No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, patente no castelo de Beja até ao final deste mês. Com produção da cooperativa cultural Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Hoje, escutamos o Jorge Guerreiro.
Texto | José Serrano Foto | Ricardo Zambujo
Reerguido das cinzas, uma e outra vez, tal como a mitológica ave, Jorge Guerreiro acredita que tem ainda à sua espera uma vida onde pode ser feliz
A baixa estatura não lhe denuncia os passos longos e enérgicos com que percorre as duas centenas de metros que, por entre ruas e casas antigas, separam a sede da Cáritas do castelo de Beja. A inquietação só se lhe termina depois de vistoriar, total e cuidadosamente, com olhar acostumado, a correta esquadria das molduras e o bom estado físico de todas as peças que constituem a exposição artística “Invisíveis – percursos para a visibilidade”. Uma mostra coletiva, em exibição no edifício contíguo ao posto de turismo, de um grupo de 10 pessoas em situação de sem-abrigo, da qual, Jorge Guerreiro, utente da Comunidade de Inserção da Cáritas Diocesana de Beja, é um dos autores. Naquele momento, uma turista vinda de Lisboa, de visita à exposição, ao saber que Jorge Guerreiro é um dos artistas revelados, exclama-lhe, prontamente, repetindo-se: “Espetacular! Estou encantada com estas obras, com todos estes pensamentos. Espetacular!”.
Após um subtil sorriso, desencadeado pelo elogio, Jorge Guerreiro informa-nos acerca da sua zelosa tarefa. “Venho aqui todos os dias, às vezes mais do que uma vez. A responsável pelo posto de turismo abre a porta e eu faço o resto. Sou eu que ligo as luzes, a telefonia e o ecrã de vídeo. E corrijo, se for preciso, coisas que não estão no seu lugar, que estão caídas, outras descoladas, enfim…”. Caso exista alguma necessidade de manutenção suplementar, Jorge Guerreiro relata-a, de imediato, a Cristina Taquelim, uma das três mediadoras da cooperativa cultural Chão Nosso que trabalharam com os autores na criação artística do acervo. “Não é por acaso”, sublinha a mediadora, “que o Jorge acabou por ser o cuidador, fundamental, da exposição”, tendo sido, inclusive, o cicerone de algumas visitas guiadas. Cristina Taquelim recorda o “caminho artístico” evolutivo do autor. “O Jorge foi uma das últimas pessoas a iniciar o projeto, a chegar ao grupo. Esteve muito tempo sem se ‘abrir aos outros’. Fazia uma ou outra pergunta, sobre uma determinada atividade, mas não criava grande espaço para conversa, receando o julgamento. Aparecia, cumpria e executava, à procura de um espaço de confiança, porque é um homem que, pela sua história de vida, sabe que não pode correr riscos”. Até que um dia, “já com uma apropriação do discurso das mensagens, percebendo, claramente, quais eram os objetivos do trabalho e defendendo-o, também, como seu, fez o relato da sua vida, muito sincera e abertamente, assumindo a sua experiência. Uma história comum, em termos das fraturas da sua infância, a tantas destas 10 pessoas”.
Uma história que, no caso de Jorge Guerreiro, começa há 55 anos, em Loulé. “Quando nasci os meus pais já não estavam a viver juntos. Nunca conheci o meu pai. Fui criado com a minha mãe e a minha avó materna. Aos seis anos fomos viver para o Alentejo, numa propriedade da família, no concelho de Odemira, onde estudei até ao sétimo ano. Foi por essa altura que eu e outros companheiros começámos a beber. Bebíamos o que aparecia. Desisti dos estudos e comecei a trabalhar, não só na nossa terra, mas, também, em outras propriedades, a carregar palha, a tomar conta de animais, na apanha do tomate, por aí fora… estava habituado às tarefas do campo, desde pequenino”. À medida que o seu salário aumentava também o consumo diário de álcool ia progredindo – “Com 14 anos, eu levava para o trabalho, todos os dias, pelas mãos de quem me preparava o farnel, uma garrafa de vinho. Nunca me passou pela cabeça que, já nessa altura, eu tinha uma dependência”.
Três anos depois, Jorge Guerreiro começa a trabalhar nas minas de Neves-Corvo como ajudante de serralheiro, tendo, posteriormente, ido para Sines, laborar como pintor, na construção civil, mas “sempre a beber muito, cerveja, aguardente, vinho”. A dependência foi-se agravando, misturando ao álcool que consumia outro tipo de estupefacientes. “A partir dos 18 anos comecei a juntar tudo, consumi todas as drogas, mas a da minha eleição continuou a ser, sempre, o álcool”, revela. “Tanto, que consegui deixar todas as outras, sem ajuda, pelo álcool. Quando necessitava de heroína, bebia”. A fase de todas as misturas prosseguiu até aos seus 30 anos, altura em que Jorge Guerreiro, a trabalhar em limpeza e abate florestal, tomou consciência da própria debilidade proveniente da sua adição. “Já não conseguia trabalhar todos os dias, comecei a faltar e percebi, pela primeira vez, que o caso era sério”. O suficiente para que, por iniciativa própria, se juntasse a uma associação que acolhia pessoas com problemas de alcoolismo e toxicodependência. “Estive com eles, em Tancos, nove meses. Nessa altura conheci uma rapariga (ela não estava na comunidade, não era adicta) e juntámo-nos. Estivemos juntos três anos. Depois, fui para o Algarve, onde comecei a trabalhar, novamente, como pintor. Aluguei uma casa. Durante esse período, estive cinco anos ‘limpo’”. Até ao dia “em que decidi beber uma cerveja”.