Diário do Alentejo

Multiculturalidade

14 de dezembro 2023 - 14:15
Quase 50 por cento dos alunos em São Teotónio são filhos de estrangeirosFoto | Ricardo Zambujo

Os filhos de estrangeiros são, atualmente, quase metade do número total de alunos que frequentam os estabelecimentos de ensino de São Teotónio. Segundo a diretora do agrupamento, Inês Pinto, a freguesia está a receber alunos constantemente, em resultado dos reagrupamentos familiares da população migrante. A existência de alunos de outras nacionalidades não é, contudo, uma novidade dos anos mais recentes. O que mudou foi o seu perfil. Segundo dados dos Censos de 2021, São Teotónio era a segunda freguesia do concelho de Odemira com maior proporção de população residente de nacionalidade estrangeira.

 

Texto | Nélia Pedrosa Foto | Ricardo Zambujo 

 

Dada a proximidade do fim do primeiro período, a aula é de autoavaliação, mas mais para o final ainda há tempo para uns exercícios de improviso. Em grupos de cinco, a pedido do professor Bruno Pacheco, os alunos vão escolhendo os instrumentos musicais que mais lhes agradam – piano vertical, órgão, bateria ou caixa de ritmos. Testam sons, cadências, intensidades. Bruno Pacheco vai dando indicações ora em português, ora em inglês. “Começa primeiro o piano, a tocar uma ou duas notas, depois entra a bateria… ok, ok, slow down”. Para quem não fala nem uma língua, nem outra, uma das alunas de origem indiana, P., apressa-se a fazer a tradução. “Eu traduzo, eu traduzo, professor”, diz, levantando o braço efusivamente.

Dos 22 alunos que compõem esta turma do 5.º ano de escolaridade da Escola Básica 2,3 de São Teotónio, no concelho de Odemira, 12, ou seja, mais de metade, não são de nacionalidade portuguesa. “É um desafio grande”, admite, ao “Diário do Alentejo”, o professor de educação musical chegado há pouco mais de dois meses à escola. “Pelo que percebo eles vêm da Índia ou do Nepal sem um histórico muito definido e temos de ser nós a descobrir as aprendizagens [que fizeram]”, sublinha. Para além disso, “os hábitos de estar numa sala de aula, o cumprir regras, a assiduidade, também não parecem estar consolidados”. E “a falta de material é uma luta constante”. “O grande desafio é eles perceberem que estão num sistema diferente e que têm de se adaptar”, resume.

O “facto de a música ser a língua universal” acaba por facilitar, no entanto, o processo, considera Bruno Pacheco, que, ainda assim, optou por “eliminar um pouco a parte teórica para haver menos língua portuguesa”. “Quanto mais prática for, mais fácil é. Eles não têm que ler muito, nem escrever muito. A língua aqui não é um entrave tão grande como em matemática, ou português, ou ciências”.

Os dados mais recentes disponibilizados ao “Diário do Alentejo” pela Câmara de Odemira, referentes ao ano letivo transato – 2022/23 –, dão conta de que a freguesia de São Teotónio, a par de Vila Nova de Milfontes e de São Salvador/Santa Maria (na vila de Odemira), era uma das que apresentava o maior número de alunos estrangeiros matriculados. Ao nível do 1.º ciclo, em “contraciclo com o que acontece na maior parte do Alentejo”, incluindo a zona mais interior do concelho, “em que se verifica o encerramento de escolas”, a autarquia foi mesmo obrigada a reabrir, no início do ano letivo, novas salas de aula na freguesia, nomeadamente, na sede e nas localidades de Cavaleiro e Brejão.

De acordo com os Censos de 2021, São Teotónio, com 44,71 por cento, era a segunda freguesia, a seguir a Longueira/Almograve, com a maior proporção de população residente de nacionalidade estrangeira.

 

Filhos de estrangeiros são “quase 50 por cento”

 

 

Os filhos de estrangeiros representam, atualmente, segundo a diretora do Agrupamento de Escolas de São Teotónio, “quase 50 por cento” dos cerca de 700 alunos que frequentam as escolas da freguesia. “Estamos constantemente a receber alunos. Desde o início, 15 de setembro, já recebemos mais de 30”, diz Inês Pinto, justificando esse aumento, sobretudo, “com os reagrupamentos familiares” da população migrante. Não se trata, assim, “da vinda de novas famílias, mas de mães e filhos”, esclarece, acrescentando que também se verificam “situações de crianças e jovens que estão entregues a irmãos mais velhos ou a tios”, sendo enviados pelos pais “para terem melhores condições de vida, uma melhor educação”.

A existência de alunos de outras nacionalidades em São Teotónio é, no entanto, “uma realidade muito antiga” e, que, de certa forma, “tem sido uma aprendizagem”, frisa a responsável. “Enquanto noutras escolas de repente aparecem, nós fomos evoluindo aos bocadinhos, tem sido um processo gradual”.

Quando chegou à EB 2,3 de São Teotónio, em 2001, para lecionar a disciplina de ciências, os alunos estrangeiros “eram, sobretudo, alemães, de famílias [ditas] alternativas”. Depois, “vieram os alunos alemães considerados inconvenientes enviados pela Alemanha, e isso prolongou-se ainda por bastante tempo. Mais tarde vieram ucranianos, depois muitos búlgaros, sobretudo, para trabalhar na construção civil. E pouco a pouco começaram a aparecer tailandeses, nepaleses e bengaleses, para a agricultura, e indianos, para o comércio aqui da zona”, recorda.

 

Combater o insucesso e abandono escolar

 

Este “processo gradual”, registado ao longo, pelo menos, das duas últimas décadas, “deu tempo” ao agrupamento “para ir percebendo o que não estava a correr bem e o que era necessário refazer”. Com o aumento do número de alunos de outras nacionalidades, “como é óbvio”, a taxa de insucesso acabou por disparar, assim como o abandono escolar, sublinha Inês Pinto. Perante este cenário, e, mais especificamente, devido, então, “à comunidade búlgara”, o agrupamento começou a apostar, em finais dos anos 2000, no português língua não materna (PLNM) e, mais recentemente, desde 2016/17, na disciplina glossário, em que “os alunos têm o primeiro contacto com as várias disciplinas do currículo português e vão trabalhando os conteúdos ao seu ritmo”. Apostas que se revelaram acertadas. “As taxas de abandono escolar diminuíram drasticamente, estamos praticamente a zero em termos de abandono”, afirma a diretora, adiantado que, “em termos de sucesso”, apesar “de existir”, as estatísticas “acabam por ser muito ingratas”. “Chegamos a ter alunos a entrar no nosso sistema educativo a um mês do final das aulas, ou dois, ou só no terceiro período, e temos de os aceitar. Entrando no terceiro período, temos de lhes dar uma avaliação, e, é claro, que não vai ser brilhante. Portanto, quando vamos só para números ficamos muito mal posicionados, mas, em termos internos, digo que temos um sucesso muito grande”.

Apesar disso, sublinha que seria de extrema importância terem “uma noção do currículo efetivo destes alunos”, principalmente, em disciplinas como a matemática, “porque os que entram, por exemplo, no 5.º ano, teoricamente já têm de ter uma série de competências” que o agrupamento desconhece por completo. Este é, aliás, segundo diz, um dos principais desafios decorrentes desta pluralidade de nacionalidades, a que acrescem, “como é óbvio, as diferenças culturais”. “Apercebi-me no outro dia que, por exemplo, havia professores que ficavam muito chocados porque os alunos [de origem estrangeira] começavam a descalçar-se nas aulas, mas a verdade é que eles quando entram nas suas casas se descalçam. Outros têm tendência para se sentarem no chão e muitas vezes temos os miúdos a escorregarem [das cadeiras]. Isto é cultural”. Estando em Portugal, “como é óbvio, prevalecem os nossos costumes”, diz Inês Pinto, embora “todas as tradições sejam respeitadas”. E nesse sentido, revela, o agrupamento está atualmente a “tentar perceber as várias festividades” e a estabelecer “pontes” através de questões “transversais”, embora “muito diferentes”, “como a comida, a música, a dança ou o desporto”, para “tentarmos chegar uns aos outros”.

 

“Multiculturalidade é mais-valia”

 

Com o aumento da comunidade estrangeira em São Teotónio, a própria dinâmica entre os alunos tem vindo a mudar ao longo dos anos. Se no início sentiam necessidade de se integrarem, agora tendem a “formar grupos [por nacionalidades] e a haver uma maior separação entre portugueses e não portugueses”, o que é bem visível assim que se transpõem os portões da EB 2,3 e se caminha pelos espaços comuns da escola. “Como costumamos dizer, já não precisam de nós”, brinca a diretora.

Na sala de aula também se “nota uma certa separação”, acrescenta Bruno Pacheco, frisando que tenta “combater”, ao máximo, essa tendência na sua disciplina de educação musical, “misturando os alunos sempre que é necessário formar grupos de trabalho para que haja integração”. Uma tarefa nem sempre “fácil”, admite. No entanto, “também não existem muitos conflitos entre alunos portugueses e não portugueses”. Este acesso “a uma maior diversidade cultural”, em que, por exemplo, “os alunos indianos tocam músicas do Alentejo e os alentejanos ouvem música da Índia – ainda não a tocar, ainda não chegámos a essa fase” –, é precisamente, no seu entender, uma das maiores mais-valias desta multiculturalidade.

“Tento mostrar-lhes que há muita diversidade e a música é muito boa para isso. Pegar nas coisas tradicionais de cada país, instrumentos, géneros musicais, trajes, danças, para que abram um bocadinho os horizontes e para que se envolvam com a cultura uns dos outros”. Bruno Pacheco considera que ainda “é muito cedo” para avaliar os resultados deste tipo de trabalho, mas sendo “ainda novos o suficiente para estarem permeáveis a abrir os horizontes, ainda não tendo preconceitos muito enraizados, ainda vão a tempo de se tornarem mais tolerantes”. “A multiculturalidade é sempre uma mais-valia para qualquer escola. É um bocadinho abrir horizontes. Se for bem trabalhado é muito engraçado, é uma

aprendizagem enorme”, acrescenta Inês Pinto, que acredita que o número de alunos de origem estrangeira “continuará a aumentar”, mas “não por muito tempo”. “Diria que estamos a atingir o topo, porque começa a haver mais limitações, isto começa a estar superlotado e vão procurar outros locais para viver”.

 

“Grande desafio para o município”

 

Ainda de acordo com os dados avançados pela Câmara de Odemira, entre os anos letivos de 2021/22 e 2022/23 o número de alunos estrangeiros matriculados nas escolas do concelho aumentou 27,7 por cento, passando de 546 para 697. Estes números não incluem, contudo, o Agrupamento de Escolas de Saboia e o Colégio Nossa Senhora da Graça em Vila Nova de Milfontes. Por ciclo de ensino, as maiores subidas registaram-se no 2.º ciclo, com 68,2 por cento; no secundário, com 60,5 por cento; e no 3.º ciclo, com 46 por cento. O 1.º ciclo registou um aumento de 35,3 por cento e o pré-escolar foi o único em que se verificou um decréscimo: -20,3 por cento. Os alunos eram oriundos de 32 países, com destaque para o Nepal (170), Índia (166), Brasil (71) e Alemanha (55).

A vereadora com o pelouro da Educação sublinha que o aumento de crianças no concelho “representa um grande desafio para o município, na medida em que, apesar de consistente nos últimos anos, sofreu um acréscimo muito significativo em apenas alguns meses”, devido aos já mencionados reagrupamentos familiares. Neste contexto, “tanto o município de Odemira como o Agrupamento de Escolas de São Teotónio têm estado em processo de adaptação constante”, adianta Isabel Palma Raposo. “Esta subida mais acentuada do número de alunos obriga a uma adaptação muito rápida para acolher todos. No entanto, esta necessidade de preparar e disponibilizar mais salas de aula é, na verdade, o que se considera um bom desafio, na medida em que está em contraciclo com o que acontece na maior parte do Alentejo, incluindo a zona mais afastada do mar do concelho de Odemira, em que verifica o encerramento de escolas”.

A autarca frisa, ainda, que o crescimento da população “é sempre acompanhado de necessidades crescentes de infraestruturas e serviços, pelo que, sendo a habitação e a saúde direitos fundamentais de cada cidadão, também nestas áreas é preciso responder à população”. E acrescenta: “Esta resposta não deve ser apenas quantitativa através da previsão natural do reforço da disponibilização de habitação e de serviços de interesse geral, mas também qualitativa. Considerando que a maioria da população migrante é proveniente de países com estruturas e organizações distintas do nosso continente, é necessário um ajustamento dos serviços prestados, nomeadamente, no que diz respeito à facilitação do acesso ao número de utente por parte dos cidadãos migrantes, à adaptação da promoção de cuidados de saúde primários, acompanhamento médico de doenças crónicas, planeamento familiar e saúde pública”, conclui.

 

11 turmas de São Teotónio ainda não têm professor de inglês

 

Ao dia de hoje, sexta-feira, 15, data que marca o fim do primeiro período escolar, as 11 turmas do 3.º ciclo do Agrupamento de Escolas de São Teotónio, contabilizando 318 alunos, ainda não tinham professor de inglês. Segundo a diretora, seriam necessários três docentes para horários completos. “É o caso mais complicado”, assume Inês Pinto, revelando que já estudaram e propuseram “alternativas”, aguardando agora uma resposta por parte da tutela. “[A alternativa] é ir um bocadinho pelas aprendizagens que tivermos na pandemia, ou seja, através do sistema telescola. Orientarmos, termos uma planificação, e os alunos, mais uma vez, trabalharem autonomamente”. A responsável sublinha que “há muitas pessoas a associarem a falta de professores ao facto de São Teotónio ser muito longe e de as casas estarem mais caras”, contudo, no seu entender, este é um problema “a nível geral”, nomeadamente, do Sul do País. Para além dos três docentes de inglês, o agrupamento necessita “de dois psicólogos e de um professor de ensino especial”. A vereadora Isabel Palma Raposo, por sua vez, afirma que “este é um problema transversal a todo o País, pelo que o município de Odemira não é exceção”, e revela que a autarquia “fez um trabalho de levantamento de habitações disponíveis para professores em todo o concelho, que disponibilizou ao agrupamento e esteve sempre disponível para auxiliar os docentes na procura de casa. Contudo, não nos chegou qualquer pedido”.

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