Diário do Alentejo

Luto

15 de julho 2023 - 13:00
Câmara de Moura iniciou, no mês passado, o projeto “Intervenção terapêutica no luto”
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

A dor de perder alguém próximo, repentinamente ou por doença prolongada, gera uma mudança busca na vida de quem tem de “seguir em frente” com essa ausência. O luto e toda a simbologia que este carrega deixa mágoas e o “continuar”, muitas vezes, causa desconforto aos olhos da sociedade. Ana Felicidade, Rita Costa e Marta são três exemplos de diferentes formas de viver com o mesmo sofrimento.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Vinte seis de janeiro de 2021. Esta é a data que Ana Felicidade recorda, com angústia, a entrada do marido no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja. Pouco se sabia sobre as complicações da covid-19, mas António da Conceição Patinhas, com um resultado positivo, depressa subiu à ala direita do terceiro piso. 

 

“No primeiro teste que fomos fazer ele deu logo positivo, mas eu não. Mais tarde, comecei com sintomas, percebi que também estava infetada e fui fazer novo teste ao Centro de Saúde de Moura. Fui sozinha, ninguém podia ir comigo, e custou-me muito, tive muita dificuldade, porque já estava muito em baixo nessa altura”, começa por contar ao “Diário do Alentejo” (“DA”).

 

Sem saber ainda o resultado do seu teste, deixou de comer e de ter forças para se levantar da cama ou ir à casa de banho e, na mesma semana, também subiu ao serviço de Medicina Covid. Soube depois que, no dia em que foi internada, o marido foi transferido para os Cuidados Intensivos com insuficiência renal e “complicações pulmonares”.

 

“Ao fim de uns dias pedi para o ir ver. Já sabia onde ele estava, mas precisava de o ir ver. Os enfermeiros tinham receio que eu visse aquele aparato todo e piorasse, mas eu insisti. Acabaram por concordar em levar-me lá no outro dia de manhã, mas nessa noite, talvez por causa dos nervos, piorei e decidiram não me levar”, relembra a antiga cozinheira de 72 anos.

 

Diz, amargurada, que perdeu a última oportunidade de ver o marido com vida. António da Conceição Patinhas acabou por falecer a 9 de fevereiro, aos 69 anos, cerca de três semanas depois de ter dado entrada no hospital. Devido ao estado de saúde de Ana Felicidade, a equipa de enfermagem optou por não a manter informada sobre a situação do marido, nem comunicar-lhe a sua morte. 

 

“Nesse dia, mudaram-me de quarto, onde fiquei sozinha. Depois veio uma psicóloga que pediu para falar, sentou-se numa cadeira junto a mim e deu-me a notícia”, diz, respirando fundo.

 

“Nessa altura eu não queria acreditar. Parecia-me que era mentira aquilo tudo. Estava a viver um pesadelo. Tudo aconteceu em muito pouco tempo e nós não estávamos preparados”.

 

“QUANDO ELE FEZ UM ANO DE TER FALECIDO FOI O DIA EM QUE EU O ENTERREI”

Ao fim de três semanas de internamento, com uma perda de 20 quilos e sem conseguir recuperar os níveis de oxigénio e controlar a doença, Ana Felicidade teve alta hospitalar. Um amigo de longa data levou-a até à casa da filha, em Moura, onde ainda esteve isolada “três dias no quarto” com medo de estar em contacto com a família e infetá-la.

 

Aos poucos, conta ao “DA”, começou a “cair” numa realidade ficcionária de perda. “Foi muito difícil e o facto de não ter assistido ao funeral custou-me mais. No princípio, quando via algum amigo ou quando passava em algum sítio onde ele costumava estar, parecia que o via ali ainda sentado. Quando nós estamos presentes nos funerais vivemos aquilo e eu não vivi e, por isso, às vezes ainda me parece que é mentira, porque não assisti a nada”, explica.

 

No primeiro ano, Ana Felicidade conta que “a passagem do Natal e das [outras] datas mais marcantes” não foram vividas depressivamente, talvez por “não estar ainda mentalizada com o que se tinha passado”. Contudo, este último ano “foi horrível” e levou-a “ao fundo do poço”.

 

O sentimento de culpa de não ter visto o marido “pela última vez” e, consequentemente, de não ter estado com a família no dia do seu funeral, não a deixavam seguir em frente e encarar o ocorrido.

 

“Quando o meu marido fez um ano de ter falecido pedi [à família mais chegada] para que nos juntássemos todos no cemitério como se fosse o dia do funeral, porque eu não tinha estado lá com eles, não tinha estado com ninguém. Fizemos uma pequena cerimónia à volta da campa e então esse dia foi o dia em que, para mim, o enterrei. A partir daí penso que fiquei a aceitar um bocadinho melhor”, refere.

 

Também Marta (nome fictício), de 39 anos, sabe que o sentimento de arrependimento não a deixa viver o luto de forma saudável. Em 2019, com apenas dois meses de intervalo, foi forçada a lidar com a perda de uma “prima direita”, emigrada em França, que teve “uma paragem cardiorrespiratória”, e com o suicídio da irmã mais velha.

 

“Tinha combinado com a minha mãe que em outubro, nas minhas férias, íamos a França ter com a minha tia, já depois da morte da minha prima. E no meu primeiro dia de férias, dois dias depois de o meu filho fazer anos, a minha irmã suicidou-se”, começa por contar. “Estava a dormir e aquilo foi terrível. Ninguém estava à espera”.

 

Marta lembra-se de “sair da cama a pensar que não podia chorar”, uma vez que acreditava que tinha de ser forte para “dar a notícia a toda a gente”. “Tive de fazer 27 quilómetros completamente desorientada para conseguir contar à minha sobrinha [sobre a morte da minha irmã]”, revive.

 

A espiral emocional e depressiva que Marta sempre viveu agravou-se. A pandemia, que se desencadeou nesse mesmo ano e que piorou no ano seguinte, veio aumentar ainda mais a sua instabilidade. O facto de trabalhar numa instituição particular de solidariedade social (IPSS) onde, por conta da covid-19, eram feitos turnos de 48 horas seguidos de quatro dias de folga e, mais tarde, o isolamento social que teve de fazer com o filho quando este testou positivo “à covid”, deitou-a “muito abaixo”.

 

“Habituada a sair para trabalhar todos os dias, o que me permitia afastar certos pensamentos, fui obrigada a ficar em casa durante um mês e isso fez-me entrar numa grande depressão. Quando fez um ano que a minha irmã faleceu eu estava trancada em casa”, recorda.

 

Sem conseguir curar as feridas que ainda carregava, principalmente, o facto de não se ter despedido da prima e da irmã devido às suas mortes repentinas, Marta foi forçada, mais uma vez, a lidar com a perda da avó após um acidente vascular cerebral (AVC).

 

“A minha avó esteve internada 15 dias e quando teve alta, e era para regressar a casa, teve o segundo AVC hemorrágico e acabou por falecer. E eu, por causa das restrições, não consegui despedir-me e levei com mais este embate”, acrescenta.

 

“TALVEZ VÁ HAVER DIAS EM QUE CHORE, OUTROS NÃO, OUTROS EM QUE FALAREI MAIS, OUTROS EM QUE SÓ VOU OUVIR, MAS ISTO FAZ PARTE”

Ana Felicidade e Marta encontraram-se, recentemente, no grupo de apoio do projeto “Intervenção terapêutica no luto”, dinamizado pela Câmara Municipal de Moura. Em conversa perceberam que, apesar das suas histórias serem diferentes, têm algo em comum: ambas sentiram que não tiveram tempo de se despedirem dos seus familiares e, por isso, durante um longo período, não se permitiram seguir em frente.

 

“Nessa altura, quase que não comia, falar também era pouco e depois é uma pescadinha de rabo na boca, anda-se à roda e à roda e depois quer-se sair e não se consegue”, realça Ana Felicidade.

 

Rita Costa, de 49 anos, também faz parte do grupo de apoio. Há cerca de dois meses perdeu o marido, Walter Machado, de 50.

 

“Há um ano o meu marido foi diagnosticado com um cancro nos intestinos e durante esse tempo o seu estado foi-se agravando, ainda houve alguma esperança, porque ele fez algumas cirurgias e tratamentos, mas em fevereiro deste ano o diagnóstico atualizado veio que era um cancro muito agressivo”, lembra.

 

Mãe de três filhos, ficou em teletrabalho para se tornar também, nos últimos meses, cuidadora informal. Sabia, principalmente, depois do último diagnóstico, em que se percebeu que “a doença tinha progredido”, qual seria o desfecho.

 

“O seu falecimento foi algo para o qual nós nos fomos preparando, mas nunca estamos realmente preparados. Tem sido um processo muito difícil, principalmente, para todos os que vivemos cá em casa e para os meus sogros, porque quando uma pessoa morre há sempre um vazio e uma ausência tremenda”, refere.

 

Ao “DA” Rita Costa garante estar consciente de todo o processo que ainda tem de ultrapassar.

 

Diz que “talvez vá haver dias em que chore, outros não, outros em que falarei mais, outros em que só vou ouvir, mas isto faz parte”. Por agora, sente-se “responsável” pelas pessoas que o marido deixou, contudo, afirma que também precisa “de cuidar” de si “para poder cuidar dos outros”.

 

 “NINGUÉM FALA DA MORTE E DO LUTO E ISSO TEM DE MUDAR”

A perceção que a sociedade tem da morte, do luto e da própria pessoa enlutada, segundo as três participantes do grupo, condiciona ainda muito todo o processo de “voltar ao ativo” depois da morte de alguém próximo.

 

“As pessoas guardam muito para si, têm vergonha de se expor, mas, por outro lado, também não querem estar alegres. Quem está a passar por isto tem sempre uma imagem a preservar, porque, por exemplo, não pode rir. E esta imagem tem de mudar, porque o luto não quer dizer que a pessoa tenha de estar sempre a chorar”, justifica Rita Costa.

 

Marta corrobora: “Eu sentia-me culpada. Ao fim de um ano [da minha irmã ter falecido] fui tentar vestir outra cor [além do preto] e parecia-me muito mal, porque pensava que as outras pessoas iam achar que já não estava a sofrer, que tinha esquecido a minha irmã e que a minha vida tinha continuado e a minha irmã já não fazia parte dela. Assim como, por exemplo, se havia uma situação no local de trabalho em que me ria com as minhas colegas dava por mim a pensar ‘como é que ela não está cá e eu estou-me a rir?’ e aquilo fazia-me muita confusão”.

 

O associar o luto a tudo o que é visível, e a “algo” que com o tempo simplesmente passa, é uma ideia a ser ultrapassada. Para Rita Costa, Ana Felicidade e Marta esta aposta da Câmara de Moura vem ajudar a desmistificar o estigma que existe em torno da morte e, consequentemente, das pessoas que procuram um psicólogo para “organizar as suas gavetas”.

 

“Ninguém fala da morte, nem do luto. Hoje em dia temos a sociedade da felicidade, do pensamento positivo, da alegria ao máximo e ninguém para para pensar na morte, na doença e que todos vamos morrer e ter de passar por isto de perder pessoas”, conclui Rita Costa.

 

“FOMOS CONSTATANDO QUE A VIVÊNCIA DAS PESSOAS ENLUTADAS ERA MUITO DIRIGIDA PARA SI PRÓPRIA”

A sala de ensaios do Cineteatro Caridade, em Moura, recebe desde o início de junho o grupo de apoio do projeto “Intervenção terapêutica no luto”.

 

Lurdes Balola, vice-presidente da câmara, confirma ao “DA” que a iniciativa surgiu “através do trabalho de apoio na comunidade”, em que se constatou “que a vivência das pessoas enlutadas era muito dirigida para si própria e que muitas dessas pessoas necessitavam de partilhar o que sentiam”, apesar de não carecerem de “intervenção psicológica individual”.

 

Segundo Sofia Melo, psicóloga e responsável pelas sessões, o grupo permite “criar uma auto-percepção de que não se está sozinho e que, naquele contexto, as pessoas têm algo em comum para partilhar”, aumentando, assim, “o conhecimento e o autoconhecimento sobre o diagnóstico ou preocupação em comum”.

 

A próxima sessão está agendada para hoje, dia 14, das 10:30 às 12:00 horas. Este primeiro grupo terminará no dia 9 de agosto e está previsto a criação de um segundo, com oito participantes, a partir de 22 de setembro.

 

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