Diário do Alentejo

Invisíveis: silêncio

14 de janeiro 2024 - 08:00
Quando uma vida se desarruma, é o diabo para voltar aos eixos. A.

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”. Com produção da cooperativa cultural Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Comecemos pelo António Maria.

 

Texto | Marco Monteiro Cândido

 

 

António Maria, um homem que vive o dilema de sozinho se sentir acompanhado e de acompanhado se sentir sozinho. E que do silêncio faz a sua palavra

 

“Quando uma vida se desarruma, é o diabo para voltar aos eixos”. É esta a frase de António Maria, de 64 anos, que acompanha o seu autorretrato e que faz parte da campanha que a Cáritas espalhou pelas ruas de Beja, no fim de outubro passado, como chamada de atenção para a exposição de trabalhos de 10 pessoas em situação de sem-abrigo, em que contam as suas histórias, a perceção que têm por não terem uma casa. Por fazerem da rua, casa.

 

As palavras são muito bem medidas. António Maria não gasta mais do que deve, mais do que pondera, em vocabulário. Tudo o que verbaliza é muito bem pensado, avaliado, como se as letras, as palavras, as frases, tivessem um peso desmedido antes de se materializarem. Ou, como se o discurso tivesse a profundidade que deveria ter sempre. Afinal de contas, a palavra não deve ser usada em vão, de maneira fútil. E é por isto, por esta sua forma de ser, que há uma palavra que ganha especial destaque: silêncio. E, com ela, a solidão e o ser solitário.

Com 64 anos, António Maria expressa-se muito mais através do gesto, do olhar, do que naquilo que diz. E o que faz é o que vai ganhando forma através das suas mãos, da máquina de costura que opera, compenetrado, embrenhado, num mundo só seu, à parte de tudo o que o rodeia. Foi na pandemia que este homem descobriu um grande propósito para os dias que correram desde aí: a costura. Mas a história de António Maria conta-se a dois tempos, com diversos capítulos pelo meio. Dois tempos distintos, como se duas vidas se tratassem, em dimensões quase opostas, dois tempos de um mesmo compasso: a vida antes de chegar à Cáritas Diocesana de Beja e a vida depois de aí chegar. Viajemos à primeira.

 

 

 

“Quando uma vida se desarruma, é o diabo para voltar aos eixos”

 

A sua história na Cáritas Diocesana de Beja, onde chegou em meados de setembro de 2016, é apenas o capítulo mais recente da sua vida. Uma vida que tem as suas raízes no concelho de Odemira, entre os montes e serros da Ribeira do Seissal, do Campo Redondo, de Colos. Aos 12 anos saiu da escola, com a quarta classe feita na primária do Campo Redondo. Dois quilómetros e meio marcavam a distância, em linha reta, entre a escola e o monte onde vivia com os pais. Eram esses dois quilómetros e meio que intermediavam a vida de António Maria até este sair da escola. Por essa altura, concluída a instrução primária, foi guardar animais. “Não foi uma infância muito feliz… Levantava-me, ia guardar os animais até à noite, voltava para casa…”. Aos 14 anos, entre o cuidar dos animais e o trabalho no campo, um acaso dos dias, uma simples indicação, levaria a que mudasse o caminho da sua vida, mais à frente, mesmo que não o soubesse, na altura. “Quando ainda tinha 14 anos estava a trabalhar no tomate, a regar tomate com calor. Há um senhor de Sines, que vendia peixe por grosso, e que ia vender na aldeia de cima, mas ele não sabia qual era a casa [que procurava]. Pediu-me se o podia ajudar a encontrá-la. ‘Sim, vamos’. E ele, como recompensa, deu-me meia caixa de carapaus. E o meu pai, que tinha lá uma daquelas balancinhas antigas: ‘Epá, vai vender, vai vender’. Eu, por insistência dele, fui vender o peixe, essa metade. E fiquei com dinheiro para comprar uma caixa. No dia seguinte, fui a casa do outro senhor, à espera do vendedor para lhe comprar uma caixa de carapaus. E nessa altura eu tirava 70, 80 escudos por dia, enquanto os outros, ao calor, ganhavam 20”. Por ver que compensava vender peixe ao invés de andar a guardar animais ou apanhar tomate, António Maria queria seguir essa vida. Mas o vendedor que lhe fornecia o peixe deixou de aparecer. Para andar de bicicleta a vender teria que ter uma licença. Por tudo isso, parou. E assim regressou à vida de guardador de rebanhos.

Aos 22 anos, já homem, comprou um triciclo para voltar à vida, anteriormente breve, de vendedor ambulante. Os dias passados com os animais tinham chegado ao fim. “Eu disse: isto não dá. Isto já não dá porque eu não tenho um sábado, não tenho um domingo. Queria ir a um sítio e não podia. Só via mato, não via mais nada. E foi assim que comecei [nas vendas]”.

Nesse tempo, António Maria apenas tinha os pais na sua vida. Não havia mais ninguém. Mesmo se houvesse, o relacionamento não existia: tinha uma irmã mais velha, de um anterior relacionamento da mãe, com quem nunca teve contacto. A solidão sempre fez parte de António Maria. Por circunstâncias da vida, ou por opção, a solidão sempre fez parte da sua vida. Mesmo quando fala de antigos relacionamentos, o que fala é pouco. Apenas para dizer que sempre se sentiu muito independente. Sem amarras.

Ao longo dos anos, António Maria dedicou-se à venda ambulante. Peixe, frutas e, mais tarde, colchões ortopédicos, o seu último ramo de negócio. Apesar de este modo de vida ter feito parte do seu quotidiano, nunca apreciou o que fazia. “Não é que gostasse muito. Quero dizer, eu gostava de contactar com as pessoas – umas mais, outras menos –, mas não era uma coisa que eu… Fazia simplesmente porque tinha de ganhar alguma coisa”.

A vida começou a correr-lhe melhor. Comprou a casa em que vivia com os pais. Comprou carros e carrinhas para trabalhar. Endividou-se para fazer essas compras. Até que um episódio, por volta de 1999, lhe virou a vida do avesso. Atropelou alguém, que acabou por falecer. Sem culpa, o seu mundo, circunscrito aos concelhos de Odemira e Santiago do Cacém, começou a desmoronar-se. Sem possibilidade de trabalhar, com as dívidas a acumularem, e já depois de os pais falecerem, acabou por vender a casa onde vivia. Com o valor da venda, com o qual pretendia saldar as dívidas, acabou por ser burlado. Perdeu tudo. Não tinha casa, não tinha dinheiro. Apenas dívidas. E estava sozinho.

Depois de anos em que se foram sucedendo as perdas – dos pais, dos rendimentos, da casa, quando não encontrava trabalho –, em 2016, em Relíquias, também no concelho de Odemira, dormia numa casa que não era sua. “Eu estava a viver numa casa quase a cair. Era difícil viver lá, com quase nenhumas condições. Quando a coisa descambou, ainda tentei arranjar trabalho, mas todos diziam: ‘Ele nunca fez nada na vida, nunca trabalhou. O que é que ele sabe fazer? Nada!’. Até aos 22 anos andei com os animais, depois comecei a vender fruta. Como não tinha feito um outro trabalho, todos me diziam isso”.

Foram quatro meses nessa casa de Relíquias. Apesar da falta de condições, António Maria refere que não chovia no local onde dormia, uma espécie de alpendre, num “divãzinho”. A alimentação era feita na Cantina Social de São Luís. “Foram quatro meses muito duros”. Acabou por ser sinalizado pela Segurança Social e pelo Centro de Saúde de Odemira, que o encaminharam para a Cáritas Diocesana de Beja, onde havia vaga para ser acolhido, quase aos 60 anos. “Quando uma vida se desarruma, é o diabo para voltar aos eixos”.

 

 

 

Depois de anos em que se foram sucedendo as perdas – dos pais, dos rendimentos, da casa, quando não encontrava trabalho –, em 2016, em Relíquias, também no concelho de Odemira, estava a dormir numa casa que não era sua. “Eu estava a viver numa casa quase a cair. Era difícil viver lá, com quase nenhumas condições”.

Ter uma casa na cabeça

 

Ao longo de dois meses e meio, a cooperativa cultural Chão Nosso trabalhou com 10 pessoas em situação de sem-abrigo acompanhadas pela Cáritas Diocesana de Beja através do projeto “Estou tão perto que não me vês”. Esse trabalho, que resultou na instalação artística “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, contou com a mediação de Cristina Taquelim, na narração e escrita, Catarina Bico, na ilustração, e Daniel Antunes, na fotografia, através de três laboratórios distintos: “Insilenciáveis – Narrativas de Memória”, “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração” e “Click – Narrativas Visuais”, respetivamente.

“António Maria, o enigmático. Um homem de silêncios, que demora muito até se abrir. Um homem muito especial”. É assim que Cristina Taquelim, aquela que trabalhou mais de perto com António Maria neste projeto, o define. Por ser um dos temas que mais estavam presentes no pensamento e discurso de António Maria, foram trabalhando em conjunto “o que é isto de uma casa”. “O primeiro objeto que o António construiu, o primeiro livro, a primeira narrativa que construímos juntos foi o ‘Era uma vez um homem que tinha uma casa na cabeça’. E isto deu origem a muitas coisas: a uma reflexão sobre o que é isso de ter uma casa na cabeça, o que é a casa onde habitamos e o que é que podemos chamar casa. Mas isto muito pontuado por silêncio, ele é um homem muito silencioso. Até que, finalmente, abriu e explicou que aquilo que gostava mesmo era de trabalhos manuais”.

O trabalho foi feito de avanços e recuos, tentativas e erros. Frustrações e sucessos. Afinal de contas, algo que, igualmente, se pretendia que fosse trabalhado, sublinha. “Uma das experiências interessantes que tem que ver com o senhor António, mas também com o grupo no geral, é que não somos sempre bem-sucedidos, em cima de uma mesa com materiais plásticos à volta, como não o somos na vida, com os recursos que esta nos dispõe. Um projeto desta natureza trabalha competências para a vida, que estão na base de muitas das situações que nos conduzem para esta situação de exclusão, de abandono. O resistir à frustração, o perceber que não é capaz, o aprender a confiar em quem está a dar ajuda: isso também foi um processo engraçado com o senhor António (…). [Porque] há muita coisa do trabalho artístico que trabalha, de facto, as competências para a vida”.

António Maria foi-se transformando, de alguma forma, ao longo do tempo das oficinas criativas. Mas a solidão nunca deixou de o acompanhar. E o silêncio. Até porque o dilema da sua vida, esse, continua sempre presente: o de ter uma casa na cabeça, o de estar sozinho quando acompanhado, ou acompanhado quando sozinho.

 

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