O “Luiz da Rocha” comemorou ontem, 25 de maio, um centenário e três décadas desde que abriu as suas portas ao público, nesta data, em 1893. Volvidos 130 anos, o estabelecimento – café/ /pastelaria/restaurante –, ex-libris da cidade e uma referência nacional da doçaria, continua a acolher clientes assíduos e a receber a visita de muitos outros, pontuais, atraídos pela fama das suas excelsas doces iguarias.
Texto José Serrano
A porta giratória de metal pela qual entramos dá acesso ao burburinho das conversas que se desenrolam nas antigas mesas de tampo de mármore escuro, a vozearia misturada com o chocalhar das chávenas de café transportadas em bandejas por empregados trajados de camisa azul claro, com o tilintar das colheres que adoçam as bicas curtas e cheias matinais e o contínuo entra e sai de pessoas de muitas idades que avançam na fila do balcão de pastelaria, tentadora.
Ligado a todo este movimento ininterrupto da manhã parece estar Luiz da Rocha – o próprio –, calvo e de bigode curvo, circunspecto e garboso no fato e gravata riscada que enverga na fotografia que o homenageia, fixada numa das paredes da ampla sala do reconhecido estabelecimento homónimo, café/pastelaria/restaurante, que há 130 anos fundou.
Uma data que se comemorou ontem, dia 25 de maio, e cujo respeitável número de velas de aniversário sopradas estará relacionado com a excelência da pastelaria própria apresentada.
“Uma referência nacional que, desde há muito, passou as fronteiras da cidade e da região, até mesmo as do País, porque são muitos os emigrantes que levam os nossos doces por esse mundo fora, onde são sempre elogiados. Esta notabilidade, proveniente da qualidade dos nossos produtos, tem sido o suporte para comemorarmos, orgulhosamente, tantos anos de existência”, refere António Leandro, de 73 anos, trabalhador da casa desde há 50 e atual presidente do conselho de administração do “Luiz da Rocha”, que funciona como cooperativa – Os Trabalhadores Unidos Cooperativa de Atividades Hoteleiras – desde 1976.
“Nesse ano, em que se vivia ainda a ebulição da Revolução, as pessoas retraíam-se muito no consumo e começou a haver ordenados em atraso. Os quatro sócios proprietários, à altura, pessoas relevantes da cidade, disseram-nos, aos 38 empregados que aqui trabalhávamos, que não conseguiam suportar as despesas, decidindo transferir para nós o estabelecimento. Depois disso, os antigos donos continuaram a vir aqui, quotidianamente, como clientes, sempre em harmonia connosco, sem quaisquer problemas ou inimizades. Mas ainda há pessoas que pensam que nós roubámos isto…”, lamenta António Leandro.
Polémicas à parte, o “Luiz da Rocha” continua hoje a constituir-se por um número de empregados semelhante ao ano da sua constituição como cooperativa – “estão aqui, regra geral, 40 trabalhadores” –, homens e mulheres, alguns vindos de escolas profissionais, a maioria com habilitações profissionais ou académicas sem qualquer relação com a atividade até ali chegarem.
“Uma pessoa que tenha vontade de aqui trabalhar, embora não esteja formado na área da restauração, depressa aprende o ofício com a ajuda dos mais velhos, que são os professores deles para esse efeito. Às vezes recebemos pessoas provindas de ramos completamente diferentes. Engenheiros agrónomos, informáticos e outros licenciados têm passado por aqui, temporariamente, a desempenhar várias funções, aprendendo a servir ao balcão, às mesas, a confecionar bolos, enquanto não encontram trabalho nas suas áreas”.
Subindo as escadas até ao segundo andar, entrando na “fábrica” de pastelaria e doçaria, encontramos quem perfeitamente se enquadra no relato de António Leandro – o saber adquirido através da contínua prática do labor e do conhecimento transmitido pelos mais experientes.
No espaço, envolto num odor açucarado que se eleva no ar aquecido pelos vários fornos que se encontram a cozer pastéis de nata, palmiers, triângulos, parisienses, queijadas e muitos outros “doces pecados”, estão sete homens vestidos de branco a trabalhar, touca a condizer, recheando com ovos-moles, polvilhando com açúcar em pó, amassando a massa, preparando o doce fino, atentos às várias temperaturas exigidas e ao rigor dos pormenores impostos pela doçaria tradicional.
À exceção dos domingos, encontram-se ali todos os outros dias da semana, chegados ainda antes de soarem as sete da manhã e ali permanecendo “até se acabar o serviço”, por volta das duas, três horas da tarde.
“Aqui todos foram ensinados pelos mais velhos”, diz Ivo Manguito, de 48 anos, trabalhador da casa desde os 17, que subiu, “aprendendo com outros mestres”, desde aprendiz, quando ali chegou, até mestre pasteleiro, função que hoje desempenha. É ele um dos dois artesãos do afamado porquinho-doce da casa, ex-libris do n.º 61 da rua Capitão João Francisco Sousa, feito à base de amêndoa, gila, açúcar, ovos e cacau.
De acordo com o mestre, o sucesso desta iguaria mantém-se através do cumprimento da receita tradicional, da qualidade dos produtos utilizados na confeção e da feitura manual do formato minucioso do “animal”, que chega a constituir-se, nas alturas do Natal e da Páscoa, em “varas” de nove centenas de porquinhos vendidos. O outro escultor doceiro é Celso Graciano, de 34 anos, que ali tem aprendido, desde os 18, da arte da doçaria “a saber fazer um pouco de tudo, através da ‘escola do trabalho’”.
Avança: “Fui ensinado pelo chefe Ivo a fazer a modelação do porquinho doce. É um grande dever, mas eu já tenho o molde ‘feito’ na mão – cada porquinho que faço é diferente de todos os outros, mas no final parecem todos fotocópias”.
Da preparação diária de um outro doce icónico da secular casa está incumbente Vasco Caixeiro, de 29 anos, o único pasteleiro atualmente a fazer as famosas trouxas de ovos do “Luiz da Rocha”, reputação exportada todas as semanas para Lisboa, onde o doce conventual pode ser apreciado à mesa de restaurantes de renome como o Gambrinus, o Pinóquio ou o JNcQUOI.
Uma iguaria que nas alturas festivas ultrapassa as 8000 unidades confecionadas e da qual Vasco Caixeiro é o singular guardião do seu segredo, efetivamente, posto em prática: “Quem me ensinou foi uma antiga pasteleira [Ana Teixeira] que aqui trabalhava e que, vendo-se doente, me foi ensinando a receita, os vários passos para fazer este doce, corretamente. Infelizmente, a senhora morreu pouco tempo depois de me instruir [em 2019]. Sei que tenho uma enorme responsabilidade e sinto que vai sendo altura de passar este saber a mais alguém, pois só uma pessoa a fazer isto é complicado…”, considera o pasteleiro. Sobre o insigne doce António Leandro conta uma história acerca da sua reputação: “Numa entrevista, questionado sobre qual seria o seu desejo quando chegasse ao céu, o padre Vítor Feytor Pinto [1932/2021] respondeu que gostaria de voltar a saborear trouxas de ovos e que as mesmas fossem daqui. Isto tem o seu peso”, sublinha.
Bolos começam agora a ser retirados do forno, colocados num grande tabuleiro que Pedro Oliveira, de 39 anos, transporta, com uma só mão, num equilíbrio seguro, treinado de apenas três meses: “Trabalhava num restaurante em Lisboa, mas o custo de vida lá, em particular, o que pagava de renda de casa, obrigou-me a pensar em ir para outra terra. Vim para Beja, propus-me trabalhar aqui e fui aceite. Tenho aprendido muito e estou agradecido à casa, que me ajudou numa altura difícil”.
O ajudante de pasteleiro, descendo as escadas numa verticalidade angular de 90 graus com o tabuleiro horizontal sobre a touca branca, tem o balcão de pastelaria, no rés-do-chão, como seu destino, não sem antes passar por outro “departamento” do secular estabelecimento – o restaurante, situado no primeiro andar. Lá, encontramos Romilson Almeida, de 32 anos, há 12 em Portugal e há uma década ali a trabalhar, vindo da sua terra natal, Santo Antão, a ilha mais ocidental de Cabo Verde. Com o curso profissional de restaurante e bar, Romilson é hoje o presidente da mesa da assembleia-geral da cooperativa, dizendo sentir-se já, “também, alentejano”, confessando o seu orgulho em “trabalhar nesta casa”, elogiando a simpatia das pessoas e confessando o seu gosto pelo entoar, ele próprio, de modas do cante.
Desde que aqui está já serviu à mesa inúmeras figuras públicas, como Herman José, Pedro Abrunhosa, António Zambujo, Fátima Lopes ou Ana Moura. Por ele servidos, também a república e a monarquia já “almoçaram” nesta sala, representadas por Marcelo Rebelo de Sousa e Dom Duarte de Bragança.
O que do cardápio terá sido escolhido pelos “famosos” diz já não se recordar, mas considera provável poder ter sido um dos pratos emblemáticos do restaurante, a exemplo do ensopado de borrego, do bife à Rocha ou da açorda alentejana. Talvez o gaspacho com carapaus fritos, se na canícula tenham vindo.
Chegado o grande tabuleiro ao rés-do-chão, os bolos ainda quentes são cuidadosamente colocados na vitrina do balcão, dificultando a escolha, perante tantas sedutoras iguarias, a quem na fila espera a sua vez de ser atendido. Também há quem reflita indeciso sobre este momento desde os lugares sentados da sala – “onde, um dia, também, Amália Rodrigues esteve” –, todos ocupados. Uma clientela, em grande parte, “assídua do café e do restaurante”, mas também constituída por pessoas que de regresso à cidade, de férias ou de fim de semana, “não passam sem aqui marcar o ponto”. Ou ainda por quem “vem aqui pela primeira vez, recomendado por outros, à procura da qualidade dos produtos da nossa marca”, valoriza António Leandro.
“O que eu peço é que isto se prolongue por mais 130 anos”, diz, esperando que as crises, “que de há uns anos para cá encalham umas nas outras”, sejam sempre ultrapassáveis, “como tem sucedido”, mostrando-se, contudo, notoriamente preocupado com costumes perdidos, em detrimento de outros novos.
“Há alguns anos, não muitos, o hábito de beber a bica a ler o jornal era uma imagem impossível de não encontrar quando se entrava nesta sala. Agora já vai sendo difícil ver-se uma pessoa com o jornal aberto”.
E revela-nos a fotografia contemporânea, de uma sala centenária de café, que prevalece: “A tomar o pequeno-almoço estão duas ou três pessoas numa mesa, cada uma agarrada ao seu telemóvel – um aparelhómetro que se sobrepôs, e de que maneira, ao costume do diálogo entre as pessoas à mesa do café”. E num olhar abrangente sobre a sala recorda “as muitas tertúlias” enérgicas que ali existiam, destacando, uma a uma, várias mesas: “Ali era a tertúlia da política, acolá a do futebol, aqui foram modas e bordados, ao fundo era a da má-língua. Agora estão reduzidas aos mínimos. Tudo fica limitado àquele ecrã”.
Ainda assim, há quem vá resistindo aos isolacionistas “tempos modernos” comunicacionais, continuando a cultivar o salutar hábito de confraternizar à mesa do café, tal como Luís Fragoso, de 73 anos, ex-gerente bancário, frequentador do “Luiz da Rocha” desde há muito.
“Já em miúdo vinha aqui com o meu tio, funcionário público que trabalhava no edifício do governo civil. Não nos sentávamos. Comprávamos um bolo ao balcão e saíamos”. Isto porque, “antes do 25 de Abril, predominava uma elite neste café – lavradores, o comandante da Polícia, o comandante do quartel da GNR, o homem da PIDE… não era qualquer pessoa que entrava e se sentava aqui. E só os homens o faziam, não me recordo de, nesses tempos, ver aqui senhoras”.
Após a Revolução, “tudo isso mudou, deu-se uma transformação benéfica”, começando o café a receber, sentados à mesa, “homens e mulheres, jovens e mais velhos, de todas as classes sociais, tal como hoje”, diz Luís Fragoso que, regressado da guerra colonial, em 1974, frequenta o estabelecimento num ritmo quotidiano. “Desde que esteja em Beja, venho todos os dias ao ‘escritório’, tal como eu e os meus amigos, que aqui bebemos o nosso café, de manhã, gostamos de chamar ao ‘Luiz da Rocha’”.
Um grupo que compunha uma tertúlia, não há muito, de cerca de 12 companheiros, “bancários, professores, agricultores, empresários…”, que discutia e comentava “as notícias da véspera e as do dia, destacadas no jornal matutino que um ou mais de nós sempre comprava”, relembra. Pela ordem natural da vida, as duas mesas que a tertúlia ocupava foram, paulatinamente, sendo esvaziadas e hoje o grupo ocupa uma só, continuando a reunir-se todas as manhãs no café “que é o ponto de encontro dos amigos e que faz parte da história de todos nós”, sublinha.
Um outro habitué é Arménio Salgueiro, de 67 anos, militar da GNR reformado, natural de Fafe, a viver em Beja – “aqui casei e por cá continuei” – desde o início da sua carreira. “Praticamente venho todos os dias ao ‘Luiz da Rocha’. Encontro-me aqui de manhã com mais dois amigos, já reformados, também. Bebemos o nosso cafezinho, às vezes acompanhado de um pastelinho de nata, e discutimos futebol, falamos de política, da guerra na Ucrânia…”.
O militar acentua a importância da conversa e do reencontro matinal no café: “Aqui acabamos por encontrar sempre pessoas que conhecemos, que cumprimentamos. É bom as pessoas cumprimentarem-se e saberem que se conhecem”, considera.
Acerca do estabelecimento, Arménio Salgueiro diz ser de extrema importância para a cidade e para a sua divulgação: “Da sua relevância, dou-lhe a nota máxima. Ainda noutro dia fui a uma consulta a Lisboa, e o médico, sabendo que eu vinha de Beja, perguntou-me se conhecia o delicioso porquinho-doce do ‘Luís da Rocha’. Se eu conhecia, veja lá”, refere, sorridente.
Da importância do estabelecimento aniversariante – “o ‘nosso’ café” –, discorre o casal Hélio Bernardino, de 59 anos, engenheiro de infraestruturas, e Conceição Pires, enfermeira no hospital de Beja, seus clientes habituais: “Esta instituição, que consegue abranger diversos segmentos de clientes, agregando todos os estratos sociais no mesmo espaço (é difícil outros estabelecimentos conseguirem fazê-lo), constitui-se como um importante património de identidade e memória da cidade, sendo determinante para Beja. A sua descontinuidade acabaria por afundar o centro histórico. Por isso é fundamental lutar por manter esta unidade, dando-lhe uma imagem ainda mais atraente, mais apelativa, numa lógica antiga”, enfatizam. Dessa forma, dizem ser importante proceder-se a “um trabalho cirúrgico de conservação, à semelhança do que tem acontecido com outros estabelecimentos semelhantes, no País, em que os nossos olhos encontram nas cores reavivadas a imagem de uma higiene e de um contexto modernos, mantendo-o incólume na sua essência, no mobiliário, no funcionamento, no tipo de portas”.
É precisamente do lado de lá da porta giratória de entrada que, sentados na esplanada aquecida pela manhã de sol, três amigos, João Marques, Cláudia Tomaz e Tânia Mendes, “todos na casa dos 20 anos”, conversam animadamente enquanto bebericam os seus cafés. Trabalhadores do comércio, reúnem-se amiúde aqui, antes de entrarem ao serviço.
“É o nosso café de eleição. Lembro-me desde sempre de aqui estar com os meus avós e agora, que vivo e trabalho nesta rua, venho ainda mais, num contexto, obviamente, diferente. Acho isso engraçado”, refere João Marques.
Dos encontros matinais diários, “de 10, 15 minutos”, o trio de amigos diz agradar-lhe o pôr a conversa em dia – “falamos de tudo um bocadinho, do trabalho mais do que devíamos falar” –, a qualidade dos bolos – “queques e empadas de requeijão é o que mais pedimos” –, o sabor do café e a cumplicidade personalizada que, pela frequência da visita, se gera com os empregados.
“Como vimos aqui muito já sabem os gostos de cada um de nós. Eu, de manhã, tomo sempre um abatanado e nem o preciso pedir, que ele chega rapidamente à mesa”, diz João Marques. “Gostamos de estar aqui neste café centenário e gostamos de o recomendar, também. Ao fim e ao cabo, quando alguém de fora se refere a Beja alude ao seu castelo e à doçaria do ‘Luiz da Rocha”’, conclui Cláudia Tomaz. “É quase um monumento”, reforça João Marques.
Sobre o futuro, a curto prazo, desta “joia patrimonial” da cidade, António Leandro informa que o plano é proceder a alguns trabalhos de remodelação, “retoques que vão sendo necessários dar, de maneira a que a casa fique mais apresentável, sem alterar a sua linha”.
Uma revitalização que “já deveria ter acontecido”, impossibilitada pela pandemia, “que levou todo e mais algum do pé-de-meia poupado, previsto para esses gastos. Agora temos que esperar mais um pouco…”. E conclui, enquanto pela porta giratória continuam a “rodar” clientes, sublinhando o seu desejo que “o hábito de ir ao café nunca se perca”.