Diário do Alentejo

Uma Deusa que não é de cá!

05 de junho 2023 - 12:30
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Texto José D'Encarnação, arqueólogo

 

É seguramente um dos altares romanos do termo de Beja que mais tem despertado a atenção dos investigadores, porque envolvido em mais dúvidas que certezas – e a dúvida constituiu sempre um motivo maior para acicatar a curiosidades e suscitar interpretações diversas.

 

Leite de Vasconcelos, por exemplo, ficou tão entusiasmado com mais este testemunho do culto a uma divindade pré-romana que, tendo ido a Évora, em cujo museu ele se guardara, não hesitou em lhe publicar o desenho!

 

Não quero correr esse risco de acrescentar mais uma interpretação nem pretensão pode haver, digo eu, de perentoriamente se declarar: “Esta é a solução definitiva!”.

 

Aliás, diga-se desde já que, para além de não se saber donde é que o monumento veio (porventura da quinta da Cardeira, monte da freguesia de Quintos, onde há uma villa romana), as dúvidas recaem apenas na leitura, e correspondente interpretação, das linhas dois e três do texto, onde a superfície da pedra foi estragada, aquando da sua reutilização. Aí está a identificação de quem mandou fazer o monumento, sendo V S da linha três as habituais siglas da fórmula votum solvit, “cumpriu a promessa”.

 

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Poderiam ter sido gravadas nessa linha três – também estragada pelos maus tratos que a pedra sofreu – outras duas letras: L A, as siglas da expressão “libens animo”, “de livre vontade”. Era a forma de explicar à divindade que não houvera imposição de ninguém. Uma fórmula, de resto, que não será assim tão estranha como, à primeira vista, poderia parecer: não pergunta quem preside à cerimónia nupcial “É de livre vontade que aceita como esposo fulano?”. É que, caso não seja, o casamento não tem valor! Assim era, pois, também o comportamento dos romanos perante a divindade.

 

Por conseguinte, esse único mistério do letreiro – a decifração do nome do devoto – dificilmente será, um dia, desvendado.

 

Já a divindade que ele quis homenagear vem identificada. Primeiro, por duas siglas, D. S., que significam “à Deusa Santa”. E porque se opta já pelo feminino? Porque, nesta zona da Lusitânia (incluindo a parte agora espanhola), há outras inscrições dedicadas à mesma divindade em que essas siglas vêm por extenso. Portanto, este problema está resolvido. E TVRVBRICI, o que é?

 

Também o sabemos, por outros testemunhos: é um epíteto de índole geográfica. Um epíteto? – perguntar-se-á. Sim. Não temos nós Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Lurdes? Trata-se de uma forma de apropriação local desse espírito divino, no desejo de o tornarmos mais nosso e, por outro lado, de lhe atribuirmos qualidades protectoras específicas. Um hábito, portanto, que vem de longe.

 

Nesse caso, Turubricense (ou Turobrigense) seria a divindade protectora de que terra ou de que povo?

 

De Turobriga, uma localidade de que há notícias epigráficas, mas não se sabe onde ficava. De resto, até nem temos garantia do nome mais correcto, porque nos aparece Turibriga, Turobriga, Turubriga. Ficaria, decerto, do lado agora espanhol. E falta encontrarmos uma inscrição oficial e de localização segura para podermos termos certezas.

 

Uma certeza há, todavia: o facto de alguém prestar culto, nos arredores de Pax Iulia, a uma divindade que não é de cá constitui prova de que esse alguém veio de fora, mui provavelmente dessa Turobriga. Também esse aspecto facilmente se compreende: não há em Wiltz, no Luxemburgo, um santuário a Nossa Senhora de Fátima, alvo, aliás, de uma das maiores festas religiosas do Grão-ducado? Não se inaugurou, a 25 de Junho de 2004, em Petersberg, na região alemã de Fulda, uma capela da invocação também da Senhora de Fátima? Tanto num caso como noutro, a influência da colónia de emigrantes portugueses não pôde deixar de ser significativa. O mesmo se poderá dizer a propósito deste altar romano: seguramente não foi o seu promotor o único turobrigense a vir para Pax Iulia!...

 

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E temos aqui, além disso, mais um testemunho da tolerância religiosa dos romanos. É que este epíteto – Turobrigense – foi aplicado a uma das divindades pré-romanas com bastantes testemunhos já encontrados: Atégina, considerada como protetora das almas no Além. Achou-se em Mérida, que foi capital da Lusitânia, uma árula, de 16 x 10 x 10 centímetros de mármore branco, onde se lê que Artemas, um dos escravos de Cláudio Martilino, a colocou para cumprimento de uma promessa à Deusa Santa Atécina de Turóbriga. 

 

Este altar dos arredores de Beja não se sabe quando foi encontrado. Fez, porém, parte do espólio que Frei Manuel do Cenáculo foi reunindo e que levou consigo para Évora, em cujo museu nacional que tem o seu nome, agora se expõe, com o n.º de inventário 1814. Pelas suas dimensões – 54 centímetros de altura, 30 de largura e 18,5 de espessura – poderá sido destinado a figurar no oratório familiar ou num templete erguido na villa.

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