O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), nos últimos oito anos, em conjunto com agricultores e produtores portugueses e parceiros espanhóis, tem desenvolvido um trabalho de reintrodução, proteção e conservação do lince-ibérico em solo nacional. O “Diário do Alentejo” acompanhou uma manhã de ações no terreno com a colocação de câmaras e a tentativa de localizar indivíduos na zona.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
A estrada árida e agreste, ainda mais ressequida nos últimos dias pelos calores intensos que se têm sentido no Alentejo, faz balançar a carrinha 4x4 do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).
As pedras que se soltam à passagem das rodas batem na parte de fora de metal e ouvem-se no seu interior. Os vidros seguem fechados numa tentativa de amenizar o vento que, contrariamente ao que tem sido habitual, faz abanar as ervas constantes ao longo do caminho.
Carlos Carrapato e Nuno Neves, biólogo e veterinário do ICNF, respetivamente, já não se incomodam com os altos e baixos do terreno. Estes são os caminhos que, diariamente, percorrem, sozinhos ou em equipa, para garantirem o contínuo equilíbrio das diferentes espécies que habitam o vasto perímetro do Parque Natural do Vale do Guadiana, nos concelhos de Mértola e Serpa.
Hoje a volta cinge-se à freguesia de São João dos Caldeireiros, no concelho de Mértola, onde “há poucos dias” morreu um lince atropelado numa das pontes.
“É uma coisa que vai ser cada vez mais difícil de evitar, com o aumento da população estas situações vão acontecer cada vez mais. Esta é uma ponte relativamente pequena, mas em Serpa houve bichos a morrer a menos de um quilómetro da ponte [do Guadiana], e a pergunta é: por que é que não passaram por baixo?”, começa por questionar Nuno Neves.
“Ninguém faz isso de propósito e quem o faz não tem maneira de fugir. O meu carro é um ligeiro, um gato adulto tem entre seis a 12 quilos, se eu lhe der uma pancada deixo lá metade do carro, portanto, não acredito que seja propositado. [O que acontece é que os linces] têm aquele comportamento em que se julgam o suprassumo e o rei do pedaço e então não fogem dos carros, é-lhes indiferente se o carro se está a aproximar ou não e em cima de uma curva é quase impossível de evitar”, acrescenta Carlos Carrapato.
Segundo o último Relatório Anual da População de Linces, redigido pelo ICNF, relativamente a 2022, a principal causa das suas mortes na região é o atropelamento (56 por cento), seguindo-se o afogamento em charcas (13 por cento).
A ideia “vendida” pelos vizinhos espanhóis, aquando da reintrodução do lince-ibérico em território português, em 2015, era que esta se tratava de uma espécie que vivia isolada e que era territorial, contudo, percebeu-se que “as coisas que eram verdade há 10 anos hoje em dia já não o são” e que “o lince é um gato grande”.
Assim, com o aumento da população e com o contínuo estudo e trabalho da espécie, chegou-se à conclusão que “são bichos extremamente sociais, que toleram as crias e fêmeas do ano anterior e que brincam”, ao mesmo tempo que “não têm barreiras”.
“Houve um gato que veio da zona de Madrid, chegou a Mourão, meteu-se a nado e saiu perto da Amieira [Portel]. Nós medimos em linha reta e dava perto de 900 metros e, a seguir, atravessou para o lado de cá e fez mais 200 metros de água. O gato nadou, no mínimo, um quilómetro. Agora, que barreiras físicas são estas?”, interroga o biólogo.
Foto | Campo Nuno Neves e Carlos Carrapato, veterinário e biólogo, fazem parte da equipa de campo do ICNF
“A VERDADE É QUE [AS ALDEIAS QUE TIVERAM ATAQUES] FORAM UMA OU DUAS, MAS QUEM CONTA UM CONTO ACRESCENTA-LHE SEMPRE UM PONTO”
O perfil do lince, típico de um grande predador, faz com que o mesmo não tenha receio de outros animais, inclusive do Homem, e que, em certas ocasiões, se aproxime das populações.
“Quando se equacionou a reintrodução desta espécie o que nos venderam foi que o lince era um super-predador especialista e, portanto, tudo o que pudesse ocorrer na área de ocupação da espécie não iria trazer grande mal ao mundo, [uma vez que] iriam apenas incidir sobre os coelhos. [Contudo] o que nunca se equacionou foi que as pessoas tivessem galinhas em regime extensivo”, revela Carlos Carrapato.
Embora seja comum ouvir-se falar em “ataques de linces” a galinheiros nas aldeias, os técnicos do ICNF confirmam apenas “três situações”, atribuindo, com provas físicas que o corroboram, a autoria dos restantes a outros animais, como raposas.
“O certo é que nós em cada ataque que acontece ou que as pessoas relatam vamos lá e tentamos perceber os indícios todos. Vemos os animais, as dentadas, fazemos zaragatoas para confirmar as condições genéticas, deixamos câmaras para ver se existe um retorno nos três ou quatro dias seguintes e, no fim desta avaliação, conseguimos dizer com alguma certeza se foi um lince ou não. A maioria dos ataques que temos tido, tirando estas três situações, não foi de linces, mas correu à boca cheia que o coitado esteve lá”, prossegue.
Porém, para o veterinário, as situações confirmadas aos galinheiros têm uma explicação lógica.
“Se nós tivermos um gato doméstico em casa e lhe dermos um papel amassado ele não lhe liga, mas se o jogarmos contra a parede ele joga-se atrás sem nunca ter visto o papel. O estímulo da corrida faz o gato reagir e o que nós achamos é que as presas [do lince] até à data funcionam da mesma maneira – o coelho, a galinha e os pavões –, através da corrida, estimulam-no. Primeiro eles vão atrás da brincadeira e depois torna-se um hábito”, explica.
Da experiência que têm, dizem ao “Diário do Alentejo” que as soluções para “minimizar os prejuízos e as fontes de conflito” são simples, mas que dependem de um grande trabalho de equipa. “O que se pede às pessoas é que relatem logo para que confirmemos e comecemos a atuar desde o início para que o problema seja resolvido para ontem”, reforça Nuno Neves.
Assim, adianta que o reforço ou a construção de novos galinheiros são o principal método de prevenção, uma vez que faz com que “o lince volte hoje e não consiga, volte amanhã e também não consiga e assim, às tantas, já não queira ir”.
Foto | Coelho-bravo Particularidade dos terrenos obrigou à construção de maroiços em altitude
“É MAIS FÁCIL METER GATOS ONDE HÁ COELHOS DO QUE METER COELHOS ONDE HÁ GATOS”
Num dos troços de cruzamento, “onde existe a passagem e a confluência de diferentes linces”, Carlos Carrapato monta mais uma câmara. O intuito é começar a contabilizar o número de novas crias e, assim, perceber se este ano houve um decréscimo ou não de nascimentos e, consequentemente, de população.
“O meu colega Pedro [Sarmento] mete as câmaras numa determinada posição para os apanhar de plano e contar-lhe as pintas e saber quem é quem. Eu, por exemplo, gosto de os apanhar mais alto para conseguir perceber se há mais bichos”, começa por explicar o biólogo enquanto prende a câmara estrategicamente na vedação.
E acrescenta: “Depois ele tem uma grelha com [os registos de] perto de 200 câmaras, cada uma com um número específico e com um ponto de GPS, e com as imagens que recebemos conseguimos relacionar os linces que aqui vivem”.
Segundo os técnicos, o Parque Natural do Vale do Guadiana tem sido um “pequeno oásis” para os cerca de 300 linces conhecidos, porém, acreditam que este número é superior, uma vez que “a grande maioria dos indivíduos não está identificada”.
A reintrodução da espécie, em conjunto com as comunidades espanholas e com os proprietários dos terrenos, tem sido um sucesso. O trabalho em equipa para “fomentar o habitat, a comida, a água e o abrigo” tem permitido o contínuo crescimento da população e da sua zona de ocupação.
“Isto são maroiços[tocas]. O coelho aqui é um coelho de superfície, [ou seja] isto é um terreno talisca com um solo esquelético com dois ou três centímetros de escalada arável e os coelhos bem podem tentar fazer buracos que não conseguem e ‘partem as unhas’. Então uma das medidas de gestão que equacionámos foi em vez de terem as tocas em profundidade, passarem a ter em altitude. São medidas de gestão direcionadas para a espécie”, diz Carlos Carrapato enquanto aponta pela janela.
“Estes maroiços daqui fomos nós, ICNF, que os executámos, mas aqueles ali de cima já foram feitos pelo proprietário. Ao fim ao cabo o que se fez foi criar ‘hotéis’ para os coelhos e agora esta é uma zona com uma alta densidade de coelhos e os gatos aproveitam. Como dizem os espanhóis, é mais fácil meter gatos onde há coelhos, do que meter coelhos onde há gatos, porque o coelho é mais difícil de trabalhar”, completa.
Depois de uma manhã no terreno, sem qualquer avistamento, é no Observatório do Lince-Ibérico, num dos pontos mais altos da aldeia de São João dos Caldeireiros, que Carlos Carrapato e Nuno Neves mostram um dos equipamentos localizadores que, em breve, será substituído por outro de melhor qualidade.
“Este ‘pim’ quer dizer que está a detetar o sinal. Esta é uma antena omnidirecional e estas são as antenas H’s direcionais. Primeiro com esta [antena omnidirecional] detetamos a presença dos animais, depois retiramo-la e colocamos esta [antena direcional] e vamos na direção do azimute. Vamos imaginar que ela apita na direção daquela estrada, eu desloco-me para ali e tiro um segundo ‘rom’, quando ele assimila quer dizer que aquela será mais ou menos a direção em que o animal está”, explica o biólogo.
No entanto, segundo os técnicos, o equipamento atual tem uma falha grave que, muitas das vezes, faz com que andem “uma manhã inteira atrás de um animal” e não o consigam encontrar, isto é, em determinadas ondulações do terreno o sinal de GPS perde-se ou, simplesmente, não se liga à antena, dificultando a atividade de quem está em campo.
“Agora vamos começar a utilizar uma coisa que se chama LoRa, [ou seja] a rede utilizada nos equipamentos dos camiões de mercadorias. Enquanto as nossas redes de telemóvel tem projeções na ordem dos 45.º graus, as redes LoRa têm projeções em semi-lua, portanto, apanham tudo o que estiver dentro da meia-lua, esteja em buraco ou fora de buraco. E apanham dados até dois metros de profundidade enterrados”, esclarece.
Uma das funcionalidades que, de momento, está a colocar o aparelho em vantagem no terreno em comparação com os outros utilizados é o facto de permitir programar alarmes como, por exemplo, quando um lince está a menos de dois metros de uma estrada e sem se mexer por 12 horas. “Portanto, podemos ter no telemóvel do veterinário um alerta e este chegar ao gato ainda vivo”, recorda.
Ao longo dos últimos anos, o trabalho de Carlos Carrapato, Nuno Nunes e da restante equipa tem sido proporcionar as melhores condições a esta espécie que, aquando da libertação do primeiro casal de linces na natureza (2015), estava com zero animais no território. Embora com anos “bons” e “menos bons” em termos de nascimentos, o balanço geral do projeto é positivo e, para já, “um sucesso”.
Foto | Câmaras Registos permitem identificar e contabilizar a população de linces existentes na zona
DADOS DO RELATÓRIO ANUALDA POPULAÇÃO DE LINCES 2022
Os últimos dados disponibilizados pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), relativos ao ano transato, revelam que a população de linces nas três zonas de influência (Serpa, Mértola/Castro Verde, Alcoutim) tem vindo a aumentar. Em 2022, nasceram 87 crias, o que corresponde a um número médio de 2,8 crias por fêmea reprodutora (31), que, juntando ao número de linces com idade superior a um ano (192), aponta para a presença de “262 a 298” indivíduos da espécie.
Face a estes resultados, e segundo o Relatório Anual da População de Linces 2022, “é expectável que a população se mantenha em crescimento, não só demográfico, mas também relativamente à área ocupada, que tem vindo a aumentar progressivamente desde 2015, tendo atingido, em 2022, os 635 quilómetros quadrados”.
Foto | Linces Exempo de um registo vídeo