Diário do Alentejo

Os testemunhos de Abril

22 de abril 2023 - 09:00
Os testemunhos de Aurora Rodrigues, presa e torturada pela PIDE em Portugal, Florival Baiôa, refugiado político em Bruxelas, e Luís Raul Quebra, refugiado de Angola
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Na próxima terça-feira assinala-se o 49.º aniversário da Revolução dos Cravos. Quarenta e nove anos passaram desde 25 de abril de 1974. Se muito mudou em Portugal, as vidas de quem viveu esses dias, em Portugal e no estrangeiro, ficaram marcadas para sempre. Não só pela Revolução, mas pelo que se passou antes, em pleno Estado Novo, mas também depois, nos dias, meses e anos quentes do pós-revolução. Uma viagem a esses tempos através das memórias e vivências de Aurora Rodrigues, Florival Baiôa e Luís Raul Quebra.

 

AURORA RODRIGUES, MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUBILADA

 Texto  Nélia Pedrosa

 

Aurora Rodrigues, magistrada do Ministério Público jubilada, era uma jovem militante do MRPP quando se deu a Revolução de Abril. Tinha aderido ao partido há cerca de ano e meio, depois de ter assistido ao assassinato do estudante universitário Ribeiro Santos, seu amigo, pela PIDE/DGS.

 

Na madrugada do dia 25, recorda, estava em Vale de Milhaços, Corroios, no concelho do Seixal, num anexo dos tios, a passar comunicados no policopiador, “praticamente um a um”, porque a máquina estava sempre a encravar.

 

Os comunicados “a convocar para o 1.º de Maio”, com as palavras de ordem “O 1.º de Maio é vermelho, todos ao Rossio”, teriam de ser entregues, impreterivelmente, nesse mesmo dia. Para disfarçar o barulho da máquina, para que não se ouvisse na rua, tinha o rádio ligado. Foi assim que foi sabendo dos acontecimentos.

 

“Eu estava a fazer uma direta, porque o trabalho estava atrasado e portanto ouvi tudo [na rádio]. Comecei por estranhar as canções, depois, a certa altura, começou a passar a mensagem para que as pessoas permanecessem em casa”.

 

Aurora Rodrigues decidiu fazer precisamente o contrário. Às 6 da manhã apanhou o primeiro autocarro que saía de Vale de Milhaços com destino a Cacilhas, tendo, depois, seguido de barco para o Terreiro do Paço, em Lisboa. Dali dirigiu-se para o quartel da GNR do Carmo, onde se tinha refugiado Marcello Caetano.

 

“Era só seguir a multidão, não era muito difícil, já estava muita gente na rua”. No caminho ia-se cruzando com algumas caras conhecidas. “Juntei-me à alegria geral, festejei de facto esse dia. Dizem que subi a um tanque [militar]. Não me lembro, mas é provável. Quando Marcello Caetano saiu do quartel e foi levado eu ainda andava por ali, nas redondezas, inteirando-me do que se estava a passar”.

 

O entusiasmo era tal que acabou por se esquecer que tinha combinado encontrar-se com o camarada Camilo Inácio, que estava clandestino numa casa em Santo António dos Cavaleiros.

 

“Só ao fim do dia é que me lembrei. Quando lá cheguei ele deu-me uma descasca de todo o tamanho, porque ele não sabia de nada. Como tinha mandados de captura não podia sair de casa. Tenho de facto essa pena de ter privado o Camilo Inácio, de certo modo, de festejar também. Só depois é que foi para a rua”.

 

Nos dias seguintes à Revolução dos Cravos, diz, “ninguém parava, toda a gente continuava na rua, havia manifestações”. O MRPP, por exemplo, manifestava-se contra o embarque de soldados para as então colónias, pelo fim da PIDE naqueles territórios e pela “sua independência imediata”.

 

“Foi essa a minha posição. Se antes não tinha tempo para dormir, logo a seguir ao 25 de Abril também não”. Manteve-se na organização até 1977, sempre com uma atividade política intensa.

 

“Não parávamos, depois já tínhamos sede, as coisas já eram diferentes, já podíamos aparecer à luz do dia”.

 

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 "LIGAÇÃO AOS MAIS FRAGILIZADOS"

O envolvimento de Aurora Rodrigues nas questões da resistência começou praticamente na infância. Nascida em Vale de Azinheira, freguesia de Corte do Ponto, Mina de São Domingos, em 1952, aos cinco anos foi viver para Castro Verde. E terá sido aí, por causa dos ciganos que iam à Feira de Castro, que começou a sua “ligação aos mais fragilizados”.

 

“A revolta começa no Alentejo. Foi em Castro Verde que comecei a ter consciência social, porque, de facto, quer em Castro Verde, quer noutras terras do Alentejo, o fosso, a diferença, entre ricos e pobres era abismal. Havia os muito pobres que não tinham absolutamente nada, ainda mais do que há hoje, e os ricos, os latifundiários, em que muitos deles nem se davam ao trabalho de ir ver as terras. Essa diferença é uma coisa que choca. Depois houve outro aspeto que foi determinante. Os ciganos acampavam perto do bairro camarário onde eu morava e as pessoas discriminavam-nos, viam-nos com maus olhos, e isso chocou-me. Eles em minha casa entravam. A minha mãe sempre lhes deu água. Não foi aquilo que ela me disse, foi aquilo que ela me mostrou. Que os ciganos eram pessoas iguais às outras”, sublinha.

 

Os livros também tiveram um papel fundamental desde muito cedo. Assim que aprendeu a ler, começou a requisitar livros à biblioteca itinerante da Gulbenkian.

 

“O senhor Bettencourt, que era quem nos orientava, ia-me aconselhando livros de acordo com a minha idade e eu li sempre muito. Li todos os neorrealistas que era possível ler e esta leitura fez-me muito bem”.

 

Já em Beja, quando frequentava o antigo Liceu, teve acesso, através do filho de um casal amigo dos pais, a “livros mais politizados”, muitos deles sobre a guerra do Vietname que decorria na altura.

 

“Não era sobre a guerra colonial portuguesa, mas era sobre o Vietname, que era uma guerra da mesma natureza, e eu li tudo o que havia”, lembra.

 

Aos 17 anos, no ano letivo de 1969-1970, entra para a faculdade de Direito, em Lisboa. À semelhança do que tinha acontecido aquando do ingresso no Liceu de Beja, os estudos universitários foram oferecidos pelo padrinho de uma sua colega dos tempos de escola de Castro Verde.

 

“Digamos que ganhei uma espécie de euromilhões, porque não era suporto que estudasse. Eu era filha do cantoneiro, faria a quarta classe e olhe lá”.

 

Quando chegou à faculdade, sublinha, “já era absolutamente contra a guerra colonial”, “não só porque os soldados portugueses morriam, mas porque aquela guerra era injusta”. “Já tinha uma consciência política, em Castro Verde era mais social”.

 

Começa, entretanto, a travar conhecimento com alguns estudantes que depois percebe serem do PCP. Mas o discurso deles, “muito lamechas”, não a convencia. Aproximou-se depois do grupo de Ribeiro Santos, ligado ao MRPP, que “apelava à deserção”.

 

“Pensei: estes é que são os meus. Era destes que eu andava à procura. Eram os mais radicais, mas naquela altura tínhamos de ser radicalmente contra a ditadura e contra a guerra. Com meias medidas não chegávamos a lado nenhum”, conta. Mas só depois da morte de Ribeiro Santos é que se junta, de forma organizada, ao partido.

 

“Até aí eu achava que ia acabar o curso. Estava no movimento estudantil mas não partidário. Só nessa altura é que eu ‘mergulhei’ completamente, não fazia mais nada, só política”.

 

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 PRESA ANTES E APÓS O 25 DE ABRIL

A 3 de maio de 1973, então com 21 anos, Aurora Rodrigues foi presa nas traseiras da Faculdade de Letras, após um meeting de estudantes em protesto contra a prisão de vários alunos.

 

Como já a tinham levado, como aviso, para a esquadra da PSP em finais de 1972, após o funeral de Ribeiro Santos, sabia que mais dia, menos dia, iria ser presa. Foi levada para Caxias e mantida em isolamento. Nessa primeira noite dormiu profundamente, por um lado devido ao choque, por outro ao cansaço.

 

Durante os três meses em que permaneceu na prisão foi submetida a um longo período de tortura do sono – esteve sem dormir durante 16 períodos de 24 sobre 24 horas –, foi brutalmente espancada, ameaçada e humilhada.

 

“Não foi logo assim que cheguei. Fui presa a 3 e a 16 foram-me buscar e levaram-me a ver a cela de tortura. Aí apareceu um indivíduo que se apresentou – não era costume apresentarem-se, mas esse apresentou-se – como Américo da Silva Carvalho, o inspetor do meu processo, e que me disse mais ou menos isto: ‘Tu aqui tens duas vias, tens a via da colaboração ou a via do sacrifício, seja qual for a via que escolheres, daqui não sais sem falares’. E depois apontou para as grades [de uma janela] e disse: ‘Por ali não sais, a não ser feita em puré. Pela porta não sais, que nós não deixamos. Portanto, daqui não sais sem falar, mas não é agora, é daqui a oito dias’. E levaram-me novamente. Primeiro diziam que iam fazer e depois é que faziam. Era para meter medo. Passados oito dias foram-me buscar e foi aí que começou a tortura”.

 

Nos primeiros dias de isolamento, antes de saber o que lhe iria acontecer, Aurora Rodrigues tomou algumas decisões que acabariam por se revelar muito úteis. Que a ajudaram a aguentar.

 

“Havia coisas que eu nunca faria. Nunca iria chorar lá dentro, enquanto fosse possível não diria uma única palavra e também nunca iria dizer um único palavrão. Então, à medida que ia conseguindo manter as regras que me tinha imposto, ia ganhando força”, frisa.

 

Tentava igualmente “fazer de conta que os pides” não estavam na cela de tortura. E a determinada altura começou a cantar a “Ronda do Soldadinho”, de José Mário Branco.

 

“Era aquilo que tinha mais presente e que tinha mais que ver com a situação: que os meninos lindos não nascem para fazer mal e que os senhores da guerra não matam, mandam matar, não morrem, mandam morrer. É uma canção muito bonita, e que eu ainda hoje gosto muito”.

 

Também contava os dias para se “manter lúcida”, por isso é que tem a ideia precisa do tempo que foi torturada.

 

Aurora Rodrigues admite que não sabe como é que conseguiu resistir. O que sabe é que se disciplinou naqueles oito dias que antecederam o início dos episódios de tortura e que isso foi fundamental, reforça, apesar de toda a violência a que foi sujeita. Quando foi brutalmente espancada depois de ter rasgado uma folha de papel com umas declarações que não tinha prestado, temeu pela vida.

 

“Foi mesmo um filme de terror. Ele começou a bater, bater, bater, e não parava, e eu só me lembro de pensar: isto vai acabar, isto vai acabar. Só sentia o corpo impulsionado de um lado para o outro com as pancadas. A certa altura entraram na sala e levaram-no para fora e eu senti uma coisa muito esquisita, que dizem ser os sintomas de um ataque cardíaco… Depois do espancamento estava toda inchada, tinha marcas na cara, nos braços, e as pides mulheres punham-me hirudoid”, lembra.

 

Apesar de tudo, nunca prestou quaisquer declarações nem denunciou ninguém.

 

Em julho acabou por ser libertada, sem acusação, sem ir a julgamento, sem lhe ser permitido contacto com um advogado. Em outubro regressou à faculdade de Direito, mas pouco tempo depois acabaria por ver a sua matrícula cancelada. Só viria a terminar o curso alguns anos mais tarde.

 

A 28 de maio de 1975 voltou a ser presa, agora pelo Comando Operacional do Continente (Copcon), criado pelo Movimento das Forças Armadas.

 

“Eu tinha saído da sede nacional [do MRPP] e ia com o Arnaldo Matos. Eu quase que escapava, porque não me reconheceram, mas como o identificaram a ele levaram os dois. Ao todo prenderam 430 pessoas, algumas ligadas à organização, outras não”.

 

Foi levada uma vez mais para Caxias. Ainda hoje não sabe com exatidão por que é que foram presos. Sabe sim que foi completamente ilegal.

 

“Terá sido o comandante do Copcon a determinar as prisões com base no rumor de que o secretário-geral do MRPP se tinha reunido com militares do Regimento de Artilharia Ligeira de Lisboa (Ralis) e que durante esse encontro se disse que o Movimento das Forças Armadas teria de ser derrubado. Não sei se essa reunião existiu ou não. Se isso foi dito ou não. Mas é daquelas coisas que se dizem sem sentido. E todas as organizações tinham simpatizantes ou militantes no Ralis”.

 

Desse período recorda com grande indignação o facto de estarem presos na mesma cadeia junto “com os pides”: “Foi uma grande humilhação, um grande insulto”, sublinha. Desta vez saiu ao fim de um mês.

 

Cinco décadas depois, Aurora Rodrigues garante que não se arrepende absolutamente de nada do que fez e que, “nas mesmas circunstâncias, repetiria tudo, exatamente da mesma forma”.

 

Em relação ao 25 de Abril, diz, “apesar de as coisas terem mudado para muito melhor”, do ponto de vista “da igualdade e da justiça social” ainda há um longo caminho a percorrer.

 

“O 25 de Abril não me desiludiu completamente porque nunca acreditei que fosse por aí que se chegasse ao ponto que eu pretendia, que era a igualdade entre todos os seres humanos, estejam onde estiverem, sejam como forem. E de certo modo, a seguir ao 25 de Abril houve algumas interpretações erradas desta igualdade, houve um momento em que corremos o risco de passar de uma forma de ditadura para outra e isso eu também não queria”. Apesar de tudo, acredita que um dia será possível alcançar a desejada igualdade.

 

“Já não será no meu tempo, mas, quem sabe, com os filhos da minha filha. Não podemos é desistir”.

 

Em 2011 lançou a biografia política Gente Comum – Uma História na PIDE com o objetivo de mostrar que as pessoas comuns também foram presas e torturadas. “O nome da grande parte não é conhecido, não ficou para a História e é pena”.

 

 FLORIVAL BAIÔA, PROFESSOR DE HISTÓRIA APOSENTADO

Texto  José Serrano

 

"A ideia de abalar de Portugal começou a germinar em mim pouco tempo depois de chegar a Lisboa”, recorda Florival Baiôa. A ida para a capital, com 17 anos,  em 1968, tinha como objetivo a continuidade dos seus estudos em contabilidade, iniciados na Escola Industrial e Comercial de Beja, que permitiam, após ali concluídos, o ingresso direto no Instituto Comercial de Lisboa – “para depois tirar a licenciatura em Economia, pensava eu”.

 

Contudo, os planos iniciais estavam longe de um dia, por razões “obviamente políticas”, poderem vir a singrar. “Assim que cheguei ao instituto meti-me de imediato na associação de estudantes e comecei a participar em atividades contra o regime”.

 

Ações que passavam pela participação e organização de manifestações estudantis e pela distribuição de panfletos antiguerra colonial – “distribuíamo-los pelos liceus, nas universidades e, durante a noite, colocávamo-los nas caixas de correio… eu, geralmente, ficava com a zona que vai do Cais do Sodré até Alcântara, o corpo sempre num sobressalto”, recorda.

 

“Nunca reprovei, que quem reprovava era logo chamado para ir combater, mas passámos, eu e um grupo de colegas, a ser referenciados e seguidos pelos tipos da PIDE – dois deles começaram a aparecer de quando em vez, em aulas nossas, para nos intimidar…”.

 

Uma dupla da polícia política que Florival Baiôa acabou por ter no seu encalço após uma manifestação, organizada por várias associações estudantis, numa feira do livro inaugurada pelo então Presidente da República, Américo Tomás: “Eu já tinha fugido várias vezes daqueles cabrões da PIDE (tive três mandatos de captura, soube depois) – as pernas sempre a tremer como gelatina, mas nunca me apanharam que eu era um atleta, se não o fosse tinha ficado ‘feito num oito’ –, mas dessa vez foi diferente”.

 

Diferente porque logo no início da fuga se apercebeu que uma suposta “amiga, extremamente ‘revolucionária’”, que pertencia ao seu grupo de estudantes insubmissos, era de facto uma delatora infiltrada do regime – “quando ela tentou travar a minha corrida apercebi-me de tudo e ainda lhe gritei ‘tu és destes gajos’… a partir daí começámos a receber, amiúde, a visita da PIDE à casa onde eu vivia, uma espécie de comuna de estudantes”.

 

O que aconteceu a seguir, já Florival Baiôa previa – a expulsão do Instituto Comercial de Lisboa, juntamente com mais quatro colegas, e a chamada para a tropa, no Regimento de Artilharia n.º 5.

 

“Entrei no quartel de Vendas Novas com 21 anos e logo na recruta tentei, estupidamente, safar-me daquilo com a simulação de uma doença. Bicos de papagaio, imagine-se… sabia lá eu o que era isso, mas foi o fingimento que um médico que me queria ajudar me disse para tentar. Acabei por reprovar na recruta, por faltas dadas pelas contínuas idas à enfermaria e a consultas médicas. Não foram na conversa e o que os bicos de papagaio me trouxeram foi, desta vez no Regimento de Infantaria n.º 6, em Penafiel, uma segunda recruta. Assim que a concluí fiquei a saber que ia ser mobilizado para o norte de Angola, uma das zonas mais perigosas da guerra”.

 

Perante esta indicação, Florival Baiôa decidiu desertar, beneficiando de uma permissão para ir a Beja para se despedir da família, dias antes de embarcar.

 

“Era para mim evidente que quem, como eu, lutava contra a guerra colonial não podia pegar numa espingarda para matar aqueles que eram os libertadores das antigas colónias portuguesas”.

 

Assim, aproveitou a curta estadia, na sua cidade, para fazer os contactos necessários para “dar o salto” e para comprar vestuário adequado para fugir para a Dinamarca ou para a Bélgica, “onde tinha pessoas amigas, fugitivas também”, que o acolheriam.

 

“A minha mãe admirava-se de eu estar a comprar roupa quente – ora se ia para Angola, onde fazia tanto calor –, mas grande parte da minha família sabia que eu ia desertar”.

 

Para além dos imprescindíveis contactos e da roupa para outras meteorologias, havia que tratar de arranjar um passaporte. Falso, uma vez que o verdadeiro documento tinha sido entregue, meses antes, a um colega de tropa que pretendia, também ele, desertar.

 

“Emprestei-lhe o meu passaporte e ele passou a fronteira com o meu nome, apenas lhe colou uma fotografia sua, retirando a minha”.

 

Mas a fuga acabou por ser trágica, morrendo o colega num acidente de automóvel, na Suíça. O desastre fatal acabou por ser noticiado no jornal “Diário Popular”, que informava da morte de um português em terras helvéticas, de seu nome “Florival Baiôa Monteiro”, o nome que constava no documento encontrado na posse do infortunado desertor.

 

“Na Tabacaria 77 (a mais movimentada de Beja, situada nas Portas de Mértola, hoje fechada), comentou-se logo o meu ‘falecimento’ e houve quem tivesse feito luto por mim”.

 

O novo passaporte, necessário para a viagem, foi-lhe atribuído em Beja, “completamente limpinho, em branco”, por um grupo na clandestinidade, opositor do regime ditatorial.

 

“Depois fui eu que tive de fazer tudo para o preencher, com a ajuda de uma máquina de escrever e ‘inventando’, a cortar meticulosamente letrinhas de borracha com um xi-sato, o falso carimbo branco que me ‘permitia’ a saída de Portugal, pela Direção-Geral de Segurança, que entretanto tinha substituído a PIDE. Ainda que o tivesse feito com todo o rigor, enganei-me numa palavra, que em vez de um ‘S’ apresentava qualquer coisa mais parecida com um ‘2’”.

 

Multimédia2Foto | José Serrano

 

Organizado o imprescindível, a viagem para o exilio iniciou-se por ocasião da passagem de ano, de 1971 para 1972, altura em que um amigo de Florival Baiôa o levou de automóvel de Beja à fronteira, em Elvas.

 

“No Caia fui levado por um contrabandista de café até Badajoz, onde tinha à espera a minha namorada, a Rita, e um amigo meu que também desertou, o André. Ambos tinham conseguido chegar a Espanha uns dias antes de mim”. De comboio, a viagem até Bruxelas – “decidimo-nos pela capital belga por falarmos bem o francês” – decorreu sem incidentes de maior, “ainda que o estranho ‘S’ tenha levantado sérias dúvidas ao revisor do comboio que nos levou, numa primeira etapa, até Madrid”.

 

Na capital belga, onde lhe foi atribuído, pela Organização das Nações Unidas (ONU), o estatuto de refugiado político, Florival Baiôa arranjou emprego como eletricista na fábrica Pont Rolants, situada na avenue de la Couronne – “preparava parte do sistema elétrico utilizado em guindastes”.

 

Da fábrica, acabado o trabalho, seguia quase invariavelmente para o café Pantoufle. “Era esse o nosso centro nevrálgico, onde se encontravam os refugiados políticos e os desertores portugueses. Era lá que recebíamos e partilhávamos contínuas informações acerca de Portugal e da guerra – sabíamos que iam surgindo algumas modificações, que o conflito tinha passado da luta armada também para o plano diplomático, com o mundo a apelar a Portugal para que reconhecesse a independência das colónias, através de várias resoluções da ONU para que a guerra acabasse. Sabíamos ainda que o descontentamento das elites militares aumentava cada vez mais, mas nunca esperámos que a revolução estivesse tão próxima”. 

 

Revolução, cuja notícia do seu início chegou à fábrica de componentes elétricos, em Bruxelas, às oito da manhã do dia 25 de Abril de 1974, e ao conhecimento de Florival Baiôa através do seu chefe, que lhe disse para ir ouvir a rádio que existia no complexo, que naquele dia não precisaria de trabalhar. Dispensava-o, para que ficasse atento às notícias.

 

“Foi o que eu fiz – o dia inteiro sentado numa cadeira, com o ouvido colado ao aparelho a escutar o desenvolvimento da revolução, através da rádio belga. Sozinho naquela função, porque era o único português ali a trabalhar, muito contente, sem ainda acreditar no que se estava a passar. Dali, já de noite, fui diretamente para o Pantoufle. Estávamos todos muito entusiasmados mas, ao mesmo tempo, com muitas dúvidas relativamente à origem do golpe de Estado, pois havia o receio de ter ser sido perpetrado pela extrema-direita. Depois, começámos a telefonar para a família e fomos clarificando o que se estava a passar… ainda sem certezas de nada. No café, já perto da meia-noite, um português, taxista em Bruxelas, disse que ia imediatamente para Portugal e rapidamente encheu o táxi, logo ali, com refugiados portugueses exilados há 20 anos – desesperados de saudades da nossa terra, loucos por regressarem”.

 

Florival Baiôa regressou ao País cerca de um ano depois desse memorável dia.

 

“Não vim logo, fui mais cauteloso porque não havia ainda qualquer fiabilidade quanto à política que iria ser seguida. Só regressei na altura em que saiu a legislação para absolver desertores e refugiados políticos – cheguei a Portugal a 11 de março de 1975, dia em que o Spínola quis fazer o golpe de Estado. Voltámos os mesmos três que abalámos daqui, a Rita, que era a única que tinha carta, a conduzir desde Bruxelas, com uma casa em cima do tejadilho da Renault 6 e o coração cheio de sonhos”.

 

Hoje, 49 anos depois da Revolução dos Cravos, Florival Baiôa é perentório relativamente à mudança operada no País. “Desde que entrámos para a União Europeia foi dado um salto enorme a todos os níveis, as melhorias são visíveis – os hospitais, as estradas, as escolas, a cultura. Há uma grande melhoria comparativamente àquela altura”.

 

Contudo, as suas críticas à classe política portuguesa e ao estado económico e social em que o País atualmente se encontra não deixam de ser contundentes: “Há muita gente, que ganha 800 ou 900 euros, que neste momento não consegue pagar a renda da casa, pessoas que uma vida inteira trabalharam e necessitam de pedir por comida, a pobreza vai atingindo a classe média e os reformados, de forma galopante. Os políticos têm corrompido e deteriorado a democracia, a torto e a direito, com aproveitamento financeiro e um problema de corrupção enorme. A democracia tem de ser dinâmica e não pode deixar de olhar para algo que é substantivo – a felicidade e o bem-estar das pessoas. O que me deixa extraordinariamente consternado é a ocupação de todo o espaço político pelos partidos e por alguns sindicatos, sem possibilitarem a participação ativa dos cidadãos, que os partidos têm querido adormecer, por se sentirem ameaçados. O poder político, central e local, deixou de escutar os cidadãos e isso é dramático. É isto o que hoje mais me choca nesta democracia portuguesa gravemente doente”.

 

LUÍS RAUL QUEBRA, EX-REFUGIADO DA GUERRA CIVIL DE ANGOLA

 

Multimédia3Foto | Ricardo Zambujo

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Com a gasta caderneta militar entre as mãos, Luís Raul Quebra relembra, entre flashes de memórias, os últimos meses passados antes de entrar em África do Sul. Pouco ou nada sabia do que estava a acontecer em Portugal, porém, tinha uma vaga ideia de que o País estava a ultrapassar uma fase de pobreza e miséria e que o conflito armado que durava em Angola há mais de uma década se tinha agravado entre 1974 e 1975.

 

Do dia exato da Revolução dos Cravos, contrariamente a qualquer português que se encontrava no País, lembra-se pouco. Sabe que ouviu, nos dias a seguir, pela rádio “BBC” de Londres, “o que se tinha passado, mas muito, muito por alto”.

 

“Nós nunca fomos bem informados, ouvíamos pela rádio as notícias mais ou menos certas, mas não podemos dizer que sabíamos o que se passava como hoje em dia sabemos”, afirma.

 

Com a chegada de António de  Spínola a Presidente da República, logo após a queda do Estado Novo, a estabilidade vivida pelos colonos portugueses nas províncias ultramarinas, em especial em Angola, deu sinais de rotura.

 

As notícias que recebiam de Portugal era de que “havia pessoas a dormir debaixo das pontes” e essa instabilidade financeira não os deixava pensar em refugiar-se da guerra nesse país.

 

O aumento do número de mortes e de perseguições durante os primeiros tempos da Guerra Civil de Angola, em especial aos cidadãos de raça branca, condicionou a segurança daqueles que, independentemente da cor da pele, tinham nascido e crescido pelas terras áridas de África e as tinham também como suas.

 

“Quando começou a Guerra Civil de Angola, [em 1975 logo após a sua independência], os conflitos aumentaram e deixou de haver segurança. Enquanto foi entre eles, da raça negra, nós estávamos seguros, mas chegou a uma altura em que o objetivo era fazer com que os brancos fugissem de lá e eu como era da Defesa Civil comecei a ser perseguido e vi que não havia hipótese de lá estar. Tive de fugir mesmo…”, conta ao “Diário do Alentejo”.

 

A FUGA

Embora sem nenhum destino ou garantia do que encontraria, contrariou o cunhado, que acabaria preso em Luanda, e com a mulher, os sogros e os filhos juntou-se a um grupo de “500 casais” para fugir e entrar na África do Sul.

 

Durante os três meses em que esteve “no mato”, além da família, tinha consigo um carrinho de bebé, um pacote de açúcar, um colchão novo, uma carrinha e uma enorme incerteza do futuro, mas a esperança de encontrar um outro lugar.

 

Os relatos de torturas nas grandes cidades aumentavam o desejo de fugir o mais rapidamente daquele país, contudo, foi preciso “ver com os meus olhos” para tomar essa importante decisão sem remorsos.

 

“A África do Sul apoiava-nos, mas ao mesmo tempo também atrasavam as coisas para ver se nós regressávamos e desistíamos da ideia de fugir. Numa das vezes em que nos questionaram eu disse que só assumia que regressava se fosse a Sá da Bandeira [atual Lubango] ver como é que as coisas estavam. Levei três ou quatro pessoas e fomos, mas quando lá chegámos aquilo estava um desastre”, relembra. “Vi uma rapariga grávida ser violada e morta por um quilo de carne que estava encomendada para um membro do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), que quando o grupo rival soube que ela não lhe vendia para ser para os outros fez-lhe isso e aí disse que quem quisesse regressar que podia fazê-lo, mas que eu e a minha família íamos embora”, diz.

 

A CHEGADA A PORTUGAL

Com a esperança de poder um dia regressar ao seu país, Luís Quebra ponderou em reconstruir a sua vida em África do Sul. Contudo, recorda-se da frase que Mário Soares, na altura primeiro-ministro, disse a propósito: “Não fica português nenhum em África. Têm que vir todos para Portugal, porque cabemos todos cá dentro!”.

 

Em menos de 24 horas, a 8 de março de 1976, com uma paragem em “Mitcham para o avião abastecer”, o grupo onde seguia Luís Quebra e a família deu entrada em Portugal.

 

O jovem que completava 30 anos dali a uns dias ficou instalado, à semelhança da maioria dos refugiados que entraram em Portugal naquela época, numa pensão paga pelo Estado em Santa Cruz, no concelho de Torres Vedras.

 

Assim como grande parte da sua vida, também decidiu deixar de ser guarda civil por saber que não se habituaria aos costumes portugueses.

 

“Quando chegámos aqui ainda vim com o capitão Amaral e ele disse-me para tratar das coisas [para ingressar na guarda civil portuguesa], mas eu disse-lhe: ‘Aquilo lá em Angola é diferente. Eu não tenho grandes estudos, fiz a quarta classe na tropa, e não estou habituado a como as coisas são cá. Por exemplo, quando chegámos vi um homem apalpar uma rapariga e quando o polícia lhe chamou a atenção ele deu-lhe duas chapadas e eu vi logo que eu com uma arma e um cassetete nas mãos, em situações semelhantes, não me manteria’. E então achei melhor sair, mesmo sabendo que ia perder o apoio do Governo”, confessa.

 

Do trabalho nas vinhas em Torres Vedras e em Viana do Castelo até aos campos do Alentejo não tardou. Soube que uma herdade perto de Beja estava a precisar de pessoal para trabalhar na agricultura e cuidar e ensinar cavalos e, como em Angola pertencia ao serviço de cavalaria, achou que seria uma boa oportunidade para refazer a vida.

 

“Os meus sobrinhos, que estavam cá, começaram a dizer-me que o Alentejo era uma zona boa, com muito trabalho e que havia uma herdade que tinha cavalos e que precisava que os desbastassem. Vim para cá, fiz o negócio com o patrão e fiquei a ganhar oito contos mais os cavalos que eram pagos à parte, o que na altura era um ordenado mais ou menos”, explica.

 

E completa: “Eu com esse ordenado criava os meus cinco filhos, ia ao supermercado e com 1000 escudos trazia comida para casa à vontade e ainda conseguia juntar dinheiro, [em comparação] em Angola ganhava um conto e 500 escudos na polícia, se bem que depois de me ter vindo embora sei que aumentaram esse ordenado para dois contos”.

 

Multimédia4Foto | Ricardo Zambujo

O PRECONCEITO

Atualmente, com 77 anos e a viver em São Matias, relembra os primeiros tempos em que viveu na pequena aldeia do concelho de Beja, onde a simples chegada da sua família criou alvoroço e algumas inimizades.

 

“Agora tenho muitos amigos, mas quando cá cheguei tinha muitos inimigos. Eles diziam-nos que nós estragamos o País, porque as coisas começaram a aumentar e achavam que a culpa era nossa. E aqui em São Matias era com medo de lhes roubarmos o trabalho, porque, na altura, enquanto aqui um trabalhador rural com um trator ganhava 14 contos eu, no total, ganhava 16, mas eles esqueciam-se que eu fazia horas ao patrão”, realça.

 

O rótulo que carregou durante muitos anos diz que tem vindo a desaparecer. Nunca admitiu que lhe chamassem, de forma pejorativa, “retornado”, porque “eu sou refugiado, refugiei-me da guerra e não retomei ao meu país. Eu nasci em Chibia, por isso se eu voltasse para Angola aí, sim, era retornado, mas aqui sou refugiado”, garante. “Mas a malta aqui abusou um bocadinho disso, mas hoje em dia já não”, acrescenta.

 

Ao fim de 47 anos, além do papagaio-cinzento, tipicamente angolano, que o chama de vez em quando, a caderneta militar que tem em cima da mesa da sala é das poucas coisas que ainda o faz recordar de África. Por vezes folheia-a, lê os louvores que recebeu e orgulha-se da página em branco dos castigos.

 

Diz não poder voltar à terra onde nasceu. Embora com os olhos tristes, diz, também, não o querer fazer, talvez por resignação ou por pura vontade de esquecer o que passou.

 

Para ele, António Salazar, uma das principais figuras do Estado Novo, nunca foi mau, mas também nunca foi bom. Compreende o porquê da Revolução de Abril, mas não esquece que foi também ela que o tirou da casa, da terra e do país que o viu crescer. Em Portugal encontrou o seu segundo lar, mas Angola será sempre o primeiro.

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