Simão, Julião e S Kamara são três dos rostos que, nos últimos anos, chegaram ao Alentejo na esperança de refazerem uma vida que traziam perdida. De onde vieram deixaram pais, mulheres e filhos, sem datas prometidas de regresso. De percalço em percalço foram fazendo das planícies alentejanas a sua “casa” e, neste momento, é cada vez mais difícil abandoná-las. O “Diário do Alentejo” foi conhecer as histórias de quem tem tanto para contar de um país que não é o seu.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
Na antiga estação de caminho-de-ferro do Carregueiro, no concelho de Aljustrel, o vai e vem de comboios há muito que se deixou de fazer notar. As ervas, que crescem livremente, tomam conta da vasta linha que une as estações de Beja e Funcheira e que divide, silenciosamente, a aldeia. Simão dos Santos e Julião Oliveira olham-na todos os dias. Nunca a viram a funcionar. Pouco ou nada sabem dela, mas veem-na, assim como ela foi durante muitos anos, como um ponto de partida para uma nova vida.
Simão tem 30 anos. Chegou a Portugal a 27 de outubro do ano passado com uma licenciatura em Economia e Empreendedorismo pela Universidade da Paz, em Timor-Leste, e com a esperança de encontrar melhores condições do que aquelas que deixou em Halecou, a sua aldeia natal. “Em Timor não há trabalho, eu estava nas obras e por isso é que vim para cá”, conta o jovem ao “Diário do Alentejo” (“DA”).
Diz ter sido o próprio a tomar a decisão de emigrar para Portugal e comprar o seu bilhete de avião influenciado por uns “amigos” que estavam na localidade de Salvada, no concelho de Beja, e que lhe garantiram que “havia trabalho com um patrão marroquino”.
“Enquanto estive na Salvada trabalhei na azeitona, na limpeza de ervas e na química, mas depois houve um problema com o patrão marroquino… Deixou de nos pagar e ficámos sem dinheiro para pagar a casa onde dormíamos e tivemos de sair e ficar na rua”, relembra.
Com o tempo muito presente na sua memória, sabe que ele e os seus companheiros não estiveram mais do que “dois ou três dias” sem teto. O passar das horas pareceu interminável. Longe da família, num país que apenas conhecia há dois meses, debaixo de um inverno rigoroso e sem saber o que esperar no dia seguinte, Simão confessa que esse foi “o momento mais difícil” por que passou desde que chegou a Portugal.
Com ele estava Julião, de 28 anos, chegado ao País a 19 de julho desse ano. “Vim para Portugal procurar um trabalho melhor. Estive em Lisboa, em Beja, trabalhei em Santarém e voltei para Beja, ou melhor, para a Salvada, mas aí nunca cheguei a trabalhar até irmos para a rua”, recorda.
À semelhança do seu conterrâneo Simão, também Julião diz, num português tímido, que aprendeu num mês de aulas informais, que viu no sul da Europa uma “solução” para a sua família e que, por isso, foi dele que partiu a iniciativa de deixar o seu país e tentar a sua sorte num outro sítio.
“Sinto muitas saudades da minha filha… É muito difícil, mas é a vida”, diz, sem tirar os olhos do chão, numa tentativa de se resignar.
O CONFORTO
Completamente abandonado à sua sorte, o grupo composto por 15 timorenses, entre os quais estavam Simão e Julião, foi acolhido na antiga Casa do Estudante, sob a alçada da Cáritas Diocesana de Beja. Embora quisessem, acima de tudo, voltar a trabalhar para ganhar autonomia e enviar “algum dinheiro” para os seus, reconheceram que “o importante, [naquela altura], era ter uma casa para dormir, poder tomar um banho e comer”.
Com os sorrisos que, diz quem os conhece de perto, nunca perdem, recordam o dia 14 de dezembro de 2022 como um “dia feliz”. O dia em que, pela primeira vez, se sentiram acarinhados e protegidos por quem não conheciam.
Este sentimento é também partilhado por Abelulai S Kamara. O jovem de 35 anos, natural de Kissi, na Serra Leoa, vive em Portugal há seis anos e ao “DA” conta a dificuldade que foi até se sentir, finalmente, “em casa”.
“Na Serra Leoa trabalhava numa bomba de gasolina, mas acabei por vir, em 2017, sozinho para Portugal à procura de uma boa vida. Sem conhecer ninguém. Estive em Lisboa três meses, na Bobadela, e depois em outubro vim para Beja e nunca mais saí”, começa por explicar.
Ao longo dos últimos anos, S Kamara, como é conhecido entre os colegas e amigos, trabalhou no campo, na “firma de um paquistanês”, e nas obras da rua junto ao castelo de Beja.
“Quando estive em Lisboa não trabalhei, porque era muito difícil encontrar um trabalho, mas quando vim para Beja comecei logo a trabalhar no campo. Tive um patrão que nos levou para Baleizão [no concelho de Beja], estive lá sete meses, mas depois eu estava muito cansado da vida de trabalho-casa, casa-trabalho e precisava de vir morar para a cidade. Então, um dia, disse: ‘já chega, eu não quero mais esta vida’”, recorda entre risos.
Mais tarde, soube por um amigo que a herdade do Vale da Rosa, em Ferreira do Alentejo, precisava de trabalhadores. “Estive ali dois anos e tal até começar a covid-19”. Contudo, há dois meses, com a ajuda da Cáritas de Beja, foi chamado novamente pela empresa de produção de uvas de mesa.
Contrariamente a Simão e Julião, S Kamara nunca sentiu que o seu “calcanhar de Aquiles” fosse o emprego, mas, sim, a questão da habitação. “A minha maior dificuldade quando vim para cá foi arranjar casa. Em Beja não conseguia apanhar nenhuma”, diz. Assim, também a Cáritas de Beja lhe deu a mão, desta vez, encontrando-lhe uma casa nas “portas de Mértola”, onde vive há três anos.
A ADAPTAÇÃO
Neste momento, S Kamara está numa fase de vida diferente de Simão e Julião. A sua estabilidade profissional e, consequentemente, financeira, permitiu que, há dois anos, a mulher e os três filhos viessem morar consigo.
“No dia 31 de agosto de 2021 a minha mulher e os meus filhos vieram para cá, mas antes, quando eles ainda estavam na Serra Leoa, eu dizia-lhes que a vida cá era melhor do que a que nós vivíamos na nossa terra”, conta. E acrescenta: “Quero continuar aqui [em Portugal], e ir lá só de visita. Quero ir lá um mês ou dois, mas depois quero voltar para cá, porque gosto muito de estar em Portugal, gosto muito de estar na terra que abre portas para tudo. Para mim, Portugal é muito bom. Desta experiência toda só tive dificuldades no primeiro ano, mas quando saiu a primeira carta de residência e conheci a Cáritas ficou tudo melhor”.
Para o jovem, a vinda da família para Portugal foi um alívio em vários aspetos, principalmente, para a saúde da esposa. “A minha mulher tem um problema de visão e estava muito doente e com muitos problemas quando chegou, mas agora, com o sistema de saúde de cá, já está boa”, alude.
Simão e Julião ainda não conseguem prever quando conseguirão trazer os seus para o país que os acolheu. Desde o início do ano que estão empregados numa empresa de construção civil encarregue de recuperar os edifícios adjacentes à antiga estação do Carregueiro, onde também habitam. Contudo, o futuro permanece incerto.
Dizem que de vez em quando, ao final da tarde, vão até ao único café da localidade comer uns petiscos. Falam, com os olhos a brilhar, do senhor Rui, um habitante que os “acolheu” desde o primeiro dia e que não falta com o cumprimento diário. Embora a língua ainda seja um entrave, porque “o português tem muitas conjugações” e é sempre mais fácil ouvir e compreender do que falar, o intuito dos jovens timorenses é permanecerem cá.
S Kamara, já com alguma distância, explica ao “DA” que “a primeira vez que entramos numa terra que não é nossa, a primeira coisa que temos de aprender é a língua, porque isso é muito importante”. No seu caso, o contacto com a cultura portuguesa, em particular com o fado de Ana Moura, e com os próprios portugueses, foi a chave que lhe permitiu uma melhor adaptação ao País.
“Eu entrei aqui em 2017 e não sabia nada. Lembro-me que uma vez, no Vale da Rosa, o chefe do grupo dizia-me: ‘S Kamara, anda cá’ e eu não percebia, só depois com sinais com as mãos é que percebi que era para ir ter com ele. Por isso, na semana a seguir levei uma caneta e um caderno e comecei a perguntar: ‘Isto é o quê? Mangueira’, e escrevia, ‘isto é o quê? Cadeira’, e escrevia, ‘isto é o quê? Rama’, e escrevia”, lembra. “A música portuguesa também me ajudou muito. No início ouvia Ana Moura, porque ela canta muito bem, mas não entendia o que ela dizia e então comecei a ir à Internet escrever a letra, ver a música e cantar até começar a perceber”.
Simão e Julião parecem também já ter notado o poder da música. Pediram ao patrão uma viola para “treinar uns acordes” e este trouxe-lhes também uns tambores. De vez em quando, com a linha do comboio como pano de fundo, fazem soar umas melodias, ora mais agitadas, ora mais calmas, consoante os estados de espírito de cada um.
A ferrovia, inutilizada há mais de uma década, serve também ela de espelho daqueles que como Simão, Julião e S Kamara já não querem partir. A agonia, o desconhecido e a incerteza que traziam foram-se apaziguando e, embora deixem algumas mazelas, já não lhes aparecem diariamente no pensamento. No final, no meio do caos, das burlas e das ilegalidades, com os olhares e as mãos certas, criam-se histórias de superação e de felicidade.
“Agora estou muito feliz!”, conclui Julião.
INTEGRAÇÃO PROFISSIONAL ESTÁ A DAR FRUTOS
A Cáritas Diocesana de Beja, através do “Incorpora”, um programa financiado pela Fundação La Caixa e que tem como parceiro o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), já integrou profissionalmente, entre janeiro e maio deste ano, 26 pessoas, sendo que, destas, apenas quatro são de nacionalidade portuguesa.
“O ‘Incorpora’ é um programa de intermediação laboral, com o grande objetivo de, por um lado, permitir que as empresas possam exercer a sua responsabilidade social dando oportunidades a pessoas que tenham algum tipo de vulnerabilidades e, por outro, possibilitar a estas mesmas pessoas ter mais facilmente acesso ao mercado de trabalho”, explica ao “DA” a técnica de prospeção empresarial da Cáritas de Beja, Helena Saiote.
Assim, até ao dia 15 deste mês, estavam a ser acompanhadas pela instituição 51 pessoas, 22 transitadas do ano passado. A maioria das integrações efetuadas, durante este ano, diz respeito a homens (20), com uma média de 34 anos, com o ensino secundário completo e naturais de Timor-Leste, Angola, Brasil, Guiné-Bissau, Senegal, Serra Leoa e Turquia. Em relação às áreas de empregabilidade destacam-se a construção civil (oito), o setor social (sete), a proteção civil (cinco), a agricultura (dois), a hotelaria (dois), a indústria (um) e o comércio (um).
“O slogan do programa tem sido para nós muito visível, ou seja, ‘empregos que mudam vidas’. O ‘Incorpora’ abre portas, porque permite que as pessoas que estão em situações de vulnerabilidade consigam ter o seu ordenado e, consequentemente, uma vida digna. Nós, Cáritas, não fazemos caridade, mas, sim, proporcionamos às pessoas as ferramentas necessárias para contribuirmos para a sua dignidade integral”, conclui Helena Saiote.
A nível nacional o programa “Incorpora”, em 2022, permitiu atender 5303 pessoas e, destas, integrar 1672, com 892 empresas participantes e 3271 ofertas de emprego angariadas.