Diário do Alentejo

parque mineiro

06 de janeiro 2024 - 08:00
Nova infraestrutura de Aljustrel já recebeu mais de 650 visitantes desde a sua abertura, há um mêsFoto | Ricardo Zambujo

As explosões abruptas da terra, as subidas e descidas dos malacates, as entradas e saídas dos vagões carregados de minério, a imagem de Santa Bárbara que protegia os mineiros, que cantavam para afugentar o medo. O Parque Mineiro de Aljustrel, que entrou em funcionamento há um mês, conta a história e o percurso da atividade mineira com vozes, rostos e uma descida à galeria dos Algares.

 

Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa

Foto | Ricardo Zambujo

 

O horizonte é fora do comum. A paisagem tem vindo a ser esculpida desde há mais de cinco mil anos, com picaretas, barrenas, explosivos, derrocadas, suor e lágrimas. Já se perdeu a conta ao número de vezes em que os malacates (palavra de origem espanhola referente ao elevador dos poços usado nas minas da Faixa Piritosa Ibérica, onde se encontra Aljustrel) desceram aos confins da terra carregados de homens. Alguns destes não voltaram a subir. Outros não viveram mais do que um par de anos após o último dia de trabalho, por conta da silicose, uma doença pulmonar causada pela inalação permanente de poeiras. Ao fundo, o castelo de Beja teima em aparecer entre a neblina que não se dissipa, apesar de a manhã já ir a meio. São 10:00 horas e o primeiro grupo do dia a visitar o Parque Mineiro de Aljustrel já se começa a aproximar do miradouro. Ao “Diário do Alentejo” juntam-se, principalmente, colaboradores do município e um ou outro visitante, uma vez que a visita da tarde já está completa.

A primeira paragem, ainda do lado de fora das instalações, serve de introdução ao projeto de musealização das atuais minas desativadas. “[Este projeto] tem a particularidade de fazer com que esta reabilitação ambiental e cultural, da responsabilidade da Empresa de Desenvolvimento Mineiro (EDM), aconteça ao mesmo tempo em que temos uma mina em funcionamento, ou seja, aqui temos áreas ativas e desativadas, o que é uma coisa rara”, começa por explicar Marcos Aguiar, técnico superior da Câmara Municipal de Aljustrel e guia responsável pela visita que se avizinha.

Daqui, e tendo o Chapéu de Ferro (uma rocha intensamente oxidada, com sinais de erosão ou decomposição, e que é, normalmente, a parte superior e exposta de um jazigo ou veio mineral) na retaguarda, a chaminé de Transtagana, os bairros mineiros e a lavaria industrial servem de boas-vindas. A visita prossegue no Centro Interpretativo da Faixa Piritosa Ibérica, situado no recente edifício da receção ao Parque Mineiro de Aljustrel. A sala, minimalista, pensada para num futuro servir também de “casa” a exposições fotográficas, instalações artísticas ou pequenas conferências, revela de forma linear o “ciclo do minério” e a história cronológica dos avanços e recuos das minas em Aljustrel.

“Sabe-se que as minas de Aljustrel eram uma das minas mais importantes do período da exploração da expansão ocidental do Império Romano, mas a exploração mineira é muito mais antiga do que o período romano. Aliás, o início da exploração mineira em Aljustrel está mais afastado dos romanos do que nós estamos deles”, refere.

Do período calcolítico, altura em que estão registados os primeiros trabalhos de metalurgia do cobre na vila mineira, passando pelas épocas romanas, medieval e moderna, Marcos Aguiar guia de forma minuciosa os olhos curiosos de quem desconhecia a ancestralidade da atividade.

“Este pequenino objeto é essencial para a compreensão da história de Aljustrel e da própria mineração no contexto português, europeu e até mundial. Ela é uma parte de um recipiente que era usado para colocar a pirite, [o mineral extraído das minas], para derretê-la e, a partir daí, extrair o cobre. Esta peça é o princípio de tudo, da mineração em Aljustrel, da presença romana, da razão para que os homens se tivessem fixado neste território e se mantivessem aqui até hoje, a fazer mais ou menos a mesma coisa que se fazia há milhares de anos”, confirma o responsável.

As explicações são interrompidas. A segunda sala a explorar pressupõe silêncio. É esperado que, no escuro e apenas com uma pequena lanterna, se interaja “com uma história que é contada pelo Hino dos Mineiros”. Nas paredes, frases soltas, versos pesados de uma letra que faz arrepiar mesmo quem desconhece o significado do que ouve. Santa Bárbara, padroeira de todos aqueles que trabalham com explosivos e fogo, acompanha-nos até à abertura dos panos negros, o que nos transporta novamente à claridade.

Para trás fica a atual sala de exposições temporárias. De momento, abriga a antestreia da “Exposição e montagem em postura de vida do estegossauro de Atouguia da Baleia (Miragaia Iongicollum)”, da responsabilidade do Laboratório de Energia e Geologia (LNEG), porém, no futuro, prevê-se que este seja um espaço de reflexão e mostra do estado das atuais minas de Aljustrel.

 

O fundo do poço

 

À boca do poço Vipasca começa aquele que é o momento mais esperado da visita. A descida ao piso -30 da galeria dos Algares causa um frio no estômago a todos aqueles cujo pensamento os recorda que, dentro de alguns minutos, estarão abaixo da superfície. O desconhecido assusta sempre, mesmo os mais corajosos. Por uma questão de segurança, a descida não se pode realizar pelo malacate, uma vez que “a estrutura feita em madeira está completamente arruinada”. Desta forma, ordeiramente, os 10 capacetes amarelos e brancos dirigem-se até ao elevador industrial.

“A maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de visitar uma mina, mesmo os aljustrelenses, e, por isso, isto é também uma oportunidade para se ter contacto com esta cultura e identidade mineiras. A própria experiência de descida, para nossa surpresa, é também muito interessante, porque, ao optar-se por um elevador que não é de cabos, como os que normalmente encontramos nos prédios, a descida não é suave. Este é um equipamento preparado para cargas maiores e, portanto, é um equipamento utilizado para fins industriais e que nos dá, de facto, uma sensação de descida”, antecipa Marcos Aguiar, como forma de preparar a turbulência que se avizinha.

O fundo da mina impressiona. A galeria, contrariamente ao que era esperado, não traz sentimentos claustrofóbicos. As paredes altas, sustidas a betão, aros metálicos e madeira, assim como a ventilação e iluminação do espaço, fazem esquecer os mais distraídos da profundidade em que se encontram. À saída do elevador, numa das máquinas de extração que ainda resta, forma-se uma melanterite que maravilha pela magnitude e cores azuladas que apresenta. A explicação é simples: pelas toneladas de minério que passaram pelo equipamento, a estrutura “está tão impregnada que a água continua a arrastar o minério que forma estas estalactites”.

Atrás de nós, entre uma “vagona” que em tempos transportou o minério para fora da mina, surge “Zé Mineiro”, figura simbólica, que entre “as boas-vindas” aos visitantes lhes conta as evoluções ao nível da segurança e do trabalho debaixo de terra, desde os mineiros romanos aos atuais.

A galeria, ligeiramente inclinada para a saída, percorre 500 metros até à luz do dia. Marcos Aguiar, também ele responsável pelo acompanhamento técnico desta recuperação mineira, explica, enquanto aponta para um e outro lado, que esta não foi uma galeria de extração, mas sim de acesso. “O que funcionava aqui dentro era o tal sistema ferroviário. O minério era trazido até à superfície, voltavam-no a descarregar ao nível da galeria em pequenas ‘vagonas’, percorrendo-a até ao fundo para uma espécie de moinho gigante, que triturava a pirite e a colocava em vagões maiores que a levavam até à estação do Carregueiro”, justifica.

A visita obriga a que os visitantes estejam em constante assimilação. De um lado, uma pequena e estreita galeria romana desvendada por uma derrocada, de outro, uma “janela geológica” que faz os olhos dos geólogos brilhar. Mais à frente, o stockwork, a zona mais explorada e onde os minerais aparecem em maior quantidade, e, novamente, a imagem de Santa Bárbara, presente em todas as minas.

Pontualmente, assim como na primeira sala de exposições, a tecnologia manifesta-se. Primeiro um filme com rostos e vozes de antigos mineiros e depois a simulação, com som e fumo, de uma explosão que ecoa pela galeria.

A visita aproxima-se do fim. As luzes apagam-se nos últimos 100 ou 200 metros. O objetivo é fazer com que se sinta a escuridão de outrora. Desta vez, o morcego residente na galeria não brindou os visitantes com a sua presença. O portão da saída traz novamente, e de forma brusca, a luz do dia. Dói olhar para ela nos primeiros minutos. O regresso à superfície, ainda que os visitantes possam continuar o passeio pelo passadiço que circunda o Chapéu de Ferro, marca o término desta experiência. Na pele fica o sabor agridoce de se conhecer de perto um passado ainda recente, marcado, maioritariamente, de dores, sofrimento e angústia de camaradas, pais, filhos e mulheres. A esperança é que as minas de Aljustrel se mantenham em funcionamento e na memória.

 

Centro Interpretativo da Ferrovia Mineira em andamento

 

A Câmara Municipal de Aljustrel já adjudicou o projeto para a criação do Centro Interpretativo da Ferrovia Mineira, estando o início da obras previsto para este mês de janeiro. Segundo Marcos Aguiar, técnico superior do município, este será “um subproduto do Parque Mineiro de Aljustrel”, uma vez que, na vila, “todo o movimento de materiais e a ligação ao Carregueiro e à linha do Alentejo era feito por sistemas ferroviários, assim como a deslocação no interior da mina”. “O turismo ligado à ferrovia atrai imenso hoje em dia. Há muitas, muitas pessoas interessadas neste tipo de tecnologia e que necessariamente não se interessa por minas, portanto podem muito bem vir a Aljustrel fazer o percurso que é preconizado neste projeto sem necessariamente visitar a mina, [ou seja] podemos fazer uma coisa alternativa à que temos feito”, refere.

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