Desde os tempos e da célebre frase do influente e antigo diretor da Biblioteca Municipal de Beja até aos dias de hoje. Joaquim Figueira Mestre trouxe um novo conceito de biblioteca e isso prova uma coisa: os pilares fundamentais de uma instituição pública tão importante como a biblioteca são as pessoas.
Texto João Carvalho
Além do interior dos livros, são as pessoas e as suas vidas os universos de uma biblioteca, e a de Beja não é exceção. Nelson Batista tem 45 anos e trabalha há 25 na Biblioteca Municipal de Beja José Saramago, onde, em alguns dias, tem o encargo de abrir-lhe as portas pelas nove e meia da manhã.
Como amante de literatura, diz ser um prazer abrir as portas da cultura da sua cidade e descreve este começo de dia quase poeticamente: “É como se pudéssemos ouvir os livros a comunicar connosco, sinto que alguns dos que estão nas estantes se queixam por nunca terem sido lidos”.
Com este desabafo quase lamuriento, Nelson abre a biblioteca e repara não haver fila. São muitos os dias em que quando chega já tem algumas pessoas que esperam ansiosamente a abertura da biblioteca. Hoje é diferente.
A primeira coisa que faz não é desejar bons dias, concentra-se no seu trabalho de guarda-livros e faz jus a este nome que Fernando Pessoa deu à profissão do seu semiheterónimo Bernardo Soares. Nelson repara num livro deixado sobre uma mesa e, antes de guardá-lo na estante devida, folheia-lhe as páginas. Pouco tempo depois da abertura chegam as primeiras pessoas e o técnico bibliotecário pousa de novo o livro na mesa.
“A arrumação dos livros não é o trabalho prioritário. O principal é atender as pessoas e dar-lhes a resposta e a ajuda que precisam”, constata Nelson Batista, antes de dirigir-se a um dos leitores assíduos da casa, Francisco Inácio. Natural de Pedrógão (Vidigueira), Francisco tem 43 anos e mudou-se para Beja depois de algumas complicações no seu estado de saúde: “Tenho uma doença psiquiátrica, esquizofrenia, e depois de ser internado em Beja surgiram algumas complicações. O médico e o juiz decidiram que tinha de ficar por Beja”.
Francisco tem um hábito muito peculiar quando se senta à mesmíssima mesa e dispõe de um caderno onde vai desenhando e escrevendo. Em intervalos, quase num olhar distraído, fita amplamente o que se passa à sua volta.
Diz ser uma terapia e, baixando agora o olhar para a sua camisola às riscas, acrescenta: “Qualquer pessoa que entra na biblioteca fica fascinada pelo perfume das palavras, este é um espaço onde se respira cultura. Venho aqui para me cultivar e relaxar”.
Francisco vê no ambiente da biblioteca um escape que o conforta, que, por vezes, lhe tira o peso de viver com esquizofrenia, mas, ainda assim, considera sofrer de uma doença bastante imprevisível: “Não se aprende a lidar com esquizofrenia”, diz entre gaguejos, e confessa ainda: “Neste momento estou aqui muito bem, mas quando chegar à rua posso ter um desaforo qualquer e nada me faz prever que não esteja internado amanhã”.
Personalidade já conhecida e querida por todos os profissionais da biblioteca, Francisco Inácio é muitas vezes a primeira pessoa que Marta Simenta, uma das técnicas de biblioteca, vê quando chega ao trabalho.
“O Francisco é uma pessoa que interage sem problemas com todos os trabalhadores da biblioteca, mas no início não era assim, fechava-se muito em si. Há uma grande diferença, e ainda bem, todos gostamos muito que o Francisco venha à biblioteca”, refere Marta descontraidamente.
Com 44 anos e na biblioteca de Beja desde 2006, Marta diz não ser uma boa leitora: “Quando estou de férias no verão sou capaz de ler três ou quatro livros, mas não sou uma leitora assídua”. Sabendo que não é preciso uma relação constante com os livros para se trabalhar como técnica de biblioteca, Marta esbraceja por cima de uma mesa de forma a explicar melhor a sua função na biblioteca de Beja.
“O meu trabalho é um pouquinho diferente do dos meus colegas. Faço atendimento ao público pontualmente. Estou no gabinete interno, no processo do tratamento documental, ou seja, acompanho o processo desde a aquisição dos livros até que chegam ao público”, diz, antes de fazer uma pausa no discurso, ajeitando-se na cadeira e continuando logo depois: “Sou também uma das responsáveis por todas as exposições que a biblioteca recebe”.
ADESÃO DO PÚBLICO ÀS BIBLIOTECAS
Não é preciso recuar aos anos 90 – início dos tempos de Joaquim Figueira Mestre – para se ter a noção de que o papel das bibliotecas nas comunidades está a mudar: são agora lugares de partilha e oportunidades para descobrir outras formas de olhar o mundo.
É ponto assente entre Marta e Nelson que há 10 anos “a biblioteca estava sempre cheia”. Mas não são só os dois técnicos bibliotecários que concordam nesta matéria, também Paula Santos, diretora da Biblioteca Municipal de Beja, vê as diferenças, considerando que uma das suas funções é garantir a existência de serviços de biblioteca de qualidade para todos, garantir que a biblioteca não tem sono, para que a cidade se mantenha acordada, como diz o lema criado por Joaquim Figueira Mestre.
Paula salienta ainda que esta função não é só sua, mas também a de todos os profissionais da biblioteca. “Prestamos um serviço público”, refere Paula Santos, que acrescenta ainda: “Apesar da queda no número de utilizadores da biblioteca nos últimos anos, ainda há bastante gente interessada nos serviços e atividades que proporcionamos”.
Na biblioteca de Beja desde 1995, Paula Santos, de 58 anos, afirma que quando chegou à biblioteca esta era o único espaço cultural na cidade e atribui a isso um fator para que o público fosse mais numeroso na altura: “Beja cresceu culturalmente e, hoje, além da biblioteca, há outros espaços que promovem a arte e a cultura, como, por exemplo, a Casa da Cultura, o Centro Unesco ou ainda o Pax Julia Teatro Municipal. Felizmente, hoje há outras alternativas”.
Além desta visão mais positiva, Paula sabe que a vida das pessoas mudou com o tempo, e que isso também afetou a sua disposição no que toca à curiosidade de ir a eventos e descobrir coisas novas: “As pessoas tinham um sentimento muito positivo em relação à vida, gostavam de descobrir. Hoje já não é assim, perdeu-se um pouco esse sentimento. As pessoas são menos curiosas e estão menos disponíveis. Estão mais fechadas em si e têm mais medos”.
Paula Santos sente-se feliz com a sua profissão, mas, refletindo, diz que nem sempre é fácil proporcionar atividades e eventos às pessoas. Como se trata de um serviço municipal, diz já ter sentido dificuldades em negociações com o poder político.
“Às vezes não é fácil ser a bibliotecária responsável pela gestão da Biblioteca Municipal de Beja, pois ela é, por si só, uma instituição com uma história e personalidade muito fortes, e cuja excelência é inclusive mais reconhecida por pessoas de fora de Beja. É sempre necessário encontrar novas atividades, novas propostas e novos serviços que desafiem ou vão ao encontro das expectativas das pessoas da cidade. Para se caminhar nesse sentido do que descrevo como ‘corresponder e desafiar’ é também sempre necessário negociar com quem decide sobre as prioridades para a cidade. Há sempre dificuldades e há sempre possibilidades, e o mais importante é persistir, insistir e nunca desistir. Esse é, quanto a mim, o espírito de qualquer serviço público na área da cultura”, declara, enquanto passa firmemente a mão na manga do casaco, depois conclui: “Há uma coisa que não admito às pessoas: que percam o seu profissionalismo, então, nunca posso perder o meu. E estou orgulhosa por pertencer à biblioteca de Beja, é uma das melhores do País”.
A IMPORTÂNCIA DE UM ESPAÇO COMO A BIBLIOTECA
“Sem a biblioteca eu existia, mas não era a mesma coisa”. Quem o diz é Francisco Inácio, enquanto continua sentado à sua mesa, com o caderno aberto disposto sobre a mesma, mas não é o único com semelhante opinião.
José Valente, de 58 anos, é professor de Física e Química no Liceu de Beja, e como ávido leitor e figura frequente da biblioteca de Beja partilha da mesma opinião que Francisco: “Se a biblioteca se perdesse, perder-se-ia também a cidade. Nem só de pão vive o homem, também vive de cultura e conhecimento”.
José entrelaça os dedos de uma mão na outra e discursa convictamente. Numa conversa simples evoca filósofos e escritores de forma a comprovar o que diz. Além de professor, escreve sobre ciência para o “Diário do Alentejo” e é um orador frequente na biblioteca de Beja.
Em palestras sobre ciência consegue chegar à filosofia e da filosofia à vida comum, e é por isto que é uma das figuras com maior conhecimento na cidade de Beja. “Frequento muitas vezes a biblioteca porque é o centro do saber. A área que mais me interessa na biblioteca é a ciência, mas também leio muita filosofia. E atenção, porque a filosofia não é ciência. São duas áreas muito importantes e sobre as quais é difícil decidir qual a melhor. Se perguntarem a uma criança se prefere o pai ou a mãe, ela não saberá responder”, diz José Valente de olhar firme, como quem não desviou a sua longa abordagem a uma pergunta que pedia resposta direta e concisa.
Francisco Inácio levanta-se e num andar desconcertante deixa o espaço que o salva para trás, avisando Nelson e os restantes técnicos de biblioteca: “Vou lanchar agora”. A mesa que Francisco ocupa regularmente fica vazia e a biblioteca perde alguma luz sempre que este homem abandona tal mesa.
“ISTO É UMA CASA DE MULHERES” E A DOR DO FECHO DIÁRIO DESTA CASA
Além de referir a importância da biblioteca na sociedade, é assim que Marta Simenta define a Biblioteca Municipal de Beja José Saramago: “Nós somos maioritariamente mulheres e temos muita força”. Considera que esta força é crucial para levar os projetos avante a ainda para lidar com muitas das pessoas que, por vezes, frequentam a biblioteca e se tornam desagradáveis e mal-educadas.
Nelson é um dos quatro homens que trabalham neste espaço e hoje cabe-lhe não só a função de abrir mas também a de fechar as portas da biblioteca: “Às vezes tenho de fechar a biblioteca quando ainda há muita gente cá dentro. Dói-me sempre que tenho de convidar alguém a sair porque temos de fechar, sinto que a pessoa quer ficar sempre mais um bocadinho”.
Se é verdade que Joaquim Figueira Mestre definiu grandiosa e eternamente a biblioteca de Beja com uma frase impactante – “Numa cidade acordada, uma biblioteca sem sono” –, também é verdade que mesmo sem sono esta biblioteca tem de dormir. É isso que faz pela noite quando Nelson lhe fecha as portas um pouco depois das 10 horas e vai a pé até sua casa, procurando também o seu descanso. Uma biblioteca sem sono, mas que dorme quase por obrigação, numa ânsia de voltar a acordar, de conhecer uma nova manhã para poder, novamente, abrir as portas à sua cidade de Beja.