Diário do Alentejo

Ternura e espiritualidade eternas

10 de novembro 2023 - 10:15

Texto | José d’Encarnação, Arqueólogo

 

Da graciosidade de um altar funerário romano guardado no Museu Regional de Beja/Museu Rainha D. Leonor (inventário n.º B-122) e da circunstância de, simultaneamente, nele se terem esculpido, em relevo, vasos sacrificiais se desprende intenso halo de ternura e espiritualidade eternas.

 

Terá sido o bejense João Tavares Lança que identificou esse monumento na soleira duma porta do paço episcopal que dá para a cerca, na cidade de Beja. Dele deu conhecimento a Borges de Figueiredo, estudioso que logo em 1887 publicou a inscrição nele patente na página 185 do I volume da sua “Revista Archeologica e Historica”, editada em Lisboa. No Inventário [dados] (p. 128, n.º 12), que Abel Viana transcreve, vem dito expressamente: “Era do Museu Cenáculo e estava na parede de um prédio da Rua do Esquível. Oferecido [ao Museu] pelo bispo D. António Xavier de Sousa Monteiro”. A divergência quanto ao local de achado não deve causar perplexidade: pode ter ocorrido em datas diferentes e as pedras, mesmo pesadas, nunca estão sempre no mesmo sítio…

Anote-se, aliás, que passou despercebido o facto de o letreiro já ter sido publicado por André de Resende (De Antiquitatibus Lusitaniae, 1593, fol. 203), e o próprio Hübner o publicou duas vezes (n.ºs 64 e 5188 do seu corpus), sem reparar na coincidência. Também figura desenhado, com o n.º 50, no álbum de Cenáculo.

Não se sabe, pois, ao certo, donde é que o monumento veio. Provavelmente achado no decorrer das obras que se iam realizando na cidade. A uma necrópole – quiçá pública – terá pertencido.

Trata-se de um altar esculpido em mármore de Trigaches, completo, de características tipo1ógicas inteiramente “romanas”, digamos assim, a isolar-se, nesse âmbito, do que vem sendo habitual na epigrafia funerária romana da cidade, onde os túmulos de cobertura em forma de barril estilizado se manifesta como sendo a mais corrente.

Tem capitel de frontão triangular e toros 1aterais em relevo. Capitel que é separado do fuste por moldura de modelo “clássico”!

A expressão “na soleira d’uma porta”, que Tavares Lança terá usado, tanto pode significar que “estava à porta” – o que seria normal no âmbito duma colecção – ou que “servia de soleira”. O facto de a face posterior se encontrar desgastada inclina a pensar que foi mesmo soleira, pois doutra forma se não compreenderia ter o desgaste atingido a decoração lateral.

 

O ritual da morte E vamos começar por aí, pois pode parecer estranha a tipologia do monumento: a miniatura de um altar. Nada de anormal, poderá dizer-se, se recordarmos que, nos nossos cemitérios, seguindo uma tradição cristã, os jazigos de família assumem, amiúde, a forma de pequeno templo. Compreende-se: gostar-se-ia, porventura, de erigir uma igreja – faz-se uma miniatura; agradar-nos-ia um altar verdadeiro onde pudessem realizar-se sacrifícios –, em alternativa, opta-se por uma miniatura.

Repare-se, contudo, nos pormenores: no capitel, ladeado de toros, o fóculo, cavidade onde se poderiam queimar incensos em honra do defunto. Certo é que tal gesto possivelmente nunca se concretizou, pois raramente se encontram aí vestígios de utilização; o que contava, pois, era a intenção, como que a garantir ao defunto “Nós estamos aí a recordar tua memória!”.

Mais interessante, sem dúvida, a decoração esculpida em relevo nas faces laterais: do lado esquerdo, gracioso jarro bojudo, de asa pequena (alguns autores identificaram-no como “urna”, no sentido de ser o vaso onde se guardavam as cinzas, mas não é); à direita, o que, à primeira vista, nos pareceria uma frigideira (!) – é uma pátera, com saliência central, o umbigo (umbo, em latim). Eram os objetos de que os encarregados de preparar o cadáver antes da inumação ou a cremação se serviam para o lavar e perfumar. Cá está de novo a intenção: “Amigo, é nossa intenção que teu corpo ou tuas cinzas estejam sempre perfumadas como no dia em que de nós te partiste!”.

 

E quem terá sido o defunto? Faleceu com 12 aninhos e partimos do princípio que foram os pais quem mandaram gravar o epitáfio em sua memória, desejando-lhe que a terra lhe seja teve (esse o sentido das siglas do final, em latim: S. T. T. L.) e que seu corpo e espírito fiquem sob a proteção dos deuses Manes (isso querem dizer as siglas iniciais D. M. S.).

Temos por norma procurar saber o estatuto social e, até, a origem do defunto através da análise do modo como vem identificado.

Diga-se, antes de mais, que, na verdade, se o monumento em si é esbelto e de mui cuidada feitura, o canteiro que estudou a disposição do letreiro dentro do quadrado para tal concebido não terá sido dos mais hábeis, porque, embora tenha querido dar um ar da sua graça ao gravar elegante (mas desnecessária) folha de hera no fim da linha 1 e haja posto pontuação nos seus devidos lugares, não respeitou a translineação correcta na palavra ANNORVM (cortou a sílaba) e deve ter decidido desenhar os caracteres à mão levantada sem regra nem esquadro. Aliás, deixou um tudo-nada mais de espaço entre o L e o A, na linha 2, o que provocou uma confusão tremenda: Resende leu HEL. AERIA e esse (ausente) ponto levou a que os responsáveis por dois dos catálogos que os especialistas utilizam como referência – a “Hispania Epigraphica” (no n.º 21 147) e a base de dados https:/db.edcs.eu/ (n.º 05500067) – fizessem por aí o corte do nome, dando, por conseguinte, uma “sequência” estranha: “Helaerianus”.

Do defunto há, de facto, apenas um nome: “Helaerianus”, Heleriano, cuja grafia mais corrente é com I – “Hilarianus”. Teremos, assim, a variante gráfica – devida, mui provavelmente, a má compreensão oral – de um nome latino conotado com a alegria (há, em português, o adjetivo hilariante). Será um escravo, como o professor Júlio Mangas propôs, só porque se identifica apenas com um nome? Porventura não. Trata-se de um nome frequente: o investigador Iiro Kajanto registara, em 1965, a ocorrência de 50 testemunhos do nome “Hilarianus” e, desses, apenas três identificavam escravos ou libertos.

Terá, pois, “Helaerianus” pertencido a uma família não muito letrada, que, neste singelo, mas elegante, altar funerário, quis manifestar a sua grande dor pela perda precoce do seu ente querido.

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