Diário do Alentejo

O silêncio da água

21 de janeiro 2024 - 08:00
Depois de anos à espera, a barragem do Monte da Rocha deverá ficar ligada a Alqueva em 2026. O sentimento geral da população é de “ver para crer”
Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

Com a assinatura, no passado dia 11, do contrato de empreitada para construção do Circuito Hidráulico do Monte da Rocha e do Bloco de Rega da Messejana a Alqueva, estarão a ser dados os primeiros passos de um desejo com muitos anos. Mais de 50 anos depois da construção da barragem situada no concelho de Ourique, é por nova água que se deseja agora.

 

Texto Marco Monteiro Cândido

Quem observar por estes dias o amontoado de pedras, e não souber o que ali se ergueu em tempos, dificilmente adivinhará que nesse local já existiu uma aldeia. Trata-se da Aldeia Nova, no concelho de Ourique, submersa em 1972 pelas águas da barragem do Monte da Rocha. Terra de bailes e música, ou não fossem de ali originários alguns dos mais exímios tocadores de viola campaniça, como Manuel Bento ou Francisco Bailão. Os moradores saíram da povoação em 1971, espalharam-se em volta, especialmente, em Panoias, Funcheira e Estação de Ourique, enquanto as suas casas, terrenos e parte das suas vidas ficaram para trás, sendo lentamente submersos pelas águas do desenvolvimento e do progresso.

Há cerca de sete anos a Aldeia Nova veio à tona, novamente, trazendo memórias e imagens de outrora, sendo um esqueleto do que tinha sido. Fruto da falta de água e das secas persistentes que se têm feito sentir na última década em todo o Baixo Alentejo, a Aldeia Nova nunca mais ficou submersa. A céu aberto ficaram memórias e ruínas, mais ou menos preservadas, do esqueleto de uma aldeia que em tempos teve vida. Desde que ficou à vista, nunca mais a Aldeia Nova voltou à profundeza das águas.

Se outrora o som da vida pulsava por ali, agora apenas se ouvem os pássaros, as vacas e os chocalhos destas, em volta da aldeia. Esta é uma pálida imagem do que já foi. Se em 2017 ainda era possível reconhecer os espaços, quem percorre agora o antigo aglomerado de casas apenas se depara com um amontoado de pedras, onde antes eram a escola primária ou o moinho. E se em 2017 ainda havia água junto a este, agora é pouca ou nenhuma. O braço da barragem do Monte da Rocha está seco. Tirando os sons da natureza, misturados com o toque dos chocalhos, ao longe, pouco mais há do que silêncio. O silêncio da água. O silêncio que a água trouxe. E que persiste, agora que ela falta.

A cerca de três quilómetros em linha reta, do outro lado da barragem do Monte da Rocha, está o monte da Chada Velha, pequeno conjunto de casas, plantado à beira da albufeira, que já teve a água mais perto do que está agora. É aí que Francisco Martins, agricultor de 65 anos, tal como o pai e o avô o foram, está a vender o leite das cabras a uma queijaria local. A sua propriedade – Cabeça do Marco – situa-se a alguns quilómetros daquele sítio, já depois de Panoias, a sede da união de freguesias a que a barragem pertence. Originário do concelho vizinho de Castro Verde, comprou a terra em 1995. E, desde aí, não se lembra de ter visto a mancha de água tão pálida como agora. “Já a vi a descarregar, agora assim tão baixa como está… E para encher, já viu o terreno que [a água] precisa de ocupar?”.

O agricultor, como todos os que dependem da terra e do tempo, vê com apreensão o que ainda virá. Até porque o mais certo é a incerteza do futuro. “Cada vez chove menos e tem sido um bocado ruim. Agora houve muita fartura de erva, mas daqui a amanhã pode não haver. As maiores dificuldades são com a água. As ribeiras estão secas, ainda não correu uma pinga de água. Não sei como é que será o verão. Tenho um furo e umas barragens pequenas. E o furo ainda não secou, graças a Deus. Não quer dizer que, de um momento para o outro, não seque. São coisas em que não podemos ter muita confiança”. Francisco Martins sabe que o contrato para a ligação da barragem do Monte da Rocha à barragem do Roxo, no concelho de Aljustrel – para receber água de Alqueva –, já foi assinado. E até já foi contactado devido às bocas de rega para o futuro regadio. Mesmo assim, mantém-se cauteloso em relação ao futuro. “Não sei [se as obras avançarão]. Por acaso aquela terra da Cabeça do Marco apanha a parte de cima da via rápida [IC1], até 15 hectares. Sou um bocado contra aquilo porque não dizem nada, é tudo à vontade dos engenheiros. Tenho lá um bocadinho de terra que é bom para regadio, mas tenho lá outro que é em serros, que apanha logo rocha. Acho que não era para terem metido ali tanto hectare. Já me deram o cheque da boca de rega e a senhora dizia que os trabalhos iam começar para os finais de fevereiro. É verdade? É mentira? Isso…”. Francisco Martins ainda não acredita muito bem no avanço da ligação a Alqueva. Tal como a água que poderá cair do céu, a que virá pelas tubagens para encher a barragem do Monte da Rocha só será credível depois de chegar. “Se vai mudar alguma coisa? A ver vamos, assim dizia o cego. Eu sem ver as coisas feitas… Não confio já muito”.

O percurso do monte da Chada Velha até Panoias passa pelo paredão da barragem. O nível da água está baixíssimo em relação à capacidade total da albufeira. Há muitos meses que se mantém nos oito por cento, bem longe do topo do poço de descarga, usado pela última vez em 2013, quando a barragem atingiu a sua plenitude. Por ali, apenas um casal a almoçar, em jeito de passeio, junto à sua carrinha, e uma autocaravana uns metros antes. Apenas o silêncio da pouca água domina a paisagem.

Promessas em tempo de campanha? É ver para crer A União de Freguesias de Panoias e Conceição tinha, à data dos Censos de 2021, 488 habitantes. Em Panoias, quase à da hora do almoço, são poucas as pessoas que se veem pelas ruas. No jardim, mesmo à entrada da povoação, Joaquim Silva e Raul Caeiro, ambos de 86 anos, põem a conversa em dia enquanto esperam pela refeição que chegará em breve. O tema: a falta de água e a promessa de que esta chegará com a ligação da barragem do Monte da Rocha a Alqueva.

“Não devia ser daqui a dois anos. Daqui a dois meses é que já devia estar ali a água. É impossível, mas dois anos é muito. É que se continuar assim é mau, para a agricultura e para nós. É que são uns poucos de concelhos: Ourique, Castro Verde, Almodôvar, Mértola [e Odemira]. Qualquer um desses concelhos tem muito consumo, muita vila, muita aldeia”. Joaquim Silva é pessoa conhecida na terra, principalmente, pela sua alcunha: “Laranjinha”. Padeiro em tempos, nos últimos anos, antes de a saúde o levar a alterar a rotina dos dias, tinha um café/mercearia no centro da vila, batizado, precisamente, com a sua alcunha: taberna do Laranjinha. E se já viu muita coisa em vida, não se lembra de alguma vez ter visto a barragem tão em baixo. “Estive lá no dia de Ano Novo. Até dá pena quando se olha para aquilo. Faz de conta que é uma ribeira”.

A falta de água também é algo que preocupa o companheiro de conversa de Joaquim Silva, Raul Caeiro, natural de Estremoz, em Panoias há cerca de 35 anos, apesar de ainda não ter havido problemas de maior no abastecimento para consumo humano. “Isto vai sendo uma miséria grande se não houver água. Já era para estar resolvido, há anos que falam nisso. Perto daqui [no concelho de Aljustrel] já há água, e nós, aqui, não. Já podia haver, uma coisa tão perto. Não vêm para aqui não sei porquê”.

Joaquim Silva gostava de ver a água a chegar à barragem, “se chegar a ser feito”. E explica a sua desconfiança: “Isto já tinha sido anunciado há uns anos. Primeiro até falaram que era em 2023. [Se assim fosse] já tínhamos um ano [de ligação a Alqueva]. Agora, com a campanha eleitoral, aparece tudo em menos de nada. Quando passarem as eleições, pronto. É tudo feito, é tudo mexido, enquanto andam na campanha. É tudo maravilhas. Passou a campanha, ganhando um ou outro, em chegando lá, esquecem-se”. Em tom de remate, entre risos, Joaquim Silva lá diz, mais sério: “Se calhar, quando a água cá chega, já eu cá não estou”. A hora do almoço chegou. O silêncio, esse, continua nas ruas da vila.

 

Terra do sado à espera da água do Guadiana O Baixo Alentejo é, de há largos anos para cá, sinónimo de despovoamento e, cada vez mais, de desertificação. A precipitação na região tem sido cada vez menos frequente e quando ocorre surge de forma brusca e por curtos períodos. Se isto se reflete no armazenamento de água para consumo humano (mas também para o abeberamento de animais), é o setor agrícola que está mais sujeito a estas alterações. E aquele a que a água mais falta faz.

Com 58 anos, Ezequiel Guerreiro, de Panoias, tem trabalhado toda a vida na agricultura. Tem sido essa a sua atividade e o diagnóstico que faz é sintomático do que os seus olhos, no terreno, veem: “Não há água nos pegos. Da Rocha até Alvalade [do Sado] está tudo seco. Isto da barragem não acredito que venha assim tão rápido como as coisas são faladas. Era bom que fosse”. E acrescenta: “Nestes últimos dois anos tem sido muito complicado. A nossa sorte, aqui nesta zona, são os furos. Felizmente, têm tido água e ainda não secaram”. Tal como complicados serão os próximos dois, até à prevista entrada em funcionamento da obra agora anunciada. “Se a barragem não encher, se não chover, se as ribeiras não tiverem água, não sei como vai ser. Vamos ter esperança”.

Continuando o percurso por estas terras onde o Sado está enraizado, e que serão beneficiadas pela água que virá do Guadiana, é junto ao Itinerário Complementar n.º 1 (IC1), estrada que atravessa o concelho de Ourique de norte a sul, que está uma das propriedades de Isaque Martins, de 44 anos, agricultor. “Este projeto já devia ter sido feito há uns 20 anos. Aqui nesta zona sempre tivemos muita dificuldade com a água, porque nunca soubemos com o que podíamos contar. Em cada campanha tínhamos que fazer sempre menos do que queríamos porque a água nunca era muita. E a agricultura foi morrendo. Deixámos de ir produzindo. E mesmo a água para os animais, porque as ribeiras estão todas secas, nos últimos anos não temos contado com nada. Se o projeto tivesse sido feito há uns 20 anos, a agricultura não estaria morta como está agora”.

No monte Vale de Romeiras, a exploração de Isaque que poderá usufruir da água de Alqueva, criam-se bovinos. São 45 vacas, espalhadas por 110 hectares. Tempos houve em que também produziam cereais – trigo, aveia e milho –, o que já não acontece. A falta de água a isso trouxe. Mas, mesmo para a criação, o cenário não é fácil. “Eu tenho furo para dar de beber aos animais, mas tenho água numa ponta da propriedade. Na outra ponta tenho que gerir com a água da ribeira e de alguns barrancos, mas, às vezes, no fim de abril, já tenho que carregar do furo para lá, para ter água. E não me posso descuidar muito, senão fico sem água no outro lado”.

Por muito que o cenário se altere no futuro – “mais vale tarde do que nunca” –, o jovem agricultor está apreensivo. E tem uma esperança comedida, visto que o maior problema, para Isaque Martins, será outro. “Não há agricultores, jovens agricultores. Foi-se tudo embora. Quem é que vai pegar agora na agricultura? Não estou a ver, depois de a agricultura ter morrido, voltarem a investir. Ter água com fartura traz sempre mais-valias. Vem beneficiar para os animais, para se fazer alguma cultura, mas… (…) E não acredito que a ligação esteja feita em 2026. Podem começar agora os trabalhos, mas vai haver uma derrapagem. Se me disserem que para 2028, 2029, esteja pronto, acredito. Antes disso, era bom que estivesse, mas não acredito. Até porque agora é a forma de se ganhar alguns votos. Passando as eleições, a coisa acalma e os trabalhos é para se irem fazendo”.

Apesar de Isaque vaticinar um cenário desanimador, com poucas pessoas a enveredarem no setor agrícola na região, a poucos quilómetros da sua propriedade, o que João Pereira, de 45 anos, está a implementar contraria esse vaticínio. É junto à aldeia de Conceição que se encontra o monte do Reguenguinho. Se, em tempos idos, era o avô paterno de João Pereira que ali trabalhava, agora é o neto que dá cumprimento ao sonho herdado. E muito por culpa da água do Guadiana que chegará, para banhar estas terras que fazem parte da Bacia Hidrográfica do Sado, e que fez com que o ex-gestor de propriedades mudasse de vida há cerca de um ano. “Este passo (de ligação da Rocha ao Roxo) é fundamental para o meu projeto. Apesar de eu já ter algum regadio do perímetro de rega de Migueis e Monte Gato [duas pequenas barragens com cerca de 1,2 milhões de metros cúbicos de água, junto a Conceição] para cerca de 35 hectares de plantação de olival, vou passar a ter 160 hectares. A ligação é fundamental para a viabilidade do projeto e para conseguir rentabilizar aquela área”.Ainda a residir em Beja, o plano deste jovem agricultor é regressar à sua terra de infância, reconstruir o monte do avô, António Pereira Nobre, e aí residir. O tempo para isso acontecer, mais uma vez, está relacionado com a rentabilidade do olival que está a implementar e, para isso, é fundamental que a água chegue o mais depressa possível. “Bem, a EDIA [Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva] fala em dois anos, vamos ver quanto será o tempo de atraso”, diz, entre risos. “Estou esperançoso que não seja muito grande”.

Se, nesta fase de arranque, por ser uma cultura de regadio e por ter o abastecimento de água assegurado por agora, encara o futuro de forma algo tranquila, a realidade seria bem diferente caso optasse por uma cultura de sequeiro, o mais comum na zona sul do distrito de Beja. “Se tivesse que depender da agricultura de sequeiro, com aquela área, não conseguia instalar-me e tirar o meu sustento”. Mesmo assim, só a perspetiva da chegada da água de Alqueva o fez regressar, “sem certeza, mas com alguma esperança de que [isso] acontecesse”. Com o regadio já existente, ponderaria. Sem regadio, existente ou projetado, seria impossível. “[Monte Gato e Migueis] são barragens pequenas, há anos em que não enchem, o que torna a situação muito mais difícil e complicada. Esta demora [entre o primeiro anúncio da ligação, em 2017, e a assinatura do contrato, no passado dia 11] foi um bocadinho dramática para quem estava na expectativa. Avança? Não avança? Avança, mas agora para. Seguimos o caminho como se não existisse ou esperamos para ver o que é que se concretiza? Andámos anos nesta indecisão”. Por agora o tempo é de espera, mas há algo que já ninguém tira a João Pereira: o orgulho que o seu avô teria por vê-lo regressar à terra e à agricultura. “Foi o projeto de vida dele, construir aqui qualquer coisa e que alguém continuasse”.

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