O Centro de Paralisia Cerebral de Beja tem desenvolvido, nos últimos quatro anos, o projeto “Inclusive Dance” com um grupo de seis utentes em cadeiras de rodas. Além das melhorias física e cognitiva que têm sido visíveis nos bailarinos, a dança contemporânea que praticam tem deitado por terra alguns estigmas associados às pessoas com deficiência.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
As colunas estão ligadas. Aos poucos, timidamente, um e outro braço surge embalado pela melodia que paira no ar. Os seis bailarinos, acompanhados pelas suas cadeiras de rodas, circulam cuidadosamente sem se tocarem. Dançam. Levitam. Mostram em mais um ensaio, o primeiro da semana, aquilo que desde 2019 os faz sorrir.
“As nossas aulas têm sido basicamente trabalhar o corpo e a mente. Tentar potenciar a essência de cada um e não dançar só por dançar, esse nunca foi o nosso objetivo”, começa por explicar Eunice Fortes, ensaiadora do grupo “Inclusive Dance” e animadora sociocultural do Centro de Paralisia Cerebral de Beja (CPCB).
O projeto de dança inclusiva, que começou alguns meses antes da pandemia de covid-19, nasceu pela vontade de utilizar a dança “como uma ferramenta de aptidão” física e psicológica dos utentes em cadeira de rodas, assim como pela necessidade de “dar visibilidade ao potencial artístico das pessoas com deficiência”.
“Já tínhamos um grupo de dança e, entretanto, o projeto surgiu porque queríamos que o grupo de cadeiras de rodas começasse a dançar. Acabei por ser a escolhida para fazer isso acontecer, [mas, no princípio], não sabia bem como. Inicialmente foi um grande desafio para mim, porque, apesar de já ter experiência de dança, nunca tinha trabalhado com dança de cadeira de rodas”, lembra.
“Optei por começar com a expressão corporal e foi através dela que tive um maior contacto com os seus corpos e os seus movimentos, porque eu queria que quando nos vissem não pensassem: ‘Olha, são deficientes’, mas sim: ‘O que é que eles estão a fazer? O que é que as cadeiras estão a fazer? O que é que aquele corpo está a fazer?’”.
A necessidade de criar “emoções e sentimentos”, mesmo de “estranheza ou de choque”, a quem assiste às performances do grupo, ao mesmo tempo que se conta uma história, sempre foi um dos grandes objetivos da ensaiadora. Além da importância de trazer bem-estar, a todos os níveis, para os utentes do CPCB, o foco do grupo está também na reflexão e na desmitificação da ideia de que pessoas com deficiência não podem dançar ou que o fazem de forma “vazia”.
“APESAR DE NÃO CONSEGUIR FAZÊ-LO DE OUTRA MANEIRA PERCEBI QUE NADA É IMPOSSÍVEL”
Com cerca de quatro anos de ensaios e apresentações, embora com uma paragem durante a pandemia, os resultados físicos, cognitivos e pessoais dos bailarinos, segundo Eunice Fortes, são evidentes.
“Temos notado uma melhoria muito significativa. O simples facto de andarem à roda com a cadeira é uma evolução tremenda, porque, no início, era um chocar total uns com os outros e, depois, através dos movimentos, começaram a ganhar o raciocínio de ‘e agora para onde é que eu vou?’ Tenho de ter cuidado aqui para não bater no meu colega’”, refere.
Francisco Cavaqueira, de 46 anos, tem paralisia cerebral. Ao “Diário do Alentejo” (“DA”) conta, enquanto exemplifica alguns movimentos que tem treinado, como o levantar da cadeira sozinho, que antes de ingressar no grupo de dança “estava parado”, mas que agora já está “melhor”.
Em Tânia Espinho, de 40 anos, nota-se, igualmente, uma “grande melhoria a nível físico”.
Também tem paralisia cerebral, que não lhe permite falar, contudo, Eunice Fortes garante que, por conhecer a sua forma de comunicar, a utente “adora dançar no chão”, uma vez que, quando a tenta levantar “para a meter na cadeira novamente, por vezes, faz o corpo duro, porque quer continuar a dançar no chão”.
Por sua vez, Adriana Lopes, de 38 anos, aprendeu a girar a cadeira de rodas sem precisar de ajuda e tem tido uma evolução “impressionante” na memorização dos movimentos da performance, o que, por vezes, na sua rotina diária, não é intuitivo.
“Eles têm melhorado muito o que os ajuda também no seu dia a dia, principalmente, a nível cognitivo, a não regredir e a ter mais autocontrolo nas emoções. Por exemplo, a Adriana tem muita ansiedade e a dança veio permitir-lhe um maior autocontrolo do corpo, do ritmo e da mente. No geral, a dança traz-lhes ainda uma maior autoestima, porque se sentem valorizados”, diz a animadora sociocultural.
Este sentimento de valorização também é notório e Sandra Vitorino confirma-o. “Eu pensava que como estava numa cadeira de rodas era difícil e não podia dançar. Nunca pensei que chegaria a este ponto, mas, para mim, tem sido incrível, porque gosto de dançar, de ter movimentos e a música faz-me sentir realizada e mais leve”, conta a utente de 48 anos.
À semelhança da maioria dos bailarinos do grupo, também ela tem paralisia cerebral, contudo, garante que, embora não estivesse nos seus planos aprender a dançar, e muito menos fazer apresentações em palcos como o Pax Julia Teatro Municipal, em Beja, “apesar de não conseguir fazê-lo de outra maneira [sem ser com a cadeira de rodas], percebi que nada é impossível”.
“Tem sido uma experiência muito interessante, muito boa e gratificante para os utentes, porque em termos de uso de cadeira de rodas estão muito menos limitados. A nível social é muito importante inclui-los lá fora, porque a projeção que este tipo de dança tem aos olhos do meio exterior, da comunidade e dos próprios utentes é também muito bom, porque conseguem realizar um trabalho que lhes permite aumentar a sua autoestima. Para estes jovens, tudo aquilo que possamos facultar-lhes de forma igual aos demais é sempre importante e eles sentem-se muito gratificados, com autoestima, e começam a dar valor a si próprios, porque o pensamento, muitas vezes, é: ‘Eu não posso fazer isto ou aquilo porque estou numa cadeira de rodas ou porque tenho esta limitação no braço’”, destaca a diretora técnica do Centro de Atividades Ocupacionais do CPCB, Lurdes Freitas.
“COMO NÃO VIA NA TELEVISÃO PESSOAS DANÇAREM DE CADEIRA DE RODAS ACHAVA QUE NÃO ERA POSSÍVEL”
O olhar da sociedade perante os bailarinos do CPCB é também uma das preocupações que o grupo de dança, através da sua ensaiadora, tem tido ao longo dos anos.
Para o CPCB, o intuito das apresentações feitas pelo “Inclusive Dance” é mostrar que, independentemente das limitações, todos são capazes de fazer tudo e que o reconhecimento que têm vindo a ganhar não se deve ao facto de serem “coitadinhos”, mas, sim, por serem “bailarinos que estão lá porque merecem, trabalham duas vezes por semana e dão tudo de si, mesmo sabendo das suas limitações cognitivas”.
“Este projeto tem quebrado muitas barreiras devido à estranheza. ‘Como assim, eles podem dançar? Como assim, podem estar a contar uma história com o corpo?’ A sociedade tem-nos dado um feedback muito bom, porque vêm dizer-nos: ‘Estavam em cima do palco e pareciam que estavam a flutuar’, ‘não sabia que podiam dançar com a cadeira de rodas’ ou ‘não sabia que se mexiam assim no chão’”, comenta Eunice Fortes.
“Temos quebrado muito esta barreira do corpo perfeito e mostrado que este corpo também dança”, reforça.
A pouca representatividade no meio, ou seja, a falta de bailarinos em cadeiras de rodas, segundo a ensaiadora, tem permitido que este estigma se mantenha na comunidade. Luís Belchior, de 52 anos, conta ao “DA” que, no início, quando foi convidado a participar, não estava recetivo.
“Foi ela [Eunice Fortes] que me convidou para participar, mas eu não estava muito convencido. Depois pensei: ‘Vou experimentar’. E gostei. Tenho aprendido muita coisa, a trabalhar com a cadeira e a dançar no chão”, diz.
Carla Leal, de 50 anos, é a única bailarina no grupo que não tem paralisia cerebral. A sua situação motora deriva de uma doença degenerativa que a afeta e, ao contrário dos seus colegas, sabe o que é dançar fora de uma cadeira de rodas.
“Eu andava e gostava de dançar, mas, depois, quando fiquei assim, em casa, comecei a pensar que já não podia fazer as coisas que as outras pessoas faziam. Via muita televisão e programas de dança e sei que se tivesse continuado a andar sozinha que seria bailarina de danças de salão”, conta. “Mas, depois, como não via na televisão pessoas a dançarem de cadeira de rodas achava que não era possível”.
Daí ser cada vez mais urgente para o CPCB fomentar atividades em que se modifique “a imagem social das pessoas com deficiência”, através da valorização das suas capacidades, não só perante a sociedade em geral, mas, sobretudo, junto dos próprios utentes.
“Este tipo de atividades permite-lhes perceber que são capazes. Se lhes derem as mesmas oportunidades, eles, dependendo, claro, das suas limitações, são capazes. E é um pouco esta a ideia da criação deste grupo, permitir-lhes aquilo que eles acham que não são capazes de fazer, mostrando-lhes que conseguem fazer o que quiserem como qualquer outra pessoa. Assim como permitir que a comunidade olhe para nós com um olhar diferente”, assinala Lurdes Freitas.
Quanto ao futuro do projeto, Eunice Fortes é concisa. Além da atual parceria com o Conservatório Regional do Baixo Alentejo, que tem permitido um maior contacto dos bailarinos do CPCB com outras técnicas e artistas, o objetivo passa por “ter mais parcerias com outros grupos de dança para que se consiga mostrar a dança fora dessas paredes/barreiras que a sociedade impõe por não estar habituado ao diferente”.
“Queremos sair mais, aprender, trabalhar com bailarinos que não tenham deficiência, em que, por exemplo, façamos performances conjuntas, mostrando o nosso trabalho e continuando a quebrar barreiras, preconceitos e discriminações. Eles têm a capacidade de desfrutar e é isso que queremos que eles façam também, porque, como costumo dizer, o que une este grupo não é a deficiência, mas, sim, a dança”.
FALTA DE ACESSIBILIDADES CONTINUA A SER UM PROBLEMA
Para Eunice Fortes, um dos principais problemas com que o “Inclusive Dance” se tem debatido ao longo dos anos tem sido a falta de acessibilidades no geral. Ainda que o intuito do CPCB seja dar aos jovens com deficiência oportunidades iguais aos demais, o seu papel fica condicionado quando os mesmos não conseguem, simplesmente, subir a um palco para realizar a sua apresentação.
“Enquanto os outros artistas estão a atuar nos palcos, muitos deles não têm forma de nós subirmos. Quando o palco é alto temos sempre muita dificuldade, porque a nossa rampa não é muito alta e, principalmente, a cadeira da Sandra tem tendência para virar. Já deixámos de fazer apresentações por isso. Mas isto é geral”.