Diário do Alentejo

“Vamos fazer um musical”

21 de maio 2023 - 11:00
Peça de teatro protagonizada por crianças estreou no dia 25, no Pax Julia Teatro Municipal, em Beja
Foto | Fátima SilvaFoto | Fátima Silva

Gozava-se o período de férias de Páscoa nas escolas portuguesas. Em cima do palco da Casa da Cultura de Beja havia uma azáfama anormal de crianças. Estavam de papéis em punho, trauteando a letra de uma canção pouco conhecida do grande público.

 

Em baixo, a marcar-lhes os ritmos, a afinar-lhes os movimentos, a responsabilizar-se e a responsabilizá-los pela importância do ato, encontrava-se a dramaturga, encenadora, atriz e performer Gisela Cañamero, a professora Fátima Silva e a avó Helena Moreira. Comentava-se que no dia 25 de maio tudo teria de estar nos eixos, dia de estreia da peça de teatro “Vamos fazer um musical”.

 

É o dia em que os meninos e meninas, da turma B, do 4.º ano, da Escola Básica de Santiago Maior, pisam o palco do Pax Julia. É o dia em que a cor, o som e as emoções do espetáculo se atracam ao público. É o dia em que o sonho se veste de realidade. E antes do grande momento eclodir, o “Diário do Alentejo” foi saber mais do projeto, conhecer as ideias e as pessoas que o tornaram possível. E conhecer os protagonistas do musical feito formação.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

Fátima Silva, a professora, com um histórico intimamente ligado aos livros, às histórias contadas e à dinamização de projetos culturais na Biblioteca Municipal de Beja José Saramago, assume-se, neste projeto de formação artística, como assistente à produção, assegurando que nada falta e mediando a comunicação entre a produção, os pais e a escola.

 

Mas ela é mais do que isso, ela é um dos pilares chave da iniciativa, o primeiro a ser erguido ainda na dimensão onírica do projeto.

 

“A ideia existe desde sempre na minha cabeça. E surge todos os anos, mas nem sempre se consegue concretizar, a não ser através de pequenos projetos ‘caseiros’ para partilhar com outras turmas ou nas festas de fim de ano letivo. Mas as crianças merecem mais!”.

 

Mas para que esse “mais”, que as crianças merecem, ser uma realidade, é necessário que as vontades se casem com as oportunidades.

 

“No ano letivo transato pensei num projeto nesta área para os três quartos anos da minha escola, de modo a possibilitar aos alunos a oportunidade de dois anos de uma formação ‘à séria’ que culminasse num espetáculo de despedida do 1.º ciclo. Infelizmente, a pandemia não permitiu, ou outras razões priorizaram”, explica Fátima Silva, revelando, de seguida, como se deu, neste ano, o acaso feliz da junção da oportunidade à vontade: “Já tinha tido o privilégio de trabalhar com a Gisela Cañamero em duas pequenas produções, uma numa turma de 2.º ano na Escola Básica de Santa Maria e outra no clube de leitura ‘Papa Livros’, com um trabalho que foi apresentado na Gulbenkian. E eis que a Gisela me telefona, nas minhas férias de verão, a perguntar-me se ainda estava interessada em desenvolver a atividade, desta feita só com uma turma, neste caso a minha. Não hesitei e, com as autorizações devidas e pedidas à direção, começámos em outubro. A ideia do trabalho e do espetáculo foi-me apresentada, e a partir daí foi confiar, como sempre confiei, na excelência desta senhora! É um projeto bastante exigente e abrangente, daí ser necessário tempo, muito tempo”.

 

E tempo é o que estes alunos, famílias, professores e formadores artísticos têm investido no projeto, sacrificando férias, fins de semana e feriados. Um sacrifício feito de alegria e empenho em prol da arte das emoções. 

 

A peça é “um libreto de teatro musical preparado para ser interpretado por crianças, em voz e canto”, adaptado de modo a “proporcionar aos participantes um percurso de experimentação criativa e de prática artística, com a exigência da vivência em artes cénicas”.

 

Quem o explica é Gisela Cañamero: “Um percurso que engloba o processo de descoberta e de aprendizagem, e o produto, ou seja, a fixação e a apresentação pública”.

 

A encenadora esclarece também que o original é em inglês, que já terá sido representado noutros países, mas que se presume ser uma estreia absoluta em Portugal, e ousa levantar um retalho do véu sobre o argumento: “Neste libreto, os personagens, que são crianças, deparam-se, na sua escola, com a evidência de ficarem sem o professor de teatro para a produção anual da obra de teatro musical. Perante o problema, optam por não desistir, resolvendo elas mesmas lançar as mãos à obra!”.

 

O “Vamos fazer um musical” é um projeto que surge na linha do que tem sido o trabalho da Arte Pública – Associação de Artes Performativas de Beja, nomeadamente, as intervenções da sua diretora artística nas áreas da pedagogia das expressões, da educação artística e da criatividade.

 

“A vivência de um projeto nas artes performativas aporta às crianças e jovens o autoconhecimento e a capacidade de entenderem que o trabalho individual se insere e tem interdependências com o grupal. Além das questões expressivas e de desinibição corporal e vocal, assistimos a um crescimento e maturação emocional na sua relação com a tomada de consciência da responsabilidade própria e partilhada”.

 

E à perspetiva da diretora artística soma-se a da professora de todos os dias, Fátima Silva: “Hoje, mais do que nunca e por experiência própria, tenho consciência da importância que uma educação global tem para a vida futura das crianças, como parte integrante da sociedade em que estão inseridas. Este tipo de atividade, ministrada desta forma, por atores ou docentes com formação especializada, deveria ser ponto assente no currículo dos alunos. Esta formação tem permitido oferecer aos meus alunos a oportunidade de explorar a imaginação e a criatividade, estimulando a criação de novas ideias. Tem permitido explorar as suas emoções e pensamentos de maneira saudável e construtiva. Creio veementemente que o trabalho em expressão dramática, música e dança, pode ter um impacto positivo nas disciplinas curriculares dos alunos do 1.º ciclo do ensino básico. A participação nestas atividades pode contribuir para o desenvolvimento das habilidades socioemocionais, como a autoestima, a autoexpressão, a comunicação interpessoal e a colaboração em grupo. Estas capacidades podem melhorar o desempenho dos alunos noutras disciplinas, como matemática e linguagem”.

 

Os exemplos da relação benéfica entre o universo da arte da representação, a aprendizagem escolar e a sociedade, de acordo com Fátima Silva, são vários.

 

“A música pode ser usada para melhorar a compreensão matemática dos alunos, através da aprendizagem dos ritmos e padrões rítmicos. A música também pode ajudar a melhorar a memória dos alunos, uma vez que eles têm de memorizar letras e melodias de canções. Já a dança pode ajudar a melhorar a coordenação motora e a desenvolver habilidades físicas, bem como melhorar a expressão corporal e a autoestima. Também, através da dramatização de situações quotidianas, os alunos podem aprender a expressar as suas emoções e a compreender as dos outros. Este trabalho tem ajudado a desenvolver a capacidade de se colocarem no lugar do outro, a compreender melhor as suas perspetivas e a desenvolver a empatia, a autoconfiança e a autoestima. Promove igualmente a inclusão, permitindo que os alunos se expressem livremente e respeitem as diferenças uns dos outros. Os alunos aprendem a trabalhar com os outros e a apreciar a importância da colaboração”.

 

E para quem chama a si a responsabilidade maior sobre o sucesso artístico do projeto, a experiência de trabalho com os jovens artistas tem sido em ascensão, como refere Gisela Cañamero.

 

“A turma, pela diversidade dos seus elementos, representa um desafio do qual temos estado cientes desde as primeiras sessões de trabalho. Optámos sempre, seguindo o exemplo da sua professora titular, por entrever as possibilidades de crescimento individual, mesmo por parte das crianças mais inibidas, com maiores dificuldades em pisar território desconhecido, desconfortáveis à exposição pública ou à assunção de riscos. A evolução das crianças, através da vivência comunitária e de experimentação artística neste projeto, na sua maturidade, desinibição e capacidade de diálogo, tem sido muito notória”.

 

O MUSICAL TAMBÉM SE VIVE EM CASA

As transformações também não passaram despercebidas a Helena Moreira, avó da Beatriz e uma avó disponível, como a própria se define, e que fez uma pausa nas suas atividades quotidianas para estar em Beja a dar retaguarda aos ensaios no interregno da Páscoa.

 

“A evolução que vi acontecer, dia após dia, e em todos os alunos, foi magnífica. Cada vez mais nos é pedido que trabalhemos em grupo, e estes meninos e meninas aprenderam que só unidos vão conseguir levar em frente um projeto que os vai marcar para o resto das suas vidas. O sorriso que faziam quando eram aplaudidos mostrava bem a alegria que sentiam”, conta Helena, uma avó seduzida pela magia do projeto, e no qual só consegue vislumbrar virtudes.

 

 “Férias, fins de semana e feriados vão ter muitos durante o seu percurso escolar, já iniciativas como esta será mais improvável. Só consigo ver vantagens: espírito de entreajuda, concentração, trabalho de grupo, respeito pelo próximo, empatia, são alguns valores que devemos ter sempre presentes e eles são aqui transmitidos”, conclui.

 

E se, em cima do palco dos ensaios, a alegria e a exuberância estão presentes, fora do palco, nos bastidores familiares, não é muito diferente. Confidencia Hugo Vazeira, pai da Rita, que lá por casa a “artista” da família está sempre a cantar e a ensaiar e que até a mãe já sabe as músicas.

 

Sobre o projeto em si, considera que se trata de “uma iniciativa ‘fora da caixa’, mas bem aceite pelas crianças e pelos pais, onde estas têm a oportunidade de experimentar algo novo, em grupo, onde se entreajudam e se conseguem expressar de uma forma artística, e sentir que estão a fazer algo diferente, a criar algo que apenas estão habituados a ver na televisão e a apresentarem para o público.

 

E isso tudo faz com que se sintam valorizados. Pelo que presenciei nos ensaios em que estive presente, adorei, e acredito que no final serão aplaudidos de pé. O projeto ainda está no forno, ainda estão a ensaiar, mas quando estiver pronto será maravilhoso. É lindo aquilo que as ‘nossas’ crianças têm para nos apresentar, é um trabalho artístico fantástico com um elenco como nunca vimos na nossa cidade”.

 

Quem também leva a dinâmica do teatro para casa é o Diogo, e quem o revela é a mãe, Marina Doce: “Vejo a alegria que manifesta quando fala no musical, no que já fizeram e no que ainda têm para fazer, na tomada de consciência, gradual, que o projeto é uma ‘coisa séria’, [o] que mostra o trabalho que têm desenvolvido. Está mais consciente dele próprio, das capacidades, dificuldades e desafios. Tem alegria de ir para a escola, de trabalhar com os colegas. Estão mais unidos e cooperantes.”

 

Sobre o projeto, refere ser “muito interessante e completo a nível pedagógico, abrangendo vários saberes: o saber-saber, o saber-fazer, o saber-estar e o saber-ser”. Mas, Marina sublinha ainda a aproximação que se verifica entre os pais, a escola e a professora.

 

“Somos envolvidos de uma forma dinâmica no percurso escolar dos nossos filhos, fator fundamental para a promoção das relações, bem-estar, interesse e, consequentemente, sucesso escolar. As crianças aprendem de forma motivada, aprendem sem se aperceberem que o estão a fazer. Aprendem a fazer escolhas, aprendem a priorizar, e isso é uma riqueza enorme”.

 

Outro menino, outro ator, outra mãe, outra família e o mesmo entusiasmo. “Vejo que o Tomás, ao participar neste projeto, está um menino mais comunicativo, menos introvertido e muito interessado e curioso por todo o processo que está a envolver a sua participação”. A partilha é de Alice Galhardo, que considera “ser um privilégio os meninos estarem inseridos neste projeto”.

 

“Penso ser bastante interessante e benéfico para eles. A meu ver, eles irão melhorar a sua autoestima, irão conseguir estar mais unidos enquanto turma, podem ficar a conhecerem-se melhor entre si e será também bom para desenvolverem o espírito de entreajuda e de trabalho em equipa. Penso que para alguns deles poderá também ser importante, pois irão conhecer melhor as suas capacidades vocais e de atuação, e, quem sabe, ser o início de uma continuação ou de participação em outros projetos do género”, acrescenta.

 

Multimédia0Foto | Gisela Cañamero

 

OS MAIS PEQUENOS

Depois de escarafuncharmos nas ideias e pensamentos dos adultos intervenientes no projeto, chegámos às estrelas da companhia, ao elenco de atores e atrizes do espetáculo, em que um grupo de quatro, por falta de território jornalístico para mais, lá foi fazendo de porta-voz das emoções de todos. E foi assim que ficámos a saber que Madalena, com nove anos, desempenha três papéis na peça – Raquel, crítica e assistente de backstage –, que está a achar a experiência “simplesmente incrível”, que o momento que mais gosta é a canção dos críticos, que o decorar das falas é onde sente mais dificuldades e que quer ser designer quando for grande.

 

Já a Rita, que tem 10 anos e quer ser pediatra, desempenha o papel de Lili. Diz que aquilo que mais gosta são as músicas, que as dificuldades maiores vêm agregadas aos graves das músicas e que a experiência está a ser “incrível e única.”

 

Para o Diogo – que também tem 10 anos, interpreta o diretor Augusto, o alien e o crítico, e sente mais dificuldades na “parte dos críticos” –, a experiência de fazer teatro está a ser muito boa, sobretudo, a possibilidade de poder participar com os amigos nesta aventura no mundo do “faz de conta”.

 

Já a Sofia, com nove anos, que tem o sonho de ser professora e a quem coube a personagem de repórter de uma revista conhecida, confessa que no começo não gostava muito da ideia, porque tinha dificuldade em gerir a vergonha, mas que agora gosta imenso.

 

“Acho que fazer um musical é fantástico. Fascina-me a construção do teatro, as coreografias, as músicas e a nossa evolução. Mas com a data a aproximar-se sinto algum nervosismo”.

 

E porque a data que faz frio na barriga da Sofia e nas barrigas de todo o grupo está aí a espreitar, terminamos a viagem aos bastidores da peça de teatro “Vamos fazer um musical” desejando a todos, à moda das gentes da representação, “muita merda” para dia 25 de maio.

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