Diário do Alentejo

João Affonso (1822-1885): In memoriam

11 de março 2023 - 15:00
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Texto João Taborda, Professor

 

NO DE 2023. FEVEREIRO

Seguia cabisbaixo, ausente no smartphone… …

 

Olha lá!... atirei-lhe de rompante… sabes o nome desta rua? Espantado, descolou em sobressalto os olhos do aparelho e, depois de me obrigar a repetir a pergunta, disse que não, não sabia!... enquanto acabrunhado se afastava, de volta ao seu mundo… virtual…

 

Dias depois voltei a insistir… junto de gente mais velha… Não me atrevi, claro, a perguntar se conheciam o nome da rua… Se sabiam, foi assim, quem tinha sido João Afonso para merecer aquela placa ali à esquina… junto ao modernaço jardim que generosamente ofereceram a Vila Alva… na véspera de umas autárquicas!... e onde se homenageia a Senhora da Paz e os combatentes de outras guerras… entre alminhas meio perdidas e a miragem de vinhas “centenárias”… As respostas, a maioria, foram hesitantes, recheadas de equívocos e de desconhecimento. Por isso, penso justificar-se e ser da mais elementar justiça resgatar à névoa do tempo a lembrança de… João Affonso.

 

11 DE ABRIL DE 1885

João Afonso… d’Arce Cabo Coelho Perdigão, de 63 anos, solteiro, proprietário, faleceu aos 11 dias do mês de Abril do ano de 1885, em Vila Alva, na sua residência da rua do Rossio… então assim chamada. Sabe-se que aí terá vivido, pelo menos, durante as décadas de 1870 e primeira metade da seguinte, as últimas da sua vida. Túlio Espanca (1992), referindo-se a esse edifício, actuais números 8 e 10, diz tratar-se de uma “Casa antiga, de andar nobre, composta por quatro janelas de sacada ricamente guarnecidas por cornijas e molduras muito salientes, aquelas de arcos apontados, com grades férreas, do tipo de barrinha e portal adintelado, coevo, de mármore (fins do século XVIII – Época de D. Maria I)”.… características que urge acautelar… atendendo aos edifícios de valor histórico que em Vila Alva se têm desgraçadamente perdido e a outros que vão sofrendo inqualificáveis transfigurações!

 

No dia 4 de Abril, já no seu leito de morte, na presença do tabelião Alvaro Accacio Machado, de Cuba, e de cinco testemunhas, todas moradoras em Vila Alva, João Afonso formalizou em testamento a disposição da sua última vontade. Mas quem foi este homem? Limitando aqui a sua genealogia e a teia de relacionamentos familiares a nomes que, pela sua ligação a evidências materiais, umas ainda existentes, outras, entretanto desaparecidas, poderão dizer algo a vilalvenses, vejamos…

 

A ASCENDÊNCIA DE JOÃO AFONSO

João Afonso era trineto de António Lopes Cabo (1708-1782), natural de Vila Alva. Familiar do Santo Ofício, exerceu aqui, entre outros, o cargo de capitão-mandante das Ordenanças. António Lopes Cabo terá residido em casas da (antiga) rua do Outeiro das Moitas, hoje o n.º14. O interior deste edifício térreo ainda há poucos anos conservava algumas divisões abobadadas muito interessantes, que deveriam merecer a atenção de quem, a nível local e regional, tem responsabilidades nas áreas da cultura e da defesa e preservação do património.

 

O bisavô de João Afonso, o dr. António Afonso de Mira Cabo (1735-1789), nascido também em Vila Alva, foi juiz de fora na vila de Mourão. Arrisco a hipótese de ter sido o primeiro representante desta família a habitar a velha casa que se erguia, altaneira, no lado norte da praça velha de Vila Alva. Mas suspeito que será a um singular ex-voto, oferecido em Outubro de 1784 ao Senhor Jesus dos Passos por lhe ter salvo a vida (exposto no Museu de Arte Sacra e Arqueologia da Misericórdia local), que os vilalvenses, já poucos, mais associarão o nome do dr. António Afonso.

 

Manuel António de Mira Cabo Coelho Perdigão (1777-18??), o avô de João Afonso, terá herdado de seu pai, o dr. António Afonso, o palacete da praça velha e, já nos derradeiros anos do século XVIII, nele feito importantes obras de beneficiação. Uma notícia publicada na “Gazeta de Lisboa”, em 1793, atribui-lhe a propriedade do “Palacio” [sic] considerado como o melhor de Vila Alva. Em 1794, D. Maria I concede-lhe carta de brasão de armas e, dois anos depois, fá-lo seu Cavaleiro Fidalgo. O senado da Câmara de Vila Alva, reunido a 28 de Fevereiro de 1819 nos paços do concelho com o clero, a nobreza e o povo da terra, ao acordar se “procedese á factura de um Relogio Publico, e tudo o mais a elle pertencente com caza torre e sino”, escolheu-o para encarregado da obra.

 

João Afonso, nascido em Vila Alva no ano de 1822, foi o terceiro filho do capitão António Afonso d’Arce Cabo Coelho Perdigão e de D. Maria Barbara Fernandes. Foi baptizado a 26 de Junho daquele ano “[…] em casa por assim o exigir a necessidade[…]”… como acontecia quando o recém-nascido corria perigo de vida. O seu irmão mais velho, António Afonso d’Arce Cabo Coelho Perdigão Júnior, casou com D. Ana Rita da Cruz Arce que, em 1875, já viúva, residiria no palacete de dois pisos da rua da Misericórdia, demolido nos finais da década de 1950 para dar lugar ao prédio que é hoje da Junta de Freguesia de Vila Alva e, mais recentemente, a um largo e palco disfuncionais. Miguel Afonso, outro dos seis irmãos de João Afonso, está ligado ao ex-voto acima referido, por o ter mandado retocar no ano de 1900, como se lê junto à margem inferior da tela. Um último familiar de João Afonso, que não pode ficar de fora desta breve relação, é a sua prima direita, Maria Benedita, filha de D. Josefa Micaela do Cabo Perdigão, sua tia paterna, e de António Alexandre Guedes Pimenta, natural de Beja. Ainda hoje se conta a história, passada de geração em geração, que a jovem, residente com a família naquela cidade, terá predito o seu falecimento, tendo alertado os pais que tal ocorreria numa futura visita a Vila Alva. Fantasia ou não, certo é que assim veio a acontecer, a 13 de Janeiro de 1857, aqui ficando sepultada, na galilé da igreja de São João Baptista…

 

Eis o que sobre os familiares de João Afonso aqui merece registo… Para além destas notas, o seu testamento constitui uma das principais fontes que nos permite aceder à sua pessoa, posses e também ao seu… carácter. Importa, pois, regressar a esse documento… um entre as quase duas centenas que integram o arquivo histórico da Misericórdia de Vila Alva.

 

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O LEGADO DE UM BENEMÉRITO

Entre o muito que deixou, João Afonso legou mais de um milhão de réis em numerário. Desses, perto de metade ficou para pobres dos mais necessitados da freguesia de Vila Alva, mas também de Vila Ruiva, de onde era natural sua mãe, bem assim para quem de perto o serviu em vida (criados, governanta, etc). Foi sua vontade que, no dia do seu enterro, se distribuísse pelos pobres da freguesia onde nasceu a quantia de vinte e quatro mil réis e que o seu corpo fosse conduzido, em caixão fechado, ao cemitério de Vila Alva por quatro pobres da terra, a cada um dos quais deixou dois mil e quatrocentos réis. Muito foi, também, o que deixou, tanto a familiares como a amigos, assim em dinheiro, como em inscrições do crédito público (mais de três contos de réis), prédios rústicos (milheiros de vinhas, courelas e olivais) e urbanos, como a moradia apalaçada que lhe serviu de residência. De destacar aqui o seu sobrinho, Luís Maria do Cabo Tição, a quem deixou todas as courelas de semear, dois milheiros de vinha com olivais, mais uma terra com oliveiras. Luís Maria, em 1913, presidiria a uma “oficina” maçónica existente em Vila Alva (Rui Vieira, 2005). Este dado é interessante porque, conhecendo-se a ligação da Maçonaria ao ideário republicano, permite lançar a questão da filiação ideológica de João Afonso… monárquico ou simpatizante da república?... A pergunta não é inocente e cruza-se com a presença em Vila Alva de… Manuel Joaquim da Silva Capello, comerciante, com loja na Praça, homem muito endinheirado, amigo próximo de João Afonso e… aqui assassinado, em 1880! Mas essa é outra história…

 

Regressando ao testamento… dos restantes bens, que seriam ainda muitos, João Afonso instituiu herdeiros os seus irmãos Miguel Afonso e Micaela Engrácia. Quis, todavia, que, após o óbito do último, a propriedade de todos os prédios rústicos e urbanos, de que por sua morte desfrutaram, passasse para a posse da Santa Casa da Misericórdia de Vila Alva, com a obrigação desta “[…] todos os annos a seguir, e em quinta feira maior, vestir doze pobres, constando o vestuário de sapatos, meias, camisas, ceroulas, lenço d’assoar, jaleca, calça, collete, capote e chapéo, sendo de brixe ou saragôça bôa, o fardamento e capote para cada um, e jantar para todos, e a dar no mesmo dia, de esmola a Maria Antonia Arvellos, em quanto viva a quantia de cincoenta mil réis, sendo o resto do rendimento d’esses bens aplicado em beneficio dos pobres d’esta freguezia e dos de fora que por aqui transitarem ou adoecerem”. Com esta decisão não se conformaram os irmãos de João Afonso, que entraram em litígio com a Santa Casa da Misericórdia de Vila Alva… O caso viria a arrastar-se ao longo de quase cinco anos, entre 1886 e 1891, tendo a Misericórdia de Vila Alva recorrido aos serviços do dr. Caetano de Magalhães, advogado com escritório em Lisboa, que acabou por ganhar a questão.

 

A variedade e a qualidade dos bens registados no seu testamento não deixam dúvidas quanto à fortuna de João Afonso, nem tão pouco quanto à posição de prestígio que terá ocupado na Vila Alva da segunda metade de Oitocentos.

 

Os cadernos de lançamento da derrama paroquial desta freguesia, relativos aos anos de 1875 a 1881, colocam-no entre as cinco pessoas com os maiores valores de contribuição total anual. No caso de João Afonso, esse valor situava-se acima dos quarenta mil réis, ascendendo, no ano de 1882, a mais de cem mil réis! Para contextualizar, refira-se que no ano de 1875, por exemplo, em Vila Alva, mais de metade dos contribuintes (51,2 por cento) pagaram menos de 2$000 [dois mil réis], sendo o valor médio das contribuições de 4$590. Naquele ano, o somatório dos tributos dos cinco maiores contribuintes (1,8 por cento do total) representou 21,2 por cento do valor total das contribuições dos 283 inscritos. Estes números dão bem conta da posição económica de destaque desta elite, no quadro de uma aldeia que, à época, diversos documentos referem como sendo muito pobre.

 

Tal como os seus antepassados, que ocuparam importantes cargos nas instituições da terra, assim aconteceu com João Afonso. No ano de 1860, presidia à comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia local.

 

O palacete que foi sua residência, erguendo-se altivo entre as vizinhas casas térreas, dá também um inequívoco sinal dessa notoriedade e riqueza.

 

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 O RECONHECIMENTO

Após a sua morte… com o século XIX a abeirar-se do fim, quis a Misericórdia de Vila Alva preservar a memória do seu benemérito, mandando fazer o seu retrato. Em livro de contas de receita e despesa, nas folhas relativas ao ano de 1894 a 1895, era então provedor Fernando Pires, pode ler-se: “o que se pode gastar num retrato do benemérito João d’Arce Cabo Coelho Perdigão 6$920 [réis]”. Não se sabe se a iniciativa se concretizou nessa altura e com esse orçamento. Certo é que o retrato foi feito. Dignamente emoldurado, está exposto, com os de outros beneméritos e provedores da Misericórdia de Vila Alva, numa sala do lar de idosos desta instituição. Inscrito no seu canto inferior esquerdo, pode ler-se: “Foto Albuquerque. Beja. 1927”.

 

Já nos alvores do século XX, corria o ano de 1903, cerca de quinze anos após a data da inauguração da Fonte das Bicas (ano de 1889), a nascente que a abastecia quase desaparecera. Esta situação levou a junta de Paróquia a propor se pedisse “[…] á mesa administrativa da Santa casa da Misericordia d’esta freguesia para ceder a favor dos habitantes da mesma, um deposito d’água [no sítio do Olheirão] que existe em propriedade que a dita Misericordia houve por legado de João d’Arçe Cabo Coelho Perdigão […] afim de communicala a canalisação já existente para a referida fonte”. Não demorou muito a Misericórdia de Vila Alva a reunir-se para analisar e dar parecer positivo ao pedido feito pela junta de Paróquia. A esta célere tomada de decisão não deverá ter sido alheio o facto de, nesse tempo, homens como Manuel Firmo d’Oliveira Motta e Manoel Joaquim Leiria Monteiro ocuparem lugares tanto na mesa administrativa da misericórdia como na junta de Paróquia de Vila Alva. O próprio prior José da Silva Roque, à época presidente da junta de Paróquia, já havia sido provedor da Misericórdia.

 

Que lição esta… de fraterna solidariedade e de sentido do bem comum. Hoje, as instituições da terra vivem nos seus caricatos feudos, quantas vezes estéreis, num alheamento confrangedor, com infortunados prejuízos para quem ainda aqui vive.

 

Por fim, em data desconhecida, mas que julgo anterior a 1911, a junta de Paróquia da freguesia de Vila Alva, por certo em sintonia com a vontade da misericórdia local, deu à rua até então conhecida por “… do Rossio”, o nome de “… João Afonso”. Porque aí persiste o seu palacete, proponho à Junta de Freguesia de Vila Alva que, com a autorização dos proprietários, faça colocar na frontaria do edifício a mais que justificada placa evocativa do homem que ali viveu e morreu… aliás… nessa ocasião, desafio a junta de freguesia, aproveitando estar com as “mãos na massa”, a colocar, por baixo da actual placa toponímica, uma outra, que recorde a quem suba a rua, que esta, durante séculos, foi conhecida por “rua do Rossio”. E assim manteremos viva a memória e fresca a identidade, cuidando verdadeiramente da tradição… aquela que alimenta e em que, de forma sustentável, se alicerça… o futuro!

 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

 

 

Fontes e Bibliografia

Arquivo histórico da Santa Casa da Misericórdia de Vila Alva:

Fundo da Santa Casa da Misericórdia de Vila Alva: Cx.9A, Doc.107; Cx.10B, Doc.135

Fundo da Junta de Paróquia da Freguesa de Vila Alva: Cx.2, Doc.12; Doc.15; Doc.17

“Gazeta de Lisboa”, 2.º Suplemento ao N. XXXI, Sábado, 3 de Agosto de 1793

ESPANCA, T. (1992) – Inventário Artístico de Portugal – Distrito de Beja. Vol. I, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, 439p.

VIEIRA, Rui Rosado (2005) – O Associativismo Alentejano na Cidade de Lisboa no século XX. Edições Colibri. Casa do Alentejo. 249p.

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