Diário do Alentejo

Mariana

28 de julho 2023 - 11:00
Câmara promove passeio pelos lugares de Beja que evocam ainda a memória da freira falecida há 300 anos
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Um passeio pelos locais emblemáticos de Beja ligados à freira Mariana Alcoforado, filha de “uma das famílias mais aristocratas e poderosas” da cidade e que se tornou célebre pelas cartas de amor Lettres Portugaises, que lhe são atribuídas, é uma das propostas da iniciativa “Visitas Guiadas de Verão”, promovida pela câmara municipal nos meses de julho e agosto. Hoje, 28 de julho, assinalam-se os 300 anos da sua morte.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

“Com muitos trabalhos e canseiras arranjei maneira de recuperar uma cópia fiel da tradução das cinco Cartas Portuguesas, escritas a um fidalgo de estirpe que serviu em Portugal. Vendo que todos aqueles que sabem o que são sentimentos as louvavam e procuravam com tanto empenho, acreditei que lhes daria um grande prazer imprimindo-as. Desconheço o nome daquele a quem foram escritas, nem o de quem as traduziu, mas parece-me que, ao trazê-las a público, não devo incorrer no seu desagrado. E, enfim, seria difícil evitar que não viessem à luz com erros de impressão que as desfigurassem”.*

 

É com a leitura do prólogo do editor da primeira edição das Lettres Portugaises Traduites en François (Cartas Portuguesas), publicadas em Paris, no ano de 1669, por Claude Barbin, e cuja autoria é atribuída, ainda que não de forma consensual, a Mariana Alcoforado, que se dá início à visita pelos locais de Beja que evocam ainda a memória da freira nascida em 1640 e das cinco cartas de amor que teriam como destinatário um oficial francês ao serviço em Portugal durante as chamadas Guerras da Restauração.

 

O primeiro ponto deste passeio quinzenal intitulado “Beja, cidade de Mariana Alcoforado”, realizado no âmbito das “Visitas Guiadas de Verão”, promovidas pela câmara municipal durante os meses de julho e agosto, é a entrada nascente do Museu Rainha Dona Leonor, antigo Convento de Nossa Senhora da Conceição, fundado por D. Brites, ou Beatriz, para onde Mariana entrou como noviça “com quase 11 anos de idade”, e onde veio a falecer aos 83, a 28 de julho de 1723, faz hoje 300 anos.

 

André Tomé, técnico de Turismo da autarquia que acompanhou o “Diário do Alentejo” neste passeio, e que colaborou na elaboração do programa das “Visitas Guiadas de Verão”, sublinha que o museu regional “é o local de Beja onde ainda se preserva melhor a memória de Mariana, apesar de o antigo convento não ter já as características que teria no século XVII”, quando foi habitado pela freira, “em ambiente de clausura”.

 

Segundo o também arqueólogo e investigador, poder-se-á dizer, “sem grandes exageros, que se preserva 20 por cento daquilo que era o convento no século XVII e até ao desmantelamento no século XIX, com a extinção das ordens religiosas em 1834”.

 

“Este é o ponto considerado mais interessante, digamos assim. É o espaço onde ela mais tempo viveu e onde se terá passado a história que mais traz à nossa memória a figura de Mariana Alcoforado, a história de amor com o oficial francês [Nöel Bouton de Chamilly] que esteve cá em terras portuguesas”, acrescenta Marcelo Leitão, assistente técnico no posto de Turismo do município e também ele responsável pelo acompanhamento das “Visitas Guiadas de Verão”. A fachada nascente do museu, que dá entrada para a igreja, e que seria, por isso, “uma das entradas principais para as funções que o convento” desempenhava então, será, provavelmente, a fachada “mais bem conservada desde o seu tempo original”, reforça.

 

 

No Roteiro Literário Mariana Alcoforado, da autoria de Marta Páscoa, com fotografia de António Cunha, apresentado no passado mês de junho, a historiadora e arquivista refere que “o edifício que hoje vemos é substancialmente diferente daquele que ali existiu no século XVII”.

 

O “seu pequeno volume e a envolvência de ruas largas é a antítese do que foi: um edifício construído por múltiplos pequenos edifícios, que ocupava todo um quarteirão, sendo estreitas todas as ruas em seu redor”, afirma.

 

A autora lembra que os infantes e primeiros duques de Beja, D. Fernando e D. Beatriz, fundaram o convento em 1459 “a partir de um recolhimento de senhoras que existia na rua do Touro” e que, “tal como outros nobres da época, pretendiam criar casas monásticas onde se observassem os autênticos valores da piedade cristã. Por isso queriam que o convento estivesse debaixo da Regra dos Padres da Real Observância, o que significava não possuir bens de raiz e viver apenas de esmolas. No entanto, as freiras, vindas das elites, nem sempre estariam dispostas a cumprir as exigências que a Regra implicava”.

 

O objetivo dos infantes, “e da infanta em particular, na sua viuvez, foi criar uma instituição religiosa que lhe(s) servisse como local de enterramento – como efetivamente aconteceu – e que proporcionasse a salvação das suas almas, através das orações e da celebração de missas”.

 

Por outro lado, prossegue, a “celebração de missas por alma de alguém era um ‘serviço’ que os conventos podiam prestar em troca de um valor remuneratório. Abria-se, assim, a oportunidade de o convento receber rendas e propriedades, como pagamento pelas missas celebradas a título perpétuo.

 

Só uma instituição solidamente implantada e financeiramente independente podia rezar missas planeadas ad eternum, como os fundadores desejavam, por isso, o crescimento e florescimento do convento eram objetivos naturalmente a alcançar”.

 

Aquilo que inicialmente “eram umas ‘casas’, na rua do Touro, que nessa altura se prolongava até à porta de Mértola”, foi, assim, escreve Marta Páscoa, “crescendo através da compra ou doação das casas contíguas (…). A junção de casas e casinhas daria origem a um espaço labiríntico e pouco planificado inicialmente, que iria dando lugar a outros mais estruturados, construídos posteriormente”.

 

D. Fernando e D. Beatriz “mantinham, com grande proximidade, o seu próprio paço, com entrada privativa para o convento, através de um passadiço que se elevava sobre a rua com o seu nome – rua do Infante, mais tarde renomeada rua 5 de Outubro e, depois, rua dos Infantes”.

 

“Estas ruas abertas que hoje encontramos são já uma criação do final do século XIX e do século XX, porque Beja era uma cidade bastante compacta, com ruas bastante estreitas, com vários becos”, reforça André Tomé, adiantando que, embora o convento vá sendo construído, e crescendo, com recurso à “aquisição de várias casas”, o “espaço é sempre muito exíguo”, um aspeto “importante para a história de Mariana”, porque “permite questionar se teria sido assim tão relaxado o acesso ao convento por Nöel Bouton, quando o espaço seria de facto exíguo e muito habitado”.

 

No entanto, diz, “não era assim tão invulgar, e isto de alguma maneira pode até dar alguma cobertura a esta história, acontecerem coisas mais reprováveis nestes conventos”.

 

Há relatos em França, por exemplo, “de punições graves a militares e a pessoas que entraram em conventos. Em Portugal também parece ter havido, e o historiador José António Falcão fala disso, portanto, é natural também que existisse essa possibilidade de haver estas incursões quase como um desafio e que, de facto, a Mariana se tenha apaixonado”, considera.

 

A escassez de espaço no convento da Conceição leva mesmo a que a determinada altura, segundo o que está documentado nos arquivos, “as famílias poderosas comecem a construir pequenas casas dentro do convento, como é caso dos Alcoforado, que constroem uma casa para Mariana” e que albergará, igualmente, as suas irmãs que vão ingressando na comunidade religiosa.

 

Naquela época o edifício seria habitado por “dezenas e dezenas de freiras” – a que se juntavam “as suas criadas e escravas” –, freiras essas que “tinham uma importância muito grande na cidade”, frisa o arqueólogo.

 

E embora as ordens femininas “tivessem de estar subjugadas, de certa forma, a uma ordem masculina, no caso, os franciscanos, que tinham um conventículo, apelidado de Santo António, onde agora está o Pax Julia [Teatro Municipal]”, a verdade “é que as freiras tinham uma independência muito grande até do ponto de vista político”.

 

Pelos registos existentes, esclarece André Tomé, percebe-se “que havia várias queixas de que as freiras estavam a devassar aquilo que era o zelo religioso, que havia vários problemas, e muitas vezes as freiras em vez de irem ao bispado ou ao arcebispo iam diretamente ao Vaticano, diretamente a Roma”.

 

O Convento de Nossa Senhora da Conceição, acrescenta, “era, de facto, o convento mais importante de Beja”, tendo sido, desde a sua fundação, “o que mais dinheiro recebeu das famílias que entregavam as suas filhas e que tinham que dar um dote”, mas, “mesmo assim, menor [do que o de casamento]”.

 

“Casar uma primeira filha já era bastante oneroso, casar uma segunda ainda pior. E a Mariana é segunda filha, portanto, como acontecia às segundas filhas de famílias importantes, ia para o convento. Provavelmente contrariada, não sabemos. Ela entra neste convento muito cedo e é provável que já tivesse tido aulas e alguma educação até antes de entrar”, adianta, frisando que “não é muito fácil” reconstruir a vida de Mariana, “porque viveu 72 anos” dentro do convento, não havendo, assim, “grande informação”.

 

Em 1628, 12 anos antes de Mariana ter nascido, segundo avança Marta Páscoa no Roteiro Literário, “numa muito bem documentada tentativa de compra do paço” dos duques de Beja, devido “à falta de espaço”, que ocasionava “problemas ao nível da higiene, salubridade e privacidade, para além do cumprimento dos deveres religiosos”, as freiras “da Conceição elencam os motivos que as levam a querer muito fazer essa compra”: “E cresceu tanto esta comunidade que tem hoje em si mais de cento e cinquenta religiosas de véu preto, além de noviças e servidoras que são mais de duzentas, que todas vivem em esta estreiteza de vinte varas de largura todo o convento sem terem um miradouro nem sítio em que uma árvore verde se possa ter e no dormitório que tem há só leitos para menos de cinquenta religiosas e as mais vivem todas juntas pelos cantos, muito contra a religião e decência (…) comummente morrem de muitas doenças perigosas e contagiosas, por razão das quais sempre vivem em perigo de vida por razão da muita multidão de pessoas”.

 

O paço dos infantes viria a ser adquirido pelo convento apenas em 1703.

 

Multimédia0Foto | Ricardo Zambujo - Museu Rainha Dona Leonor, antigo Convento de Nossa Senhora da Conceição

 

“HAVERIA POÇOS E CISTERNAS POR TODA A CIDADE”  

A visita pelos locais emblemáticos de Beja ligados à freira prossegue descendo a rua do Ulmo, que ainda mantém a designação “dos tempos de Mariana Alcoforado”, até ao largo com o mesmo nome onde, situada na fachada lateral de um edifício, se preserva “uma janela de adufas de madeira, exemplar único dos muitos que existiam na cidade, réplica de uma estrutura original que alguns autores datam do século XVIII”.

 

Esta janela de rótulas, como é designada, permitia, devido ao “emadeirado em grelha”, que “os residentes pudessem ver o que se passava a partir do interior, sem que quem estivesse no exterior pudesse perceber o que se passava” dentro de casa, explica André Tomé, reforçando que “é um exemplar magnífico”.

 

“Ela é, provavelmente, do século XVIII, mas permite perceber um pouco o ambiente arquitetónico do século XVII, da época de Mariana, ou seja, remete para uma tradição mais antiga de janelas rótulas que já seria habitual no século XVII”, diz.

 

De acordo com o arqueólogo, “todo este casario conta uma história da Beja destes séculos, importantíssimos”, mas da qual se sabe “muito pouco”. Primeiro, “porque temos poucos historiadores a irem para os arquivos, e, depois, porque quando há intervenções nestas casas esconde-se, não se diz nada a ninguém”, justifica.

 

Outro dos pontos de interesse da travessa do Ulmo é o facto de ter albergado um poço, “um elemento importante das cidades antigas”, e que, provavelmente, “seria utilizado a espaços pelo convento”, que teria “uma cisterna e também um poço próprios”.

 

“Haveria poços e cisternas por toda a cidade. Se se pensar que Beja foi uma cidade densamente habitada, já em época romana, e com uma importância que todos hoje reconhecemos, teria cá a viver milhares de pessoas. E não tendo um aqueduto, como é que havia água? O que a arqueologia tem mostrado é que, de facto, a cidade tem aquíferos subterrâneos. Muitos, muitos já não terá, fruto desta agricultura intensiva e também destas secas prolongadas, mas há muitos poços na cidade, e muitas cisternas para armazenar água. Eu diria que tudo o que é casa quase parece ter um poço, portanto, haveria de facto mesmo muita água”, salienta.

 

Multimédia1Foto | Ricardo Zambujo - Janela de Rótulas da travessa do Ulmo

 

MARIANA TERÁ NASCIDO NA RUA DA CASA PIA

A rua da Casa Pia, não muito distante da travessa do Ulmo, é o terceiro ponto do percurso guiado por André Tomé e Marcelo Leitão.

 

É lá que terá nascido Mariana, em 1640. Marta Páscoa menciona, no Roteiro Literário, que nesse mesmo ano o pai da freira, Francisco da Costa Alcoforado, “homem da governança da cidade que desempenhou aí vários cargos entre os anos 30 e 60 do século XVII”, é “dado como morador na rua de Manuel Sácoto, mais tarde conhecida como a rua da Cisterna” e alterada para a denominação atual aquando do estabelecimento da Casa Pia.

 

“A teoria que até há bem pouco tempo era mais aceite era a de que Mariana teria nascido na casa dos Alcoforado, em frente ao Pax Julia, na rua do Touro. É o que os autores mais antigos referem. Entretanto, a historiadora Marta Páscoa encontrou um registo de impostos do pai de Mariana que refere a propriedade de uma casa [nesta rua] precisamente em 1640, quando ela terá nascido”, frisa André Tomé, reforçando que tal não passa de “uma hipótese”.

 

Mas havendo “essa propriedade” de uma casa naquela rua, é possível que possa ser o n.º 15, dado que se sabe que “tinha um proprietário, no início do século XVII, Simão Freire, também ele um senhor de renome, e que depois muda de dono e pode, eventualmente, ter sido adquirida pelos Alcoforado, mas não se pode afirmar com toda a certeza”.

 

A casa da rua do Touro onde habitaram os Alcoforado, salienta o arqueólogo, “não é referida” no “livro de fintas” (impostos) mencionado por Marta Páscoa. Há quem defenda, ainda, que a freira “poderá ter nascido na praça da República, onde a família Alcoforado terá tido uma casa e uma loja, mas a verdade é que essa casa só é referida mais à frente na documentação”, diz André Tomé.

 

Já Marcelo Leitão realça que, segundo os documentos consultados pela autora do Roteiro Literário, Mariana “foi batizada na igreja de Santa Maria” a 22 de abril de 1640, na paróquia de residência, e disso não restam dúvidas.

 

Caso tivesse nascido na rua do Touro, na denominada casa dos Alcoforado, “o que faria sentido é que tivesse sido batizada na igreja daquela paróquia, a igreja de São João Batista”, que existia no atual largo de São João, onde se ergue “a escultura vermelha de Noémia Cruz”.

 

Mais tarde a família Alcoforado “terá ido habitar a casa da rua do Touro, habitualmente dada como o local de nascimento de Mariana, e só a partir dessa data começam a aparecer registos da família na freguesia correspondente, São João Batista”, escreve Marta Páscoa. De acordo com a arquivista, Miguel da Cunha Alcoforado, um dos irmãos mais novos de Mariana, “é batizado a 6 de outubro de 1649, já em São João Batista”.

                   

Multimédia2Foto | Ricardo Zambujo - O n.º 15 da rua da Casa Pia

 

A IMPORTÂNCIA DA IGREJA DE SANTA MARIA

Deixando a rua da Casa Pia, seguimos em direção, precisamente, à igreja onde Mariana foi batizada e em cujas traseiras existiu “uma entrada para a capelinha de Nossa Senhora da Luz, que dava depois o nome à rua – rua da Capelinha, atualmente rua Dr. Manuel de Arriaga”, diz Marcelo Leitão, adiantando que o roteiro serve também de pretexto para dar a conhecer os nomes pelos quais as ruas eram conhecidas “no tempo de Mariana”, e que constam de um mapa concebido, igualmente, pela historiadora Marta Páscoa.

 

Para além de estar associada à freira, a igreja de Santa Maria foi, “durante muitos séculos, a igreja mais importante de Beja”, sublinha, por sua vez, André Tomé, acrescentando que o templo “já teria [no século XVII], mais ou menos, a configuração atual”.

 

“Temos aqui duas torres adossadas – é uma igreja também interessante por ter estes dois elementos. Terá sido, possivelmente, o local da grande mesquita de Beja em época islâmica, não temos provas definitivas dessa circunstância, mas é provável que o seja”. As duas torres tinham duas funções diferentes, explica, “uma de torre sineira da igreja e a outra, de certa maneira, a função municipal”.

 

“A verdade é que temos nesta torre estes elementos, que são já de finais do século XVII, em que é colocado não só um novo relógio, mas também uma lápide – uma inscrição que é feita para este propósito – que comemora o estatuto de Beja em época romana como colónia romana. Estamos numa época em que também isso era disputado, sobretudo, entre nós e os espanhóis. Alguns estudiosos portugueses defendiam que Beja tinha sido, de facto, Pax Julia na época romana, e os espanhóis defendiam que teria sido Badajoz. Depois veio a comprovar-se que, de facto, foi Beja. E temos depois uma cabeça de touro romana que também ali foi colocada, e que não é uma réplica, é uma cabeça originária. Provavelmente, encabeçaria um friso, tal como as que estão no átrio do museu regional. Estamos no século XVII [no tempo de Mariana], mas não deixamos de estar, também, na época romana, assim como no século XV, quando os infantes instalam aqui o convento e o paço. Todo esse tempo comunica sempre um com o outro”.

 

De acordo com o arqueólogo, “Beja tem esta espécie de alma histórica, mas que é uma alma atemporal, de vários tempos, e é isto que também temos de valorizar”.

 

Multimédia3Foto | Ricardo Zambujo - Igreja de Santa Maria

 

CASA DA RUA DO TOURO ERA “UM SOLAR  IMENSO”

Subindo a rua que vai dar ao largo da Conceição, antiga rua da Torrinha, vamos encontrar, no cruzamento da rua Conde da Boavista com a rua do Touro, aquela que é conhecida como a residência da família Alcoforado. Uma “casa importante”, uma vez que “se torna o grande solar da família”. Segundo diz André Tomé, o edifício, muito provavelmente, “avançaria mais para a rua e abarcaria também a zona da travessa do Cepo”, sendo, assim, “um solar imenso”.

 

Não se sabe, contudo, se Mariana terá habitado esta casa antes de entrar para o convento situado no outro lado da rua, “a cem passos”, como “alguém” terá calculado, segundo é referido no Roteiro Literário de Marta Páscoa.

 

“Essa é uma dúvida, porque não sabemos exatamente quando é que este solar é adquirido. É possível que tenha vivido ainda aqui alguns anos, no fim dessa infância antes de entrar aos 11 anos no convento”, refere o arqueólogo. Posteriormente, adianta, “estas heranças dos Alcoforados vão sendo desbaratadas, como acontece a muitas famílias com estes importantes morgadios, e no século XIX, já na segunda metade, o edifício é vendido a um conjunto de bejenses que queriam criar uma sociedade”.

 

Surge, assim, o Clube Bejense, “que se torna um clube importantíssimo na sociedade bejense da época e do século XX, dos mais endinheirados”, sendo mesmo apelidado de “clube dos ricos”.

 

Multimédia4Foto | Ricardo Zambujo - Residência da família Alcoforado

 

PORTARIA “ERA UM DOS LOCAIS MAIS IMPORTANTES DO CONVENTO”

A fachada poente do museu regional, na atual rua Conde da Boavista, é outra das paragens obrigatórias neste roteiro pelo universo de Mariana Alcoforado. Era por aí que se fazia a entrada na “casa monástica”, como escreve Marta Páscoa.

 

De acordo com a historiadora, a portaria “era um dos locais mais importantes do convento”. Dentro “deste espaço estavam as ‘grades’ onde as enclausuradas podiam falar com quem as visitava”. Era por esta fachada que se acedia, também, ao refeitório.

 

“D. Brites andou atrás de mim, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto e, com o intuito de me fazer espairecer, levou-me a passear à janela de onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui de repente acometida por uma lembrança tão atroz que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Voltou a trazer-me para dentro; e atirei-me para cima da minha cama, onde fiquei a pensar mil vezes nas poucas esperanças que tenho de vir um dia a curar-me. Tudo o que fazem para me consolar agrava a minha dor e até nos próprios remédios encontro novos motivos de angústia.  Muitas vezes dali te vi passar, com um ar que me cativava; e estava naquela varanda no dia fatídico em que comecei a sentir os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Fiquei com a impressão de que me querias agradar, mesmo sem me conheceres; achei que me tinhas escolhido entre todas as que estavam comigo; quando paravas, imaginava que o fazias de propósito para que te visse melhor e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo; dava comigo assustada quando o conduzias por um sítio perigoso; enfim, interessava-me secretamente por tudo o que fazias, sentia que já não me eras, de modo algum, indiferente e reclamava tudo isso para mim” (quarta carta)".*

 

O roteiro termina nas traseiras do museu regional, onde está instalada a denominada janela de Mértola, também apelidada de janela de Mariana Alcoforado, e através da qual a freira avistaria o cavaleiro Nöel Bouton.

 

O pequeno excerto da quarta carta atribuída a Mariana, que é lido no local, “fala-nos aqui da janela de onde se avista Mértola”, frisa André Tomé. Mas não sendo possível “avistar Mértola, provavelmente, serão as portas de Mértola” que são referidas na missiva. “É provável que os militares entrassem, de facto, por esta porta, que era das mais importantes da cidade, a cavalo, e que a Mariana pudesse [avistá-lo] de uma janela que existia aqui. Não sabemos se é aquela. É uma janela dessa época, que tem no emadeirado uma data de 1669, mas não sabemos se de facto é aquela”.

 

É possível, ainda, diz o arqueólogo, que um dos irmãos de Mariana, Baltazar Vaz Alcoforado, também ele um militar que participou nas Guerras da Restauração, e que depois se torna pároco da então vila de Beringel, “tenha tido relações de amizade com este Nöel Bouton”.

 

E é possível, também, que, “sendo esta família dos Alcoforado cada vez mais poderosa na cidade e endinheirada, tenha, naturalmente, recebido este exército”.

 

Independentemente de ter acontecido ou não o que é descrito nas Cartas Portuguesas e de Mariana ter sido ou não a sua autora, a verdade é que “Beja fica marcada por esta história, que é uma história inescapável da literatura dos últimos séculos”, afirma André Tomé.

 

 

Multimédia5Foto | Rui Cambraia - Janela de Mértola, também conhecida como janela de Mariana Alcoforado

 

Uma história “que foi muito lida pelo mundo inteiro e que continua a ser”, que “tem um impacto enorme na forma como se passa a expressar estes sentimentos românticos, que não era habitual na literatura da época”. Tenha ou não acontecido, reforça o arqueólogo, esta história “reporta a Beja e a estes espaços: é o convento que é descrito nas cartas, são as referências feitas à toponímia local, como as portas de Mértola, tudo isso vive nessas cartas e isso é importante”.

 

E “usando um pouco as palavras” de José António Falcão, sublinha que “são poucas as cidades, na Península Ibérica, ou mesmo no espaço europeu, que apresentam ainda vestígios materiais de uma história romântica importante na literatura dos últimos séculos” e que chega até aos dias de hoje.

 

“Todos conhecemos o Romeu e a Julieta, mas essa é uma ficção. Verona [Itália] fez o aproveitamento dessa história. Depois, Teruel [Espanha], também tem uma história de um amor muito importante na Idade Média e de que já não sobrevivem vestígios materiais. Nós temos esta história de Mariana. Tenha acontecido ou não da forma como nós muitas vezes gostamos de contar, esses vestígios materiais existem. Temos o convento, muito alterado, naturalmente, mas que existe. Temos a casa onde a família habitou. Encontramos ainda de pé a igreja de Santa Maria onde Mariana foi batizada. A própria quinta dos Alcoforado, já um pouco fora da cidade”.

 

A finalizar, André Tomé diz que há um “elemento a ter em conta”. Tendo Mariana vivido 72 anos no convento, e pertencendo a uma família de posses, com prestígio na cidade, “poderia perfeitamente ter chegado a abadessa”, mas tal nunca aconteceu.

 

“Ela terá desempenhado várias funções, ainda que isto não seja também de total acordo. Sabemos que terá sido escrivã. Terá sido também porteira, ainda que já tenha visto ser contestada essa ideia. Portanto, terá tido várias funções dentro do convento, no seu longo período de vida, mas nunca chegou a abadessa”.

 

No registo de óbito da freira, adianta o arqueólogo, “Mariana é das poucas, comparando com os registos de outras freiras, e estamos a falar de várias décadas, em que se refere que foi uma pessoa que teve muitas penitências ao longo da vida”.

 

Significaria isso que a história de amor “foi conhecida” e que “teve de se penitenciar muito pelo que aconteceu”?, questiona. E conclui: “Há pistas das quais não podemos escapar. Que penitências foram essas que Mariana terá cumprido quando todas as outras contemporâneas não o fizeram? E isto está escrito, é um registo primário, do próprio convento. Não me choca que possa ter havido trocas de algumas cartas. Não acredito que sejam as versões que nós conhecemos. Acredito que essas versões são retocadas. Acredito que possam ter existido algumas cartas que depois inspiraram estas”.

 

*Textos traduzidos pelo historiador José António Falcão

 

CARTAS SERÃO FRUTO DE “AUTORIA COLETIVA”

A historiadora Marta Páscoa, também autora da obra As Lettres Portugaises na Biblioteca de D. Manuel II, sublinha que, no âmbito das pesquisas que tem vindo a desenvolver sobre o tema, não encontrou qualquer indício de que “tenha havido um escândalo em Beja” envolvendo a freira e o cavaleiro francês e que Mariana “passa completamente despercebida”.

 

Se não fossem as cartas, adianta ao “Diário do Alentejo”, “seria uma freira de que ninguém hoje se lembraria, tal como [acontece com] as suas contemporâneas”. O que existe “é uma cronologia que permite pensar que a história de amor tenha acontecido”.

 

“Há indícios de que Chamilly tenha, de facto, estado aquartelado em Beja nos últimos meses”, antes de ter regressado a França, em 1667/68, portanto, cerca de um ou dois anos antes de as Lettres Portugaises terem sido publicadas. Bastava “terem sido publicadas um pouco antes, ou um pouco depois, para já não fazer sentido”, diz. Marta Páscoa frisa, ainda, que será “muito difícil”, algum dia, provar o que quer que seja, uma vez que as cartas originais nunca foram encontradas e no arquivo da família Alcoforado, consultado por Luciano Cordeiro no final do XIX, também não “aparece qualquer referência” à história de amor.

 

E alusão a Mértola e Algarve nas missivas “poderá ter surgido por outros motivos”, por serem “os sítios mais relevantes” para os militares franceses que vieram para o Sul no âmbito das Guerras da Restauração, esclarece.

 

“O Algarve era onde os barcos paravam e Mértola onde subiam o rio para depois desembarcarem no Alentejo”. Na sua opinião, a “possibilidade mais forte” é que as cartas sejam “fruto da autoria coletiva, de um conjunto de pessoas que se reuniam em salões literários em França e que se divertiam a escrever coisas”.

 

“Sabiam que havia uma freira em Portugal que se tinha apaixonado por um cavaleiro, que depois se foi embora, e com isso foram escrevendo bocadinhos, cada um escrevendo os seus, tanto que, e vários autores já falaram nisso, ao lermos as cartas com olhar crítico percebemos que muitos parágrafos não têm nada a ver com o parágrafo anterior, nem sequer começam da maneira como nós começamos uma carta”, conclui.

 

“ESCRITOS NA PLANICIE”

O Roteiro Literário Mariana Alcoforado, da autoria de Marta Páscoa, surge no âmbito do projeto de turismo literário do concelho de Beja, designado de “Escritos na Planície”, que “visa criar uma oferta turística estruturada em torno de quatro autores que são referências culturais ao nível regional, nacional e internacional, AL-MuTamid, Mariana Alcoforado, Mário Beirão e Manuel Ribeiro”, explica a Câmara Municipal de Beja.

 

Esta oferta, adianta a autarquia, “passa pela criação de produtos culturais e turísticos assentes no legado dos autores e nos lugares onde nasceram, viveram e morreram”. Para cada autor, “serão identificados especialistas, que irão investigar e criar conteúdos com este propósito”.

 

O referido projeto de turismo literário inclui “uma nova edição e reedição por autor, a criação de roteiros literários e roteiros turísticos que nos guiarão pelo universo do autor (físico e imaginário), ações de capacitação dos agentes locais através da realização de workshops, percursos dos roteiros e conferências e na área da comunicação e promoção dos produtos criados para os universos literários”.

 

Comentários
Recomendamos