vazio na sua história”.

Com Açucena, para além da participação no laboratório de fotografia e da composição do autorretrato, foi feito, essencialmente, um trabalho de reedição, de curadoria, de alguns dos seus poemas e desenvolvidos exercícios de escrita a partir de versos de Florbela Espanca – “uma referência fortíssima nos seus escritos” – ou de Luís Vaz de Camões. “A Filipa [Duarte, coordenadora do projeto ‘Estou tão perto que não me vês’] tinha-me soprado ao ouvido que a Açucena gostava de escrever e um dia, em torno de uma destas atividades de composição, levo-lhe um [bloco] Moleskine que tinha em casa e disse-lhe que a Filipa me tinha trazido um poema dela que eu tinha achado lindíssimo – é o que acompanhada a peça que ela criou para a instalação [intitulado ‘Escrevo-me’]. Depois conversámos sobre o poema e eu fui-lhe dizendo: ‘Já reparaste que se a gente cortar estas duas palavras, fica melhor? Que se a gente mudar aqui a ordem, fica melhor?’ E ela foi concordando. E começou, então, a passar para o caderno que lhe dei muitas coisas, algumas que já tinha de outros cadernos, outras que foi compilando”, diz Cristina Taquelim, adiantado que se optou, assim, por selecionar alguns poemas que Açucena já tinha escrito e alguns dos textos que resultaram dos exercícios de escrita desenvolvidos nos laboratórios e criar a tal pequena brochura a que deram o nome de Pó de Borboleta, mas com o compromisso de, mais tarde, “quando a Açucena achar oportuno, quando estiver preparada para o fazer”, pegarem “em todo o material [que ela tem] e trabalhá-lo a sério”.

“A Açucena tem competências muito diferenciadas em relação aos outros na área da escrita. É uma mulher com leituras. Tem uma linguagem cuidada. Com observações interessantíssimas acerca dos livros que serviam de partida aos projetos [desenvolvidos nos laboratórios]. Tem até um percurso de participação em concursos, portanto, a escrita para ela não é uma novidade, ou não tem o mesmo significado que tem para os outros [participantes no projeto]. Estamos a falar de universos completamente diferentes e, portanto, isto tinha que se refletir, obviamente, no seu contributo para este compromisso final de todos”, reforça a mediadora, frisando que a passagem de Açucena pelos laboratórios artísticos “afirma uma necessidade que a tem acompanhado, que é usar a escrita para sublimar a sua solidão emocional, a sua busca pelo seu cavaleiro encantado, o amor defraudado, o amor perdido”. Uma “fragilidade efetiva” que não lhe permite “mobilizar as competências que ela possui ao serviço de um projeto de vida”, porque “são muitas ruturas”. Ainda assim, Cristina Taquelim foi notando, progressivamente, ao longo de todo o processo, “uma Açucena mais alegre, mais comprometida, mais contente com o resultado daquilo que fazia”. “Pode perguntar-me: ‘Mas tem a certeza de que foi do projeto? Não, não tenho’”, conclui a mediadora.

A passagem de Açucena pelos laboratórios artísticos “afirma uma necessidade que a tem acompanhado, que é usar a escrita para sublimar a sua solidão emocional, a sua busca pelo seu cavaleiro encantado, o amor defraudado, o amor perdido”.

“É afável, mas não se entrega”

“A Açucena tem uma história de vida que não foi fácil. Depois de estes anos todos, quando ela chega a nós, é uma pessoa muito sofrida, daí ela não ter muita facilidade na entrega. É afável, mas não se entrega. É uma pessoa que não se dá muito a conhecer. É educada, mas, ao mesmo tempo, distante. Gosta da sua individualidade”, diz, por sua vez, Palmira Piriquito, diretora técnica da Comunidade de Inserção. Perante isto, reforça a assistente social, acaba por ser através da poesia que se vai “conseguindo saber alguma coisa sobre a Açucena” e, nesse sentido, “o laboratório em que ela participou foi extremamente importante”, “porque ela, no normal funcionamento das atividades, não demonstra, tem dificuldade, tem que ter uma grande relação de confiança”.

Sendo a Comunidade de Inserção “uma resposta de transição”, e tendo Açucena, atualmente, rendimentos provenientes “da sua pensão de invalidez e da bolsa da formação profissional”, o passo seguinte, esclarece a diretora técnica, passará por trabalhar a “sua autonomização”, encontrando, assim, outro espaço para residir. Continuará, no entanto, a ser apoiada pela Cáritas “até que fique numa situação estável”, assegura a responsável. “A autonomia é unicamente da Comunidade de Inserção, com o consentimento dela, claro. Contrariamente ao motivo que a trouxe até nós, que não tinha rendimentos na altura e estava nunca situação de sem-abrigo, porque foi vítima de violência doméstica, neste tempo que tem estado na comunidade tem feito um trabalho interior e também ao nível de um equilíbrio financeiro, porque, como não tem gastos, vai amealhando esse dinheiro que serve de segurança para a sua autonomia. Mais dia, menos dia, terá as condições para se autonomizar”. Tudo o resto manter-se-á, reforça. “Continuará a fazer a sua formação profissional. E continuaremos a dar suporte nesta questão das artes, promovendo a sua participação em ateliês deste género [dos laboratórios], para lhe dar aqui segurança, porque a poesia, a escrita, é a única coisa que lhe dá sentido à vida. Para além das pessoas em situação de sem-abrigo, também acompanhamos pessoas que estejam em situação de risco e, no caso da Açucena, quando sair da comunidade, face à sua história de vida, ainda estará numa situação de risco”.

De acordo com o “Perfil das pessoas em situação de sem-abrigo”, acompanhadas pelo projeto “Estou tão perto que não me vê” entre março de 2022 e setembro de 2023, apresentado pela Cáritas em novembro, as mulheres representavam 9,1 por cento (41) do número total de pessoas nessa situação (449), sendo a violência doméstica a causa com menor expressão (dois casos).

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