Diário do Alentejo

Invisíveis: medo

23 de janeiro 2024 - 08:00
Todas as vezes que lhe perdi o medo perdi-me de mim. J.

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, patente no castelo de Beja até ao final deste mês. Com produção da cooperativa cultural Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Hoje, escutamos o Jorge Guerreiro.

 

Texto | José Serrano Foto | Ricardo Zambujo

 

Reerguido das cinzas, uma e outra vez, tal como a mitológica ave, Jorge Guerreiro acredita que tem ainda à sua espera uma vida onde pode ser feliz

 

A baixa estatura não lhe denuncia os passos longos e enérgicos com que percorre as duas centenas de metros que, por entre ruas e casas antigas, separam a sede da Cáritas do castelo de Beja. A inquietação só se lhe termina depois de vistoriar, total e cuidadosamente, com olhar acostumado, a correta esquadria das molduras e o bom estado físico de todas as peças que constituem a exposição artística “Invisíveis – percursos para a visibilidade”. Uma mostra coletiva, em exibição no edifício contíguo ao posto de turismo, de um grupo de 10 pessoas em situação de sem-abrigo, da qual, Jorge Guerreiro, utente da Comunidade de Inserção da Cáritas Diocesana de Beja, é um dos autores. Naquele momento, uma turista vinda de Lisboa, de visita à exposição, ao saber que Jorge Guerreiro é um dos artistas revelados, exclama-lhe, prontamente, repetindo-se: “Espetacular! Estou encantada com estas obras, com todos estes pensamentos. Espetacular!”.

Após um subtil sorriso, desencadeado pelo elogio, Jorge Guerreiro informa-nos acerca da sua zelosa tarefa. “Venho aqui todos os dias, às vezes mais do que uma vez. A responsável pelo posto de turismo abre a porta e eu faço o resto. Sou eu que ligo as luzes, a telefonia e o ecrã de vídeo. E corrijo, se for preciso, coisas que não estão no seu lugar, que estão caídas, outras descoladas, enfim…”. Caso exista alguma necessidade de manutenção suplementar, Jorge Guerreiro relata-a, de imediato, a Cristina Taquelim, uma das três mediadoras da cooperativa cultural Chão Nosso que trabalharam com os autores na criação artística do acervo. “Não é por acaso”, sublinha a mediadora, “que o Jorge acabou por ser o cuidador, fundamental, da exposição”, tendo sido, inclusive, o cicerone de algumas visitas guiadas. Cristina Taquelim recorda o “caminho artístico” evolutivo do autor. “O Jorge foi uma das últimas pessoas a iniciar o projeto, a chegar ao grupo. Esteve muito tempo sem se ‘abrir aos outros’. Fazia uma ou outra pergunta, sobre uma determinada atividade, mas não criava grande espaço para conversa, receando o julgamento. Aparecia, cumpria e executava, à procura de um espaço de confiança, porque é um homem que, pela sua história de vida, sabe que não pode correr riscos”. Até que um dia, “já com uma apropriação do discurso das mensagens, percebendo, claramente, quais eram os objetivos do trabalho e defendendo-o, também, como seu, fez o relato da sua vida, muito sincera e abertamente, assumindo a sua experiência. Uma história comum, em termos das fraturas da sua infância, a tantas destas 10 pessoas”.

Uma história que, no caso de Jorge Guerreiro, começa há 55 anos, em Loulé. “Quando nasci os meus pais já não estavam a viver juntos. Nunca conheci o meu pai. Fui criado com a minha mãe e a minha avó materna. Aos seis anos fomos viver para o Alentejo, numa propriedade da família, no concelho de Odemira, onde estudei até ao sétimo ano. Foi por essa altura que eu e outros companheiros começámos a beber. Bebíamos o que aparecia. Desisti dos estudos e comecei a trabalhar, não só na nossa terra, mas, também, em outras propriedades, a carregar palha, a tomar conta de animais, na apanha do tomate, por aí fora… estava habituado às tarefas do campo, desde pequenino”. À medida que o seu salário aumentava também o consumo diário de álcool ia progredindo – “Com 14 anos, eu levava para o trabalho, todos os dias, pelas mãos de quem me preparava o farnel, uma garrafa de vinho. Nunca me passou pela cabeça que, já nessa altura, eu tinha uma dependência”.

Três anos depois, Jorge Guerreiro começa a trabalhar nas minas de Neves-Corvo como ajudante de serralheiro, tendo, posteriormente, ido para Sines, laborar como pintor, na construção civil, mas “sempre a beber muito, cerveja, aguardente, vinho”. A dependência foi-se agravando, misturando ao álcool que consumia outro tipo de estupefacientes. “A partir dos 18 anos comecei a juntar tudo, consumi todas as drogas, mas a da minha eleição continuou a ser, sempre, o álcool”, revela. “Tanto, que consegui deixar todas as outras, sem ajuda, pelo álcool. Quando necessitava de heroína, bebia”. A fase de todas as misturas prosseguiu até aos seus 30 anos, altura em que Jorge Guerreiro, a trabalhar em limpeza e abate florestal, tomou consciência da própria debilidade proveniente da sua adição. “Já não conseguia trabalhar todos os dias, comecei a faltar e percebi, pela primeira vez, que o caso era sério”. O suficiente para que, por iniciativa própria, se juntasse a uma associação que acolhia pessoas com problemas de alcoolismo e toxicodependência. “Estive com eles, em Tancos, nove meses. Nessa altura conheci uma rapariga (ela não estava na comunidade, não era adicta) e juntámo-nos. Estivemos juntos três anos. Depois, fui para o Algarve, onde comecei a trabalhar, novamente, como pintor. Aluguei uma casa. Durante esse período, estive cinco anos ‘limpo’”. Até ao dia “em que decidi beber uma cerveja”.

“O que mantém um alcoólico sóbrio é o medo do álcool. Não lhe toca, enquanto esse medo persistir. Mas quando se lhe perde o medo, esquecemo-nos que o álcool é mais forte que nós. Foi o que me aconteceu, quando, passado cinco anos de estar bem, decidi beber uma cerveja. Bastou uma, porque atrás dessa vieram tantas outras e eu voltei a afundar-me”.

A recaída

 

“Todas as vezes que lhe perdi o medo, perdi-me de mim. O que mantém um alcoólico sóbrio é o medo do álcool. Não lhe toca, enquanto esse medo persistir. Mas quando se lhe perde o medo, esquecemo-nos que o álcool é mais forte do que nós. Foi o que me aconteceu, quando, passado cinco anos de estar bem, decidi beber uma cerveja. Bastou uma, porque atrás dessa vieram tantas outras e eu voltei a afundar-me”. Uma queda profunda que o fez querer regressar, por decisão própria, à associação onde anteriormente estivera, em Tancos. E por outras associações passou. Em Lisboa, no Fundão, em Castelo Branco. “Reergui-me novamente, por fim”, diz. “Arranjei trabalho como sapador florestal, andei nos camiões de recolha de lixo da Câmara da Sertã. Comecei a viver com uma rapariga de lá. Quatro anos juntos, sóbrio”. Até ao dia em que o medo foi esquecido e o álcool recomeçou, persistente, a tomar conta da sua vontade. “Comecei, outra vez, a faltar ao trabalho. Só bebia, e a minha companheira pôs-me fora de casa. Fui viver para um carro meu, que já não funcionava, até ser rebocado. Fiquei a dormir na rua e a maior parte do tempo passava-o a mendigar, tentando arranjar dinheiro para a bebida. Nas poucas vezes que tinha vontade de comer ia até à santa casa da misericórdia. Comecei a sentir um enorme desespero, sabendo que tinha de fazer alguma coisa por mim, mas sem saber por onde começar”. E o percurso repetiu-se, uma vez mais.

Através dos serviços sociais da Câmara da Sertã, Jorge Guerreiro ingressou na associação O Gato – Grupo de Ajuda a Toxicodependentes, em Tavira, onde esteve alguns meses. Por lá, nas margens do rio Gilão, arranjou trabalho nas estufas de framboesa e de amoras, plantando e aplicando produtos fitofarmacêuticos, transportando trabalhadores de umas quintas para as outras. “Aluguei uma casinha, arranjei uma companheira”. Voltou a reincidir. A dormir nas ruas, em casas abandonadas, no metropolitano, em estações de comboios, de várias cidades. Por vezes, transportando sacos de supermercado com os seus míseros pertences. Outras, vagueando apenas sem qualquer “bagagem”. Cartões a fazerem de colchão e de cobertores. A noção do perigo, sempre presente, a roer-lhe o corpo frio. “Quando pensava que estava curado voltava a pedir uma cerveja, pensando que não me iria fazer mal. Mas o problema estava lá e para um dependente, seja de que droga for, não existem consumos esporádicos. A primeira vez que lhe volta a tocar volta ao fundo. Foi isso que me aconteceu, em todas as vezes que recaí”.

Abrindo um parêntese no seu discurso, Jorge Guerreiro faz questão de frisar a perigosidade de uma droga lícita, socialmente aceite, recusando o disfarce da menorização da problemática do consumo excessivo de álcool. “Muitos há com um problema de alcoolismo que nem se apercebem que o têm. Deve-se ter muito cuidado com os consumos, porque não é só o bêbado da rua, que não faz a higiene, que é alcoólico. Há muitas pessoas que bebem durante o período de trabalho e que quando o terminam vão beber. Tenham cuidado, porque o álcool é manhoso, é mais forte que o nosso querer. Quanto estou sóbrio penso em tudo o que já perdi. E eu sou como uma fénix, renascido das cinzas várias vezes. Estive no fundo e reergui-me. Tive um quotidiano normal de trabalho, família, carro, casa. E depois vou ao fundo, outra vez. Sem o álcool teria sido mais feliz. Mas ainda não desisti de ter uma vida”.

Exposição

 

Jorge Guerreiro participou nos três ateliês – “Insilenciáveis – Narrativas de Memória”, “Click – Narrativas Visuais” e “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração” – propostos pela cooperativa cultural Chão Nosso para a elaboração desta mostra. Uma “intervenção desenhada à volta dos interesses e das histórias de vida pessoais dos autores”, apresentando com manifesta “dignidade artística os seus trabalhos, as suas emoções, valorizadas por cada um dos mentores que com eles trabalhou, a começar pelos técnicos da Cáritas”, frisa Cristina Taquelim.

A seriedade do trabalho desenvolvido, não significa, porém, que tudo tenha corrido sem expectáveis percalços. “No fundo, um projeto desta natureza acaba por ser um laboratório da vida, porque também nela nem todos os projetos correm bem. A gente fracassa, temos que ir por outros caminhos, destruir uma parte do que fizemos para construir de novo. Há aqui muito de ritmos, de rotinas de compromisso que se desenvolvem com um objetivo artístico, mas que são, ao mesmo tempo, competências de vida que trabalhamos juntos”.

Sobre as histórias de cada um, artisticamente expostas, Cristina Taquelim volta a acentuar os elementos comuns existentes em cada uma delas, ao encontrarmos “infâncias profundamente fraturantes, ausência de oportunidades, de acesso a ferramentas da cultura escrita, que nos deveriam fazer pensar sobre o que é a prevenção, a intervenção precoce – temos todos de perceber que é na infância que tudo isto se previne”, adverte.

Da exposição, pela qual zela diariamente, Jorge Guerreiro espera que possa ser uma “chamada de atenção” que incentive a olhar, “com outros olhos”, para as pessoas em situação de sem-abrigo, uma luz que permita iluminar o desconhecido ou, “porque os olhos estão fechados”, aquilo que não se quer ver. “Seria importante que as pessoas formassem uma outra ideia do que é ser sem-abrigo, que modificassem a perceção de que uma pessoa que vive na rua tem de ser, obrigatoriamente, um ladrão, um malfeitor”. Reportando-se ao título da exposição, Jorge Guerreiro considera: “Se somos invisíveis é porque as pessoas nos passam ao lado, sem ninguém se importar em saber a história que está por detrás de cada um de nós, sem ninguém estar interessado em que aquele indivíduo, a passar por momentos muito difíceis, possa voltar a ter uma vida. Quem vive na rua, sem trabalho, sem alimentação, sem retaguarda familiar, nunca conseguirá reerguer-se caso não tenha ajuda. Eu tenho abrigo porque estou na Cáritas. Se não estivesse aqui…”.

À saída da exposição, uma vez mais ciceroneada por Jorge Guerreiro, perguntamos-lhe qual o sentimento que experienciou perante o espontâneo aplauso da excursionista de Lisboa. “Orgulho”.

“No fundo, um projeto desta natureza acaba por ser um laboratório da vida, porque também nela nem todos os projetos correm bem. A gente fracassa, temos que ir por outros caminhos, destruir uma parte do que fizemos para construir de novo. Há aqui muito de ritmos, de rotinas de compromisso que se desenvolvem com um objetivo artístico, mas que são, ao mesmo tempo, competências de vida que trabalhamos juntos”.

Cristina Taquelim

O percurso na Cáritas

 

Jorge Guerreiro chegou pela primeira vez a Beja há cerca de cinco anos, referenciado pela equipa do Centro de Respostas Integradas (CRI) do Algarve. “Naquela altura, o Jorge experienciava, em Loulé, a condição de sem-abrigo, pernoitando na rua, em carros abandonados”, elucida Márcio Guerra, técnico da Cáritas Diocesana de Beja responsável pelo seu processo. “Quando aqui chegou, essa primeira vez, com problemas de consumos de álcool e de outras substâncias, foi-lhe proposto um tratamento às dependências”, através do Programa Geral para Toxicodependentes, na Comunidade Terapêutica Horta Nova, valência da Cáritas Diocesana de Beja, que tem como missão a recuperação e a reinserção plena de pessoas com dependências químicas. “Esteve connosco 18 meses, concluindo o respetivo percurso terapêutico”. Após o término do programa “saiu da comunidade, com alta clínica”, regressando ao Algarve, “por sua vontade própria”. Pouco tempo depois, “menos de um ano”, Jorge Guerreiro volta a recair. Desta vez, exclusivamente, de consumo de álcool. Fica, novamente, na condição de sem-abrigo. Regressa a Beja, a seu pedido, ingressando, desta vez, no Programa Específico para Alcoólicos, uma vez mais, na Comunidade Terapêutica Horta Nova, “onde está cerca de um ano e meio”. Após esse período a Cáritas de Beja propõe-lhe, “porque não tinha rede de suporte, nem habitação”, a transição para a Comunidade de Inserção. Uma resposta da instituição que presta serviços e desenvolve atividades para pessoas e famílias em situação de vulnerabilidade e exclusão social, necessitadas de serem apoiadas no processo de integração, sendo a equipa responsável constituída por técnicos da área das ciências sociais, com supervisão de um psiquiatra. É aí que se encontra, desde maio passado. Atualmente, Jorge Guerreiro está a frequentar um curso de formação do Instituto do Emprego e Formação Profissional de Beja, na área da mecanização agrícola, que lhe possibilitará obter, no final do mês de fevereiro, a carta de condução de tratores agrícolas. O objetivo seguinte passa, diz, Márcio Guerra, “por podermos concretizar, em 2024, um projeto de experiência de integração do Jorge Guerreiro em posto de trabalho”. Objetivo que se enquadra na forma como o próprio anseia que o futuro lhe chegue. “Espero que esta formação me possibilite arranjar um emprego fixo. Sair daqui [da Comunidade de Inserção] com os pés bem assentes na terra e a cabeça no lugar. Não voltar a precisar de ajuda, mais vez nenhuma. Não lhe voltar a perder o medo”.

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