Texto José d’Encarnação, arqueólogo
Há, porventura, dois momentos da nossa vida, qualquer um deles repetido, em que nos apercebemos da importância do nome: aquele em que, perante a circunstância de irmos ter um filho, nos questionamos sobre que nome lhe vamos dar; a outra, muito mais frequente, quando a esse menino ainda pequeno perguntam “Como te chamas?”, “Como te chamas? Que idade tens?” – essas, as perguntas cujas respostas os pais se apressam a ensinar.
Nem sempre fácil a escolha do nome, tantos são os condicionalismos a que importa obedecer: a tradição familiar, o gosto dos padrinhos, o apreço dos pais por personagens célebres… Temos um protésico brasileiro chamado George Washington (assim mesmo!); a filha de amigos nossos, cativados pelo história da princesa Diana, chama-se Daiane; um dos meus alunos, cabo-verdiano, chama-se Karl Marx… E recordar-se-á a comédia de Óscar Wilde, A Importância de Chamar-se Ernesto (1895).
O nome é, de facto, a marca da nossa identidade – a nossa ou, dizendo melhor, a dos nossos pais. E se, à mesa, em Riachos, nos servirem o vinho do Zé da Leonor (o Zé e a Leonor foram os trisavôs do atual proprietário, Pedro Rebelo Lopes), sentimos no seu perfume, queira-se ou não, esse ligame de gerações patente no rótulo singelo.
Diz-me como te chamas e eu dir-te-ei quem és – na atualidade e no tempo dos romanos.
Escolhi, por consequência, para tema do nosso encontro de hoje, mais um epitáfio romano, justamente porque os nomes nele patentes nos vão permitir tirar conclusões acerca do estatuto dos indivíduos aí mencionados.
A PEDRA ESTAVA NA MURALHA
Trata-se de uma cupa, ou seja, um monumento em forma de barril, desta vez quase o retrato fiel dum barril mesmo! Essa parte assentava sobre a sepultura propriamente dita, que ficava enterrada, acolhendo um vaso de cerâmica com as cinzas do defunto.
Segundo informação veiculada por Abel Viana no catálogo do Museu Regional de Beja, que publicou no I volume d’O Arquivo de Beja (1944, p. 359), a pedra foi recolhida por Manuel Patrocínio “na parte desmoronada de um cubelo da muralha entre o Castelo e as Portas de Avis”. Oferecida ao museu, detém o n.º de inventário B-48.
De mármore de Trigaches, está mutilada na base e no topo esquerdo. Ostenta no dorso três pares de aros em relevo, a simular os aros que apertavam as aduelas. Mede 47 centímetros de altura, 71 de comprimento e 52 de espessura. O epitáfio encontra-se gravado num quadro de 25 x 18,5 centímetros, limitado lateralmente pelos aros centrais e, em cima e em baixo, por uma ranhura.
O texto está em latim. Desdobrando-se as siglas e as abreviaturas, chega-se a um epitáfio que pode traduzir-se assim: “Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Lúcio Apolónio Mólon, de quarenta anos. Afrosa colocou. Que a terra te seja leve”.
Pode causar estranheza o formulário. Trata-se, na verdade, de um formulário estereotipado. Aliás, quando vamos agora a um cemitério, as lápides das campas não obedecem também elas a frases mais ou menos feitas? Assim era igualmente no tempo dos romanos.
Consagrava-se o monumento e o defunto aos Manes, as divindades que lhe haviam transportado o espírito para o Além; e, por outro lado, essa consagração salvaguardava, de certo modo, o sepulcro, de actos de vandalismo, que não seriam, por isso, simples crimes perante a lei mas verdadeiros sacrilégios, ofensas às divindades. Identificava-se o defunto, mencionava-se a idade com que falecera, indicava-se de quem partira a iniciativa de mandar lavrar o escrito e terminava-se com o voto de que estivesse bem, esse o significado simbólico da frase “que a terra te seja leve”; aliás, ao lê-la, o próprio transeunte, mesmo sem o querer, acabava por isso desejar a quem ali fora sepultado.
A IDADE, OS NOMES
Estamos cientes de que – até há algum tempo – das pessoas nascidas na segunda metade do século XIX nem sempre se sabia a idade exacta. Por outro lado, nas nossas conversas, ao falarmos de alguém, não é raro dizermos: “Sim, é homem aí de 50, 55 anos, não mais”. Usamos um múltiplo de cinco, como se a vida fosse medida em lustros. Não o era a vida humana, mas dava a impressão de ser a vida das comunidades, porque se fazia o censo de cinco em cinco anos. Não é de admirar, pois, que esse hábito se encontre reflectido na idade mencionada para um defunto, uma idade arredondada.
E 40 acaba por ser quase um número mágico, como que a indicar – nessa altura – uma existência completa, perfeita. Não se falou muito agora em quarentena? Era, dantes, o número de dias (40) necessários para que uma contaminação não existisse. Não achou Ali Babá que era mesmo com 40 ladrões que tinha a quadrilha completa?...
Viveu, pois, Mólon em plenitude!
São estranhos à onomástica habitual dos habitantes de Pax Iulia todos os nomes patentes no epitáfio. Desde logo Afrosa, escrito à latina, corresponde ao nome grego Aphrosia, de que se encontra apenas outro testemunho, em Roma: Claudia Aphrosia foi mulher de Tiberius Claudius Epictetus, responsável pela manutenção dos vidros no palácio imperial do Palatino. Tem de relacionar-se este nome com o masculino Aphros, que identificou, também na Roma antiga, um liberto imperial. E “aphros”, em grego, indica pertença ao escol, à fina-flor da sociedade! Afrosa seria, pois, no entender dos seus senhores, digna de pertencer a essa fina-flor!
Nada se diz da relação de eventual parentesco entre o defunto e Afrosa. Terão sido, mui provavelmente, marido e mulher, não o referindo por serem libertos e o casamento entre libertos não ter validade legal; por isso, houve omissão.
Acontece, porém, que – e lá estamos nós a relacionar com a que atrás se dizia das influências – há notícia (e é o próprio Cícero quem no-lo diz) de que um dos seus mestres fora o professor (rector) Apollonius Molon que se estabelecera na ilha de Rodes! Que poderá então ter acontecido? A fama desse rector chegou a Pax Iulia, a uma das suas cultas famílias, que o resolveu dar a um dos seus libertos. Por outro lado, a eventual distinção de Afrosa era bem merecedora do nome tão requintado que se decidiram a dar-lhe!