Diário do Alentejo

Tecelagem

15 de abril 2023 - 11:00
Em Mértola ainda existem tecedeiras tradicionais que se encarregam de manter vivo o ciclo completo da lã
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

A crescente valorização dos produtos sustentáveis e biológicos tem permitido que algumas práticas ancestrais que estavam em vias de extinção regressem, pouco a pouco, ao mercado. Na vila de Mértola, na rua da Igreja, há quem ainda calce as botas de borracha e vá ao rio lavar a lã antes de a tecer. O “Diário do Alentejo” foi até à ribeira do Vascão acompanhar uma das últimas lavagens deste ano da Oficina de Tecelagem de Mértola.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

O sol ainda não ia alto quando Nazaré Fabião, de 54 anos, chegou ao café Cegonha Branca. Normalmente o ponto de encontro é a uns metros mais abaixo, num outro estabelecimento da vila de Mértola, mas hoje as voltas foram trocadas.

 

À sua espera está Rosa Ruivo, de 54 anos, e Miraldina Pereira, de 57 anos, ambas colegas da oficina de tecelagem. Entre uma e outra conversa apressam-se a entrar na carrinha branca cedida pela câmara municipal, pois o caminho ainda se avizinha longo.

 

Do centro de Mértola até ao Vascão, o rio que divide as províncias do Alentejo e do Algarve, vão cerca de 30 quilómetros pela nacional 122. O trajeto, embora longo entre as curvas sinuosas da serra, não demora mais do que meia hora e ainda permite uma ligeira paragem para Bruno Mareco, de 21 anos, se juntar ao grupo.

 

Na ribeira, à chegada da carrinha, está Helena Rosa, de 66 anos, e o marido Jacinto. Enquanto esperavam pelos companheiros deram início ao pequeno lume que servirá, mais tarde, para aquecer a água de dois caldeirões.

 

“Bom dia! Como é que estão? Preciso que vão apanhar mais lenha. Esta que aqui está não vai chegar e vocês é que são novos para isso”, diz Jacinto, enquanto solta uma gargalhada.

 

Jacinto Rosa, de 72 anos, foi motorista de transportes escolares praticamente “uma vida inteira”, mas, conta ao “Diário do Alentejo”, que sempre ajudou a mulher no seu ofício, principalmente durante os meses da lavagem da lã. 

 

“Eu trabalhei uma vida inteira para a câmara, fazia o transporte das crianças, mas também vim sempre com a minha mulher. Há 35 anos que a venho ajudar com o lume e a água, por isso não posso dizer que não gosto disto”, refere.

 

Este ano já fizeram duas lavagens, à exceção desta que se preparam para fazer, e esperam conseguir fazer pelo menos mais uma de lã preta. “O ano passado a lã preta já chegou tarde e, como só se pode fazer fogueiras e queimadas até maio, já não conseguimos vir à lavagem. Vamos ver se este ano conseguimos até ao final do mês vir lavar essa que falta”, comenta.

 

Multimédia0

 

O LAVAR TRADICIONAL

Por cima da ribeira, quem passa pela ponte em direção a Alcoutim, não nota a correria que vai por baixo dela. Enquanto a “lenha boa” não chega, começam-se a encher dois alguidares com lã e água quente para, numa primeira fase, amolecer a sujidade e permitir uma melhor lavagem.

 

“Nós agora metemos a lã nestes alguidares com água quente, depois tiramo-la e começamos a esfregá-la na ribeira, só com as mãos, sem qualquer tipo de detergente. Mais tarde, depois de seca e cardada, já com a lã teada, é ainda feita uma segunda lavagem com sabão azul e branco para retirar a gordura do azeite usada nos fios”, explica Helena Rosa.

 

Ainda sem o sol dar sinais de espreita, Rosa Ruivo, Nazaré Fabião e Helena Rosa entram na água com os cestos de verga e a lã para dar início à lavagem. De botas de borracha calçadas, mangas arregaçadas e inclinadas para a frente dizem, entre risos, que “a água da ribeira está morna” e que já foram lavar “em dias bem piores”.

 

A lavagem é feita na ribeira por um motivo simples e ancestral. As antigas tecedeiras sempre usaram os rios para lavar a lã face à abundante quantidade de água e de espaço, o que permite retirar com mais facilidade e precisão a sujidade que esta traz consigo.

 

“Antes rabejavam as ovelhas, ou seja, cortavam e limpavam a lã junto aos seus rabos e quando a lã era tosquiada vinha muito mais limpa do que agora. Hoje em dia há quem faça a tosquia das ovelhas quase por necessidade do animal e por isso não têm esses cuidados. A lã é apanhada diretamente para a saca e vem muito suja”, explica Jacinto Rosa. Bruno Mareco acrescenta: “Por isso é que durante a tosquia se deve tentar escolher a lã, porque, por exemplo, a que está na parte da barriga com palha não vale a pena lavar”.

 

Além disso, as características do próprio animal também influenciam a sua qualidade e, consequentemente, a do produto final. Segundo o jovem, a trabalhar na Oficina de Tecelagem de Mértola há sete meses, “uma lã com qualidade deve ser retirada de um animal adulto que já tenha, pelo menos, dado um ano de lã. Mas cada vez mais chega-nos lã de borrega”.

  

                                           Multimédia1            Multimédia2

 

A SECAGEM DEMORADA

O sol começa a aparecer. Os dois sacos de lã, descarregados da carrinha de caixa aberta de Jacinto, no início da manhã, já vão a meio. O grupo diz que hoje o tempo de lavagem está a ser mais rápido, tendo em conta que na última vez acabaram o serviço já de tarde, talvez pela quantidade de lã, de pessoas ou de sujidade.

 

Na margem da ribeira, o cesto grande de verga enche-se vezes sem conta. Miraldina Pereira, uma das novas estagiárias da oficina, encarrega-se de colocar a lã sobre as ervas, preferencialmente as menos verdes, para começar o processo de secagem.

 

Tendo em conta Helena Rosa, este é dos poucos processos na tecelagem que não depende exclusivamente do grupo. O tempo de secagem da lã é condicionado pelas temperaturas atmosféricas, sendo menor quanto mais calor se fizer sentir.

 

“Daqui, a lã vai enxugar lá para casa, mas temos de a estender e apanhar todos os dias, por causa da humidade da noite. Se ficar uma vez estendida de noite, na manhã seguinte está muito mais molhada”, esclarece o marido.

 

                      Multimédia3                     Multimédia4

 

A OFICINA DA TECELAGEM

Ainda com meia saca de lã para lavar, junta-se ao grupo, na ribeira, Fátima Mestre, de 68 anos, que esteve até então com as portas da oficina de tecelagem abertas. Desde o ano 2000 que essa é a casa de diversas tecedeiras e aprendizes que olham para “um dos mais antigos ofícios artesanais do concelho de Mértola” com carinho e algum receio.

 

Atualmente, a oficina acolhe quatro tecedeiras com experiência, um aprendiz de tecelagem e uma estagiária para qualificação profissional. Bruno Mareco, com praticamente a mesma idade que a oficina, é o único jovem que se propôs, nos últimos meses, a aprender o ofício.

 

“Para mim fazer parte da oficina é bom porque dá-me gosto em manter uma tradição muito antiga e, pelo que vejo, nenhum outro jovem ia aprender. Para mim tem sido um orgulho pegar nesta tradição que estava já praticamente extinta”, realça o jovem, acrescentando que pretende continuar com a atividade.

 

O cariz inovador que a geração mais nova pode trazer até à tecelagem tradicional faz com que Fátima Mestre e Rosa Ruivo olhem para o futuro com “esperança”.

 

“Nós temos esperança. Temos esperança que o Bruno e as outras duas senhoras que também são mais novas ensinem o ofício a outras pessoas para que seja possível dar-se continuidade à tecelagem tradicional, principalmente aqui em Mértola, porque seria uma pena se isso não acontecesse”, refere a tecedeira de 68 anos.

 

A colega, natural de Barrancos, concorda e completa: “No caso do Bruno, ele é o futuro. É a cereja no topo do bolo, porque tem muito jeito para tudo o que é o artesanato, para comunicar e ajudar e por isso tenho a certeza que ele é mesmo a esperança da tecelagem aqui em Mértola, porque, além disso, é um jovem com fortes ligações à terra”.

 

Multimédia5

 

Com a lã toda estendida e o lume apagado, a hora é de descanso. Helena Rosa preparou uma “bucha” para os companheiros, com bolo, pão, chá e enchidos caseiros. Antes de se meterem a caminho da vila ainda têm de apanhar a lã que está estendida ao sol e mete-la novamente na carrinha para seguir viagem até ao quintal de Helena e Jacinto. Mas, por enquanto, apenas o chilrear das andorinhas que agora chegam se faz ouvir. Este ano, dizem, fizeram menos ninhos na ponte, até ao momento.

 

A tarde, à semelhança da manhã, prevê-se extensa. Na Oficina de Tecelagem de Mértola, localizada no n.º35 da rua da Igreja desde 2005, é necessário cardar e terminar as peças que ficaram por fazer. Entre um tear e outro surgem sempre uns olhares curiosos que, num português meio enrascado, pedem para entrar e conhecer o espaço.

 

O grupo, habituado a este entra e sai dos turistas, já não se deixa incomodar com os flashes das câmaras fotográficas. Afirmam que esta é também uma das formas de manter a tradição viva.

 

Multimédia6

Comentários