Diário do Alentejo

Maias

13 de maio 2023 - 09:00
Tradição milenar volta a cumprir-se no dia 13 nas "portas de Mértola"
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

“Um tostãozinho para a Maia que não tem saia”. Será este o pregão que amanhã de manhã se fará ouvir, repetidamente, no centro histórico de Beja, clamado por crianças ornamentadas de flores e vestidas de branco – são elas os protagonistas da Festa das Maias, tradição milenar comemorativa da primavera, que mais uma vez se realiza na cidade.

 

Texto José Serrano

 

Um lençol alvo aberto no chão de calçada portuguesa. Ao meio, num “trono” ladeado por folhas de palmeira, simbolizando a paz, a alegria e a fortuna, está sentada a Maia, deusa da mitologia romana, que deu nome ao mês em que nos encontramos. Ao seu redor, num plano não tão elevado, encontram-se os aios e as aias, simbolizando o povo.

 

O cenário da ação, todo ele enfeitado, está salpicado por múltiplas cores de abundantes flores silvestres e as personagens deste ancestral ritual, interpretadas por crianças vestidas de branco, símbolo da pureza, ornamentadas por coroas, pulseiras e colares florais.

 

Rapazes e raparigas que nos seus cestinhos de vime ou palma transportam malmequeres, margaridas e flores de giesta e de esteva, presenteando-as, junto com um pregão – “um tostãozinho para a Maia que não tem saia” –, a quem passa e as admira, em troca de uma dádiva dos transeuntes, que no final será, equitativamente, dividida por todos.

 

Esta é a Festa das Maias, tradição, que, contando com mais de dois milénios, volta, amanhã, dia 13, a ser interpretada, na rua Capitão João Francisco de Sousa (“portas de Mértola”), no centro histórico de Beja.

 

“Este é o património imaterial mais antigo da cidade”, diz Florival Baiôa, presidente da Associação de Defesa do Património de Beja (ADPBeja), entidade que desde o início da década de Oitenta do século passado, organiza o tradicional evento.

 

Uma tradição, ligada à sua principal essência de prece de boas colheitas, de festejo da primavera e do exaltar do desabrochar da natureza, que em Beja terá conseguido atravessar “pelo menos 2100 anos, o que não sucede com muitos rituais, que se vão distorcendo ou desaparecem por completo, por força do tempo”.

 

Uma relevante travessia histórica que resistiu a várias modulações e proibições – “Em Roma, as festas começaram a evoluir para um caráter sexual, demasiado escandaloso, e o próprio imperador romano Otávio Augusto [63 a.C./14 d.C.] acabou por dosear moralmente as festividades, e, em Portugal, D. Dinis [1261/1325] proibiu a festa das Maias, mas mesmo assim a população manteve-a, em alguns casos, pelas comunidades judaicas”, refere o historiador.

 

“Beja é a localidade do País onde esta tradição está mais enraizada e a única onde continua a permanecer com as ‘feições’ próprias da originalidade – em vários outros pontos há resquícios da génese, sendo que no Algarve é costume colocar bonecos de palha e na zona do norte um círculo de flores à entrada da porta de casa”.

 

As profundas “raízes patrimoniais desta festa” foram o principal motivo da necessidade de reavivar a tradição, pela ADPBeja, há cerca de 40 anos, esclarece Florival Baiôa: “Lembro-me, desde sempre, da existência de maias, em várias ruas e bairros da cidade, eu próprio participei. Nós, crianças, com o dinheirinho que ganhávamos comprávamos um malacueco ou dávamos uma voltinha no carrocel, na então Feira de Maio. Mas também havia nesse tempo, antes do 25 de Abril, maias adultas, que utilizavam o peditório festivo como ‘remendo’ para a pobreza que grassava nesta região e nesta cidade, servindo o dinheiro angariado para comprar uma saia ou uns sapatos. Depois da Revolução, houve um considerável aumento das condições financeiras da maioria das famílias e começou, de certa forma, a ser considerado preconceituoso, quase ultrajante, que as crianças continuassem a pedir uma ‘esmolinha’ e, dessa forma, deu-se um abrandamento da tradição”.

 

Assim, pouco depois da constituição da ADPBeja, em 1978, os seus responsáveis consideraram que “uma tradição milenar não podia acabar por falta de consciência histórica e patrimonial”, decidindo revitalizá-la.

 

Uma tarefa que Florival Baiôa afirma não ter sido difícil, “porque, em praticamente todas as famílias de Beja, havia pessoas que tinham sido maias”, que queriam muito reviver as boas memórias que a festa outrora lhes proporcionara e passar para os filhos e netos a tradição do festejo primaveril.

 

Desde aí, a comemoração encontra-se, novamente, “fortemente enraizada” na cidade, hoje, com as escolas e os comerciantes envolvidos na sua divulgação e preparação, contando com o apoio da câmara municipal e das juntas de freguesia da cidade, proporcionando a festividade “uma alegria e um orgulho transversais a toda a população bejense” que a acolhe “como marca fundamental de identidade e de memória”, acentua o responsável da ADPBeja.

 

“Esta tradição não se pode perder, tal seria um crime de lesa-património, e, como tal, é nosso dever perpetuá-la”, diz Florival Baiôa, incentivando a um mais enérgico e melhor articulado trabalho entre as instituições públicas e os cidadãos, com o objetivo de melhor a divulgar turisticamente, permitindo “atrair a Beja pessoas que procuram a autenticidade” das festividades únicas. “Como esta, que só existe aqui”, sublinha.

 

A TRADIÇÃO DAS MAIAS DE GERAÇÃO EM GERAÇÃO

A uma semana da festa, por entre um cliente que sai e outro que entra, Susana Maldonado e Telma Piçarra, da loja de artigos para o lar situada nas “portas de Mértola”, vão dando um pontinho mais, ora na saia, “comprida e muito simples, com uns ‘machos’ à frente para dar volume à cintura”, ora na “blusinha, mais justinha ao corpo, em que vamos aplicar uma florinhas campestres”, explicitam.

 

O figurino, “normal e simples”, será vestido por Margarida Flamino, de cinco anos, que amanhã participará nas maias, pela terceira vez, e que revela, sorridente e sem hesitar: “Gosto de tudo nesta festa – do vestido, da coroa, de estar com outras meninas e outros meninos, de entregar flores às pessoas e de receber o dinheirinho que me dão, que eu guardo no cestinho”.

 

Margarida é filha do comerciante da loja de telemóveis ao lado. As “costureiras” esclarecem que o seu envolvimento na criação do traje resulta do carinho que têm pela menina – “Ela é pequenina, toda bonitinha, qualquer coisa lhe vai cair bem” – e da amizade que têm para com os seus pais. Mas também por, desta forma, poderem participar ativamente nos festejos – “Um dia muito bonito”.

 

Dia que recorda a Telma a sua infância e o bairro de Beja onde cresceu, junto ao jardim público, e a Susana as várias participações, “ainda não há muito”, dos seus dois filhos, Márcia e Ricardo, como aia e aio.

 

“Não me quero desprender das felizes recordações que tenho desta festa, nem deixar de sentir a enorme alegria em ajudar a construi-la, trabalhando em conjunto para alindar as montras e a cidade, reavivando-a culturalmente, porque a cultura aqui está a ficar um pouco esquecida. Temos todos de agradecer à ADPBeja o seu trabalho de trazer, aos mais velhos, a lembrança dos seus tempos de criança, e, aos mais novos, o conhecimento das tradições ancestrais da cidade, revigorando-as”, destaca.

 

Para além do reavivar da memória e da continuidade da tradição, preservando a importância em manter o património proveniente “dos nossos antepassados, bem vivo”, Susana Maldonado frisa o valor dinamizador, “que poderá ser melhor aproveitado”, desta festa: “O centro da cidade está a ficar cada vez mais esquecido. E é pena, porque não é o que vemos em outras cidades. Por isso, todos os eventos que possam aqui decorrer são bem-vindos. O dia da Festa das Maias, em termos de vendas, nem sequer é relevante, porque as pessoas querem é estar nas ruas cheias de gente, ver a alegria e o corrupio das crianças, desfrutar de uma conversa, entre família e amigos, numa esplanada. Mas não deixa de ser bastante compensatório, porque nesse dia todos relembram esta zona e o passeio acaba por ser um incentivo para regressarem mais vezes – nota-se que nas semanas seguintes as pessoas voltam”.

 

Também Nelson Flamino, o pai da maia Margarida, falando sobre o entusiamo da filha com a chegada, prestes, da manhã “em que se veste de forma diferente, com o encanto das flores e do convívio com outros miúdos”, corrobora a beleza deste “excecional dia” e exalta a importância “desta tão antiga tradição” que cativa muitos bejenses a irem até ao centro da cidade.

 

“Esta é uma das datas do ano em que mais pessoas da cidade se passeiam por aqui, porque a maioria das famílias se envolve bastante nesta espetacular festa”.

 

O comerciante considera, contudo, que o evento não tem a “divulgação que merece ter”, capaz de o tornar mais abrangente a nível nacional: “É fundamental aproveitar este património, que não existe em mais lado nenhum, publicitando-o de forma abrangente, para que haja retorno. Isso é ‘superlógico’”. Como tal, Nelson Flamino sugere à Câmara de Beja, “que terá mais meios do que a ADPBeja para o fazer”, que considere um investimento futuro na divulgação da Festa das Maias, a nível nacional, para que se consiga captar a atenção e a curiosidade de pessoas de fora em visitá-la.

 

“Beja é reconhecida como uma terra simpática que recebe bem, mas a cidade tem que dar a conhecer os seus atrativos”, observa.

 

Atratividades patrimoniais, invulgares e identitárias de Beja, representadas, neste caso, pela Festa das Maias, que merece, de forma indelével, a admiração de Ana Monteiro, que quando criança participou como maia nas festividades, juntamente com a sua irmã, Susana, e cujos filhos, Mia e Max, participam, atualmente, da mesma forma: “São estas tradições que distinguem uns sítios dos outros e a sua perpetuação, transmitindo-as de pais para filhos, é uma coisa valiosa. Nós já vivemos o prazer de ser maia e foi algo muito especial, agora é a vez de eles o viverem, para que no futuro o recordem".

 

Da jubilação de participar, Mia e Max, de 12 e oito anos, participantes da festa desde os cinco, dizem gostar de ir ao campo, em família, apanhar as flores para os ornamentos e para as oferendas, de ver o contentamento das pessoas que enchem a rua, da diversão e de toda a alegria que a festa proporciona às crianças.

 

Deste modo, e para que o entendimento dessa felicidade seja absoluto, Florival Baiôa convida todos a estarem presentes na festividade: “Quem quiser perceber, realmente, a alegria sentida pelos miúdos com esta festa, é vê-los, no sábado, orgulhosos de dela fazerem parte, oferecendo flores em troca de um tostãozinho e correndo velozes na rua de um lado para o outro. Até parece que estão voando”.

 

LIVRO SOBRE TRADIÇÕES PORTUGUESAS

Luís Mendonça de Carvalho, professor do Instituto Politécnico de Beja e diretor do Museu Botânico da instituição, encontra-se a ultimar um livro sobre as diversas tradições locais portuguesas no domínio da etnobotânica (uso cultural das plantas).

 

A obra, que será publicada pelos CTT no início do próximo outono, pretende elucidar os leitores, através de uma viajem pelo território insular e continental de Portugal, acerca de algumas centenas destas práticas, revisitadas e ilustradas (o livro terá entre 300 e 400 fotografias), entre elas as Maias de Beja, no capítulo dedicado ao Baixo Alentejo.

 

PROGRAMA DAS FESTA DAS MAIAS EM BEJA 

A tradicional Festa das Maias, ritual milenar de origem romana de celebração da primavera, comemora-se hoje, dia 13, uma vez mais, em Beja, no seu centro histórico,nomeadamente, na rua Capitão João Francisco de Sousa (“portas de Mértola”).

 

O evento, organizado pela Associação de Defesa do Património de Beja, tem início na parte da manhã, às 10:00 horas, com a montagem do “trono “e instalação das maias, seguindo-se animação musical e festa de rua com o grupo de percussão Rufar e Bombar.

 

Na parte da tarde, as festividades continuarão no jardim público da cidade, entre as 15:00 e as 17:00 horas, e dele farão parte um espetáculo com Luís Simenta, a entrega de diplomas às crianças participantes, uma oficina de jardinagem e um lanche para maias e aios

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