Celebrando a maioridade, o Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, que decorre de hoje, dia 2, até 18 de junho, tem na sua génese o coletivo Toupeira – Ateliê de Banda Desenhada, criado em 1996. Um grupo de autores de BD, alguns deles reconhecidos nacional e internacionalmente, que colocou a cidade na agenda anual dos amantes da nona arte.
Texto José Serrano
O Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, organizado pela câmara municipal, celebra este ano a 18.ª edição, sendo previsível que a cidade, à semelhança das edições anteriores, volte a ser destino sublinhado em todas as agendas dos amantes da nona arte, a partir de dia 2, com a inauguração na Casa da Cultura marcada para as 21:00 horas, e até ao próximo dia 18.
Paulo Monteiro, responsável pelo festival, faz uma visita guiada ao passado, recordando como se iniciou este evento artístico, hoje incontornável. “O coletivo Toupeira – Ateliê de Banda Desenhada, surgido em 1996, está na génese de tudo o que aconteceu em Beja relacionado com a BD – hoje somos o coletivo de autores de BD mais antigo do País e um dos mais antigos da Europa, em funcionamento”, acentua.
“Em muitas localidades do nosso país existe a apetência, por parte dos jovens, pela criação de BD – o que se passa é que na maior parte desses sítios as experiências são muito fugazes, com ateliês pontuais e algumas exposições. Mas nós, aqui, conseguimos fazer uma coisa muito importante, que foi insistir na criação e na produção. E a insistência produziu resultados”, sublinha.
Perseverança que se refletia na assiduidade dos dois encontros semanais na Casa da Cultura de Beja e no constante, exigente e incontornável estudo do desenho, visando o progressivo aperfeiçoamento do trabalho de autor de BD.
“Foi isso que aconteceu”, diz Paulo Monteiro, com cada um dos autores do grupo, “na altura muito jovens”, a começar a publicar “as suas histórias nos nossos fanzines” e estes a serem por nós distribuídos “por um montão de livrarias, de Bragança a Faro”, o que teve como consequência, desde logo, alguma notoriedade – “num ano ou dois começamos logo a ter expressão a nível nacional”.
Ao mesmo tempo, refere, foi dada manifesta importância ao intercâmbio de livros e à leitura e visualização de obras de autores mais ou menos alternativos, “que eu e outros trazíamos de casa”, bem como a viagens a vários festivais de BD, em Portugal, “e não só – chegámos a ir a Barcelona”.
Ao mesmo tempo, manifesta, “criámos uma relação de amizade, entre todos, que não é pouco importante para uma coisa destas, pois os grupos funcionam muitas vezes na base da estima, por terem afinidades e sentimento comuns – mesmo quando a casa da cultura estava fechada, encontrávamo-nos nos cafés ou no jardim público e para além dos dois encontros semanais programados saíamos ainda às quintas-feiras à noite, para irmos beber uma cerveja e falar de BD”.
Ao progressivo e resiliente trabalho do coletivo, que começou a ser reconhecido a nível nacional e internacional, a fazer exposições, a dar apoio ao Festival de Banda Desenhada de Moura, e a publicar em vários fanzines nacionais, foi surgindo, de forma natural, “a necessidade de dar outro enquadramento a este grupo de autores”, o que sucedeu através da criação da Bedeteca de Beja e do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, ambos inaugurados no dia 9 de abril de 2005.
“Na altura só existia a Bedeteca de Lisboa, que nos ajudou imenso, tal como o Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem da Amadora e o próprio festival de BD de Moura que, de alguma forma, foi o grande ensaio para o festival de Beja. Foi um tempo fantástico e a partir daqui as coisas evoluíram de uma maneira incrível”.
Neste coletivo, fundador da Bedeteca e do festival de BD de Beja, há autores de relevo, “e outros vão a caminho”, na BD nacional e internacional – “a seguir a Lisboa e ao Porto somos a cidade do País com mais autores de banda desenhada a publicar as suas obras. Isto é incrível e tem a ver com a tal insistência que mantivemos”, realça o responsável pelo festival. Acerca da notoriedade de alguns dos seus membros, Paulo Monteiro, também ele reconhecido e premiado autor de BD, discorre: “O mundo da BD não é monolítico, espraia-se em muitas vertentes diferentes, tal como o nosso festival que apresenta autores de comic, de manga ou de BD alternativa, e o Toupeira espelha essa realidade”.
Ao Toupeira, que conta atualmente com 34 autores, continuam “a chegar constantemente” pessoas novas – “hoje o mais novo dos nossos autores tem 14 anos” – acolhendo o coletivo a criatividade, tal como há 27 anos atras, de autores de BD que perseguem um sonho feito aos quadradinhos.
“Esta viagem, que tem um trabalho de base enorme, continua a ser incrível. É o trabalho de uma vida, no fundo”, termina, sublinhando, Paulo Monteiro.
CARLOS PÁSCOA
Desde sempre se lembra de desenhar. Desta forma, naturalmente, inscreveu-se, com 18 anos, num ateliê de verão de desenho, na Casa da Cultura, o que lhe possibilitou conhecer Paulo Monteiro e fazer parte do grupo de desenhadores que fundou o coletivo Toupeira – Ateliê de Banda Desenhada.
E foi exatamente no Toupeira que Carlos Páscoa começou a publicar as suas primeiras “histórias aos quadradinhos”, no fanzine que juntava, e junta ainda, as histórias desenvolvidas pelos autores do coletivo, ao longo do ano. Fanzine que, recorda, se intitulou inicialmente “Pax-Fanzine”, depois “Lua de Prata” e posteriormente “Venham + 5”, o atual nome da publicação que marca um ano de aventuras desenhadas dos autores.
Hoje, Carlos Páscoa é um dos artistas residentes da “Aces Weekly”, revista de referência de BD, exclusivamente on line, que diz apresentar “os melhores talentos de todo o mundo”, dirigida por David Lloyd, o conhecido desenhador e cocriador (juntamente com Alan Moore) do personagem V - for Vendetta.
“Na primeira comicon [convenção de Banda Desenhada, cultura pop e entretenimento] a que fui em Londres, onde vivi quatro anos, fui abordado, entre tantas pessoas que passavam, por alguém que me perguntou se o que levava debaixo do braço era o meu portefólio e se o poderia ver. Folheou-o, então, mas eu não fazia a mínima ideia que era David Lloyd, o próprio, a dizer-me que achava as minhas pranchas muito interessantes. Quando se me apresentou fiquei incrédulo. Trocámos emails e ele pediu-me para lhe enviar trabalhos meus, traduzidos para inglês, e a partir daí comecei a publicar regularmente, com ele, na ‘Aces Weekly’. É uma história incrível, inesperada…”.
As publicações da sua autoria, na revista “dos ases” são histórias do fantástico e de ficção científica em que os heróis são pessoas, diz o autor, à semelhança de ele próprio, “isoladas, com problemas em falar com outras”, que circulam pelo mundo “a tentar safar-se” das adversidades. Regressado da aventura londrina a Beja, há cerca de seis anos, Carlos Páscoa vive hoje na cidade, trabalhando como designer freelancer, conciliando a atividade com a produção artística de desenhador de BD, publicando na “Aces Weekly”.
“Viver em Beja, depois de ter estado numa das maiores metrópoles do mundo… Londres é uma cidade que, para lá das oportunidades que nos oferece, ‘esmaga’ as pessoas – no metro esmaga literalmente. Em Beja há paz de espirito, a cidade é benéfica para o meu trabalho. O tempo aqui é maior”.
Acerca do festival, o autor considera o evento importantíssimo, para uma cidade que necessita de mais “dinamismo cultural”, sublinhando o anseio que sente pelo dia da abertura daquele que será o primeiro museu de BD do país – “que já devia estar pronto”.
SUSA MONTEIRO
A ilustradora bejense, Susa Monteiro, entrou para o coletivo Toupeira, em 2003, acabada de chegar à sua cidade depois de terminar, em Lisboa, os cursos de Realização Plástica do Espectáculo, na Escola Superior de Teatro e Cinema, e de Cinema de Animação, no Centro de Imagem e Técnicas Narrativas do Centro de Arte Moderna.
“Quando voltei para Beja, procurava ateliês para participar e ao ver a publicidade do Toupeira, que dizia “Ilustração e Banda Desenhada”, inscrevi-me. Mas quando lá cheguei não havia ilustração nenhuma e era tudo banda desenhada. Ou seja, era uma falsa publicidade”, recorda, espirituosamente.
E o grande problema, diz, “é que eu nem gostava de BD, porque tinha uma noção completamente errada da arte, que julgo ser partilhada pela maior parte dos portugueses – que se trata de qualquer coisa limitada e infantil”. Contudo, esta perceção negativa, consequente do seu desconhecimento, foi rapidamente dissipada.
“Afinal não fazia a mínima ideia de todos os mundos incríveis que a BD abrange”.
Hoje, Susa Monteiro continua a publicar as suas histórias, anualmente, no fanzine do Toupeira, o “Venham + 5”, declarando, no entanto, “não ter tempo”, de se dedicar à BD, em temos profissionais, uma vez que para a nona arte ser uma fonte de rendimento há que “produzir um álbum e vendê-lo”, necessitando a sua produção de, “certamente, mais de um ano de trabalho”, o que, com o volume de trabalho que lhe é solicitado, enquanto ilustradora freelancer, se revela difícil.
“Quando se é freelancer não tens tempos livres e como para mim é difícil trabalhar em mais que um projeto ao mesmo tempo tenho tido essa dificuldade em conseguir, de facto, produzir um projeto de BD”, refere.
O seu muito requisitado tempo profissional ocupa-o a desenvolver ilustrações, “todos os dias desenho”, para livros de “muitíssimas editoras”, espanholas, brasileiras ou portuguesas, como a Leya, a Porto Editora, a Pato Lógico, a Oficina do Livro, a Kalandraca ou a Bertrand, bem como para jornais como o “Diário do Alentejo”, revistas, como a “Visão” e ouras instituições, a exemplo do recente trabalho desenvolvido para o Museu do Aljube.
Acerca do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, do qual a imagem gráfica é da sua responsabilidade, Susa Monteiro observa: “Este trabalho, que temos vindo a desenvolver desde 2005, é um dos mais importantes das nossas vidas, porque o objetivo é enriquecer a cidade com um evento que nós tentamos que seja único, em que fazemos questão que as pessoas, enquanto cá estão, estejam felizes, que criem amizades e relações que venham a dar frutos profissionais. Julgo que em relação a isso temos uma grande vantagem, relativamente a outros festivais, como o da Amadora, por Beja ser uma cidade em que se pode ir a pé para todo o lado, em que as pessoas ficam alojadas em sítios próximos uns dos outros, onde a partilha é mais fácil. Mas se nós pensarmos…18 anos é uma vida. Se fosse uma pessoa já iria para a universidade. Neste tempo muitas coisas mudaram, mas eu esperava que as coisas já fossem mais fáceis. E continuam a não ser…”.
ANDRÉ FERREIRA
A viver em Moura, André Ferreira, auxiliar de arqueologia, desloca-se todas as semanas, por duas vezes, a Beja. A viagem relaciona-se com a sua participação no coletivo Toupeira, que integra desde 2013, e de cujos encontros não considera abster-se por singelos 50 quilómetros.
Autor de BD e de ilustrações para revista e jornais, a exemplo do “Le Monde Diplomatique” ou “A Ideia – Revista de Cultura Libertária”, André Ferreira publicou, em 2021, pela editora Chili com Carne, o livro A Fábrica de Erisícton. Uma obra inspirada num mito greco-latino, sobre um rei que um dia decidiu violar um bosque, cortando um carvalho sagrado, o que lhe valeu, atribuída pelos deuses, a maldição de um apetite devorador, impossível de apaziguar. A escolha do enredo está, diz o autor, associado à perda ecológica provocada pelas culturas superintensivas que hoje se praticam: “Eu fiz uma associação desse mito com que está a acontecer à natureza, no Alentejo, com os olivais antigos a serem destruídos pelo Homem para serem substituídos por olivais intensivos. Um alerta para que o Alentejo não se devore a si próprio, tal como Erisícton, amaldiçoado, o fez”.
Para o autor, “todas as pessoas que fazem BD ou se interessam pela arte têm muito carinho por este festival, que acontece numa pequena cidade, em que as pessoas têm oportunidade de falar umas com as outras, proporcionando parcerias, criadas em Beja, entre autores, desenhadores e argumentistas”.
Além disso, afirma, “o festival é incrível para a projeção internacional da cidade – eu todos os anos vou a Angoulême [França], onde ocorre o maior festival de BD do mundo, e converso com autores de muitos países que têm o festival de BD de Beja como referência. Se calhar, em Beja, as pessoas não tem essa perceção”.
RITA CORTÊS
“Quando o Toupeira foi criado tinha os meus filhos ainda muito pequeninos e não conseguia estar sempre presente nos ateliês, duas vezes por semana. Comecei a ir aos poucos e depois de forma regular, a partir de 2011”, diz Rita Cortês, ilustradora. Ao coletivo de desenhadores da Casa da Cultura de Beja levou-a a paixão de sempre pela banda desenhada, revela: “Eu aprendi a ler com livros de BD, o meu pai era leitor e comprador assíduo e eu cresci rodeada desses livros. O prazer que me lembro de sentir em criança pela sua leitura mantém-se, claramente, ainda hoje”.
Um enlevo que se manifesta nos trabalhos que continua a publicar no “Venham + 5” e nos ateliês de desenho que leciona no Colégio Pedro Nunes, em Lisboa, nos quais pretende passar, aos seus alunos, o gosto pela BD – “esse é, também, um dos meus objetivos”.
A viver em Lisboa, desde há dois anos, Rita Cortês, ilustradora reconhecida, premiada, em 2018, com o Prémio Internacional de Ilustração Científica e da Natureza Illustraciência, de Espanha, com o trabalho sobre o ciclo de vida do maior escaravelho da Europa, a vaca-loura (Lucanus cervus), diz que o facto de estar na capital não significa ter cortado o cordão umbilical com o Alentejo, “nem por sombras – vou regularmente a Beja, continuo a ajudar a fazer a montagem do Festival [Internacional de Banda Desenhada de Beja] e irei estar presente na sua inauguração, tal como sempre estive, desde o seu início”. Requisitada por várias instituições e empresas, a autora não se dedica a tempo inteiro à BD pela dificuldade de ser financeiramente compensatório, “embora, gostasse muito”, sublinha.
Sobre o festival de BD, a ilustradora considera que “tem uma importância fundamental” para Beja, na medida em que atrai inúmero público, nomeadamente artistas internacionais que divulgam posteriormente, nos seus países, não só o festival – “considerado por muitos como o melhor festival de BD de Portugal, muito mais intimista e aprazível do que o da Amadora, que é aquele com que se faz sempre a comparação” – como a cidade. Nesse sentido, considera que a Câmara de Beja, “que é a organizadora do evento, devia rever bem a importância que o festival tem, a esse nível”.
Ainda no aspeto da atração turística, relacionada com o tema da BD, Rita Cortês deseja que o anunciado museu de BD de Beja possa, brevemente, vir a abrir portas: “Seria fundamental, há uma coleção riquíssima guardada em caixas, à espera de ser exposta. À exceção da Ovibeja, da Beja Romana e do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, eventos pontuais que acolhem muitas pessoas, a cidade não tem mais nada que atraia. E este museu atrairá, com certeza, muitos turistas, ao longo de todo o ano”.