Um inquérito nacional sobre a saúde mental e o bem-estar dos cuidadores informais, divulgado no final de janeiro, dá conta que 83,3 por cento dos inquiridos admitem ter-se sentido em estado de burnout e 77,9 por cento reconhecem que precisam de apoio psicológico. Com base nas estimativas do Instituto de Segurança Social, haverá em Portugal cerca de 1,1 milhões de cuidadores informais. Destes, só cerca de 11 mil têm estatuto reconhecido e 2689 recebem subsídio. Jorge, Luzia e Maria são três exemplos de cuidadores informais que abdicaram da vida profissional e pessoal para apoiarem quem mais amam.
Texto Nélia Pedrosa
Jorge Tavares começou a perceber que algo não estava bem com a mulher há cerca de nove anos, no verão, quando passavam férias na casa de Almograve, Odemira. Maria Manuela insistia, aflita, que tinha perdido o telemóvel numa ida ao café. Depois de muito procurar, Jorge apercebeu-se que a mulher, afinal, tinha-o guardado na parte de cima do fato de banho. “Não se lembrava onde estava o telemóvel e nem sequer o sentia”, conta.
Um mês depois, outro sinal deixou-o em alerta: “Comecei a sentir falta de tempero na comida. Pensei: não, alguma coisa não está bem e levei-a a um médico particular. Fizeram-lhe o Teste do Desenho do Relógio [amplamente utilizado como teste de rastreio cognitivo e investigação de uma doença neurodegenerativa] e aí foi-lhe diagnosticado alzheimer”. Maria Manuela tinha 54 anos. A partir daí, e durante os sete anos que se seguiram, coube a Jorge tomar conta da mulher, 24 horas por dia, sete dias por semana. Foi obrigado a deixar o trabalho como tripulante de ambulância em Lisboa, onde o casal vivia. Algum tempo depois acabaram por trocar a capital pela casa de férias de Almograve. Jorge queria “dar outra qualidade de vida” à mulher.
O estado de Maria Manuela foi-se, entretanto, agravando. Há cerca de dois anos “a doença teve uma evolução muito grande”. Por vezes “tornava-se violenta”. Jorge “estava de rastos, fisicamente e psicologicamente”.
Já não aguentava mais. Numa consulta, a médica de família disse-lhe que a sua tarefa como cuidador informal já estava cumprida, que tinha chegado a hora de Maria Manuela ir para um lar. Se não fosse a médica, admite, ainda hoje seria cuidador da mulher.
“Uma vez o psicólogo que me acompanhou perguntou-me: ‘Jorge, qual é o seu limite?’. Respondi que seria quando tivesse de fazer a higiene [da mulher]. Ui, onde é que já ia esse limite. Se não fosse a médica a achar que estava na hora, acho que ainda a tinha aqui em casa. Foi uma vida inteira, estou casado há quarenta e tal anos, portanto, tanto é para o bom como é para o mau. Era difícil a separação. Tivemos o azar de ter esta doença. Eu, sozinho, não tinha tomado essa resolução”. Maria Manuela vive num lar em Beja desde janeiro de 2021. Há muito que não reconhece o marido.
Durante todo o tempo em que cuidou da mulher, Jorge sentiu-se sempre muito só, isolado, sem qualquer apoio por parte dos dois filhos ou de outros familiares. “Foi um cuidar 24 sobre 24 horas durante sete anos. Estive sempre presente e é desgastante, muito desgastante”, reforça. Maria Manuela dependia do marido para tudo. “Dava-lhe banho, mudava-lhe a fralda, dava-lhe a comida. Só quem passa por elas é que sabe”.
Por intermédio de uma pessoa amiga acabou por chegar ao gabinete Cui(DAR)+ – Gabinete de Apoio à Pessoa Cuidadora de Odemira, criado pela Taipa – Organização Cooperativa para o Desenvolvimento Integrado do Concelho de Odemira, em 2018.
“Enviei um email e eles, gentilmente, enviaram uma equipa cá a casa para avaliar a situação. Comecei a ter apoio psicológico, muito bom, só tenho a enaltecer os médicos que sempre me acompanharam e sempre me ouviram. Ao mesmo tempo a minha mulher era acompanhada por uma técnica ocupacional”. Jorge deixou de ter apoio psicológico quando a mulher entrou para o lar. Mas, por vezes, ainda sente essa necessidade. “Não é fácil, é tudo ainda muito recente”.
Aos 62 anos, diz que é “uma sombra” daquilo que era. Que, às vezes, não se revê nas fotografias. “Deixei de cuidar de mim em tudo, naquela vaidade que uma pessoa às vezes tem… a pessoa esquece-se de si própria, o cansaço por vezes é tão grande, tão grande, que a pessoa já não quer saber de si”.
Aos poucos, “muito devagarinho”, vai recuperando algumas das suas rotinas anteriores ao diagnóstico de Maria Manuela. Voltou a fazer bodyboard e surf. Mas, sublinha, a experiência como cuidador “é muito marcante, traumatizante”, e os impactos mantêm-se por muito tempo.
MAIS DE 80 POR CENTO DOS CUIDADORES JÁ SE SENTIRAM EM BURNOUT
Segundo um inquérito nacional sobre a saúde mental e o bem-estar dos cuidadores informais, divulgado no final de janeiro, 83,3 por cento dos inquiridos admitem ter-se sentido em estado de burnout e 77,9 por cento reconhecem que precisam de apoio psicológico.
O inquérito, realizado pela Merck, com o apoio do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais e coordenado pela psicóloga Ana Carina Valente, do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas (ISPA), mostra ainda que 78,5 por cento consideram que o seu estado de saúde mental influencia o desempenho do seu papel de cuidador informal e cerca de metade diz não ser capaz de rir e ver o lado positivo como antes.
Apesar de 77,9 por cento reconhecerem a necessidade de apoio psicológico, menos de metade destes procuram e usufruem deste apoio.
O estudo nacional conclui que a maioria destes cuidadores se vê numa situação de vulnerabilidade – psicológica, emocional e social – e mostra que mais de seis em cada 10 (63,7 por cento) sentem dificuldade em estar à vontade ou descontraídos. Os dados revelam igualmente que 45,7 por cento se sentem muitas vezes ansiosos/contraídos e que 37,4 por cento perderam a vontade de cuidar de si.
O inquérito abrangeu mais de 1100 cuidadores, que responderam entre os dias 3 de novembro de 2022 e 4 de janeiro de 2023.
Com base nas estimativas do Instituto de Segurança Social, haverá em Portugal cerca de 1,1 milhões de cuidadores informais. Segundo dados avançados pela “Lusa” em novembro passado, cerca de 11 mil tem estatuto reconhecido e, desses, 2689 têm subsídio atribuído.
Por cuidador informal entende-se “o cidadão que presta cuidados permanentes ou regulares a outros (familiares) que se encontram numa situação de dependência (pessoa cuidada)”.
Os dados do inquérito nacional realizado pela Merck não surpreendem a coordenadora do gabinete Cui(DAR), Teresa Barradas. “A tendência do cuidador/a é de dedicar-se a 100 por cento à pessoa cuidada, descurando o seu próprio bem-estar. Esse aspeto é a causa principal para que facilmente cheguem ao estado de burnout. Contudo, a ausência de recursos por parte da maioria dos/as cuidadores/as para aceder ao apoio psicológico necessário leva a que este seja um problema que se arraste no tempo, agudizando a situação até, por vezes, levar à total incapacidade psicológica para continuar a prestar cuidados”.
Graças a respostas como o Cui(DAR)+, adianta a também vice-presidente da Taipa, os cuidadores “sentem-se mais amparados quer social, quer psicologicamente e, também, mais capacitados para as funções e tarefas de cuidar de alguém que lhes é querido”.
E prossegue: “Como a aposta desta resposta tem foco nestas duas figuras centrais – o/a cuidador/a e a pessoa cuidada – com a experiência comprovada de que o bem-estar de um é por si um fator essencial na promoção da qualidade de vida do outro, os/as cuidadores/as aderentes ganham a consciência de que não devem priorizar apenas o bem-estar da pessoa cuidada, devendo também olhar para o seu próprio bem-estar como algo essencial à continuidade do seu papel”.
O Cui(DAR)+ ajuda a pessoa cuidada, “que está, maioritariamente, centrada no bem-estar do outro, a olhar também para as suas necessidades e a encontrar um equilíbrio entre as funções de cuidador/a e as suas próprias necessidades de autocuidado, dando destaque ao bem-estar emocional”, acrescenta.
As “fragilidades” que observam nos cuidadores acompanhados pelo gabinete, sublinha a responsável, são, sobretudo, “ao nível da sobrecarga que o papel de cuidador/a assume nas suas vidas, com consequências ao nível da sua saúde mental, mas também físicas”.
“Sendo um papel que assumem sem estar, na sua grande maioria, preparados e/ou capacitados para assumir, os/as cuidadores/as sentem-se muito inseguros sobre a forma como devem prestar os seus cuidados e isso é também por si gerador de stresse e de ansiedade”.
Segundo Teresa Barradas, o gabinete Cui(DAR)+ surgiu “como resultado da candidatura da Taipa ao Instrumento de Financiamento Parcerias para o Impacto, da estrutura de missão Portugal Inovação Social, que foi executada entre novembro de 2018 e outubro de 2021”, e “espelhou um conjunto de reflexões e preocupações perante o bem-estar e a qualidade de vida da pessoa cuidadora que decorrem no concelho de Odemira, sendo este um território caracterizado por um duplo envelhecimento populacional e com um elevado índice de dependência do idoso, ambos aspetos como consequência de um aumento da esperança média de vida, tornando evidente a crescente preocupação com a nova configuração do que é ser-se pessoa cuidada e, por conseguinte, do que é ser-se cuidador/a informal”.
No momento em que a candidatura surgiu, em maio de 2018, frisa a coordenadora, o tema do estatuto do cuidador informal “ainda não estava na agenda política, até porque só no mês seguinte é que foi criada a Associação Nacional de Cuidadores Informais e só no ano seguinte se começaram a discutir as questões sobre a definição dos direitos e deveres dos/as cuidadores/as informais”.
Quando a Taipa e a Câmara de Odemira, enquanto investidor social do projeto, anunciaram a criação do gabinete, acabaram por “surgir da parte de alguns municípios pedidos de reunião para darmos a conhecer a nossa resposta local e, como tal, inspirámos muitos territórios a nível nacional a ponderar a criação do seu próprio gabinete”, diz Teresa Barradas.
Na ocasião “já existiam algumas associações, como a Alzheimer Portugal, esta mais centrada nos cuidadores de pessoas com alzheimer, e respostas mais a norte, não existindo respostas efetivas para esta questão a sul do País”.
O projeto acabou, assim, adianta, “por ser pioneiro a nível regional”, até pelo formato de intervenção que apresentou, “focado também na promoção da autonomia da pessoa cuidada”, porque “esta promove, de forma direta, uma menor sobrecarga da pessoa cuidadora”.
DO PONTO DE VISTA LABORAL DO CUIDADOR, "É O DESCALABRO"
Para Catarina Pazes, enfermeira coordenadora da Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja +, da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), os números do inquérito também não constituem qualquer surpresa.
“Do nosso ponto de vista enquanto prestadores de cuidados de saúde, e numa área tão específica como os cuidados paliativos, o que encontramos, normalmente, são cuidadores que querem cuidar, que estão a cuidar por sua vontade, e estão a manter esses cuidados, mas estão completamente cansados de toda uma situação de sofrimento não tratado, não aliviado, não acompanhado”, até porque, adianta, existem questões que “têm a ver com a própria tomada de decisão que os processos de doença implicam: se é melhor ir àquela consulta, se não é melhor, será que faz sentido fazer aquele exame, será que faz sentido procurar uma segunda opinião”.
“As pessoas estão muito cansadas fisicamente, é verdade, mas não é só por isso, é que todo o processo de doença e de dependência traz muita angústia, muita incerteza face ao futuro, muita incerteza face àquilo que se deve fazer e não se deve fazer, e os cuidadores precisam desse apoio”, refere.
Do ponto de vista laboral do cuidador, considera a enfermeira, “é o descalabro”. “É muito difícil alguém tomar a decisão de cuidar de outra pessoa e essa decisão não ter repercussões na vida profissional, e isso é de uma injustiça enorme”.
“Claro que cuidar tem um lado bom, tem um lado bastante positivo do ponto de vista humano e do retorno que a pessoa tem ao nível da relação que tem com a pessoa cuidada, mas isso também tem a ver com a relação que já existia antes de a dependência estar instalada”, acrescenta.
Catarina Pazes sublinha que o impacto económico que os cuidadores informais têm no País “é enorme”, mas que esse impacto só é avaliado pelo lado negativo, “que é a abstenção laboral”. “Se um trabalhador deixa de ir trabalhar para ficar em casa a cuidar de alguém é [visto como] um custo para o sistema, mas não é. Ele está a poupar ao sistema muito dinheiro ao assumir cuidados a uma pessoa dependente”.
A enfermeira defende, assim, a necessidade de se ter “uma atitude muito mais preventiva”. “É claro que precisamos de psicólogos, que apoiam estas pessoas, são uma parte da resposta, mas toda esta situação não deixa de existir se tivermos psicólogos para todos. A outra parte da resposta tem de ser outro tipo de apoios a montante para que as pessoas não cheguem ao estado de exaustão. Precisam de apoio ao longo de todo o processo, precisam de não se sentir prejudicadas no seu trabalho”, justifica, frisando que “ser cuidador informal é algo que nos toca a todos em algum momento da nossa vida, sermos cuidadores informais ou sermos pessoas cuidadas”.
“Isto tem de ser visto como um investimento absolutamente imprescindível e não como um custo. Se dermos mais condições às pessoas para cuidarem e para viverem melhor todo este processo de cuidar, também vamos poupar muito a nível do custo que temos na saúde com a pessoa cuidada e até mesmo com a pessoa cuidadora”, conclui.
"A MINHA MÃE MERECE QUE CUIDEMOS DELA"
Luzia Raposo, de 62 anos, está há quase seis a tomar conta da mãe, Gertrudes, de 91, também com alzheimer. Nos últimos dois, tem dividido essa tarefa, de três em três meses, com a irmã. Quando a mãe foi diagnosticada, Luzia decidiu desfazer-se da sua loja de lingerie, “a única na cidade de Moura”. Não teve tempo sequer para ponderar. A sua intenção era ir acompanhando a mãe ao mesmo tempo que ia seguindo com a sua vida. Cada uma em sua casa. Uma queda aparatosa de Gertrudes a 9 de março de 2017 deitou por terra os planos de Luzia.
Nessa noite dormiu em casa da mãe e nunca mais de lá saiu. O marido seguiu-lhe os passos. “Eu disse ao meu marido que estava completamente à vontade, que a mãe era minha e que ele tinha a nossa casa. Ele respondeu que onde está um, está o outro, e que também gostava da minha mãe. Não trouxemos sequer uma cadeira de nossa casa, a minha mãe tem tudo. Fomos trazendo a nossa roupa a pouco e pouco e cá estamos”.
Gertrudes foi sempre “uma pessoa extremamente ativa, muito guerreira”, conta Luzia. Nunca foi mulher “de televisão, de estar sentada”. Ficou viúva aos 45 anos, com duas filhas. Embora o marido tivesse deixado poupanças, “arregaçou as mangas” e arranjou trabalho para que nada faltasse às filhas. “Só tínhamos falta da presença do nosso pai, não sentimos mais nada, porque a minha mãe nunca permitiu. E é também por isso que somos cuidadoras, porque a minha mãe merece que cuidemos dela”, diz.
Gerturdes depende de Luzia “99 por cento”. Comer pela própria mão é a única tarefa que mantém. Apesar de o fazer com uma colher de sopa, sempre num prato fundo, e com a filha ao lado a incentivá-la continuamente. Tudo o resto, desde o levantar ao deitar, passando pelo vestir, pelo banho, pela medicação, é da responsabilidade de Luzia.
Com o passar dos anos, e devido a vários problemas de saúde “confirmadíssimos” – Luzia sofre de “dor permanente” desde os 25 anos, aos 30 foi-lhe diagnosticada fibromialgia e há nove artrite reumatoide –, admite que as dificuldades são cada vez mais notórias.
“Fico completamente deformada, e a minha mãe é uma senhora grande, come bem, é muito bem tratada, e é tudo à base da minha força, com todo o sacrifício. É extenuante muitas vezes, muito duro”.
Uma das filhas de Luzia, que é enfermeira, já lhe disse que não aguentará “muitos mais anos”. Embora não possa dizer nunca, não concebe a ideia de a mãe ir para um lar. “Se tiver de ir a um hospital todos os dias vou, sem problema. Mandam-me a um lar e eu não vou. Sei que são muito necessários e que nem toda a gente encara as coisas como eu encarei, mas, pronto, não sei se é o amor que eu tenho à minha mãe.., mas não é só isso, é a doçura dela, é o ‘se faz favor’, o ‘obrigada, filha’”.
Só depois das oito da noite, quando a mãe adormece, é que Luzia tem algum tempo para respirar. Mas, mesmo assim, dorme todas as noites com uma câmara de bebé “em frente à cara”, para ir vigiando a mãe. Às quintas-feiras, tira uma hora para si. Vai beber “um café de máquina e fumar um cigarro” na esplanada junto à sua antiga loja. Depois sobe a rua e vai à cabeleireira. As dores nos ombros e nos braços não permitem que lave a cabeça em casa. O tempo é quase cronometrado.
“O meu marido deixa-me no café e volta para casa para junto da minha mãe. Quando estou quase a terminar na cabeleireira, telefono para ele me ir buscar. Quando ele chega já estou pronta e volto para casa”.
O ser humano “é um animal de hábitos”, sublinha Luzia, que já se habituou a “estar recolhida”. Nos três meses em que a mãe está em casa da irmã, em Évora, “já pouco aproveita” o facto de estar mais disponível. “Não sou mulher para me estar a arranjar e para ir tomar um café e voltar para casa, para mim é tempo perdido. Também não me dá gozo andar de loja em loja. Gosto de sair à sexta-feira à noite, ao sábado à noite, petiscar com amigos, beber uma cerveja e fumar, é o melhor remédio para mim”. Mas, por questões monetárias, tal nem sempre é possível.
Apesar da exaustão, física e emocional, Luzia nunca recorreu a acompanhamento psicológico, porque não tem tempo. Mas, admite, que já se sentiu “em baixo” mais pelas “crises brutais” de dor que quase a impedem de sair da cama. “Às vezes, quase a chorar, digo ao meu marido que não sou capaz, e ele diz ‘tens de ser, ela está lá à tua espera’”.
Não se pense, no entanto, que Luzia é infeliz, “uma desgraçada”. Muito pelo contrário. “Ser dona de casa é uma das coisas piores que há para mim. Neste momento sou dona de casa, sou cuidadora, que são coisas que se calhar podem preencher muitas mulheres, mas o meu estilo de vida nunca foi esse. Mas é isso que eu sou. É esta a minha vida. Mas rio-me muito também. Sou uma mulher muito feliz, graças a Deus, porque tenho uma família muito gira, porque tenho um marido espetacular”.
“Voltei a ter um menino” "VOLTEI A TER UM MENINO"
Maria*, de 61 anos, é cuidadora do filho desde novembro de 2019, quando João*, então com 26, teve uma paragem cardiorespiratória que lhe deixou lesões para o resto da vida. Tinha acabado há pouco tempo o mestrado em Física Aplicada, dava explicações num centro em Almada e andava à procura de trabalho. “Tenho um homem que vai fazer 30 anos em março, mas voltei a ter um menino”, sublinha.
Os primeiros tempos foram de grande angústia, de grande incerteza, mas também de esperança. “Ninguém sabia como é que ia ficar, só o tempo o diria”. Mas Maria nunca pensou que fosse “perder” o filho. Já o marido estava mais consciente do estado de saúde de João. “O meu marido estava mais por dentro das coisas. [Os enfermeiros e médicos] a mim pouparam-me mais”, frisa.
Após João ter alta hospitalar, seguiram-se meses de terapias, nomeadamente, no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, no concelho de Cascais, o que obrigava Maria e o marido a estarem longas temporadas longe de casa, no distrito de Beja. O marido voltou ao trabalho, depois de uma pausa de seis meses, e Maria passou a acompanhar o filho sozinha. No mês de agosto de 2020, recorda, a exaustão era tal que foi o marido, então de férias, que foi com o filho às terapias. No mês seguinte, com o regresso do marido ao trabalho, Maria voltou às viagens de carro entre o Alentejo e a capital, um “desgaste enorme”.
Foi por essa altura que pediu à médica de família que a encaminhasse para uma consulta de psicologia no centro de saúde. O marido ainda falou com uma psicóloga a título particular, mas “eram 50 euros à hora”, e com as despesas das terapias, “o dinheiro não dava para tudo”. Em finais de novembro, até porque João “já só ia pela terapia ocupacional”, Maria decidiu que era hora de regressar a casa com o filho e tentar cuidar dele o melhor que conseguisse.
Esteve quase mais um ano a cuidar de João 24 horas por dia, sete dias por semana. Só saía, praticamente a correr, para comprar pão. As compras “mais demoradas” eram feitas pelo marido, quando regressava do trabalho.
Desde setembro de 2021, que João, que tem uma incapacidade de “86 por cento”, frequenta um centro de atividades e capacitação para a inclusão. Sai de casa de manhã e regressa ao início da tarde. Maria diz que o filho conhece a família toda, sabe os nomes dos tios, das tias, dos primos. Um dos grandes problemas é a memória mais recente.
“Se vem alguém aqui a casa, ao fim de um bocadinho pergunto-lhe quem é que o veio ver e ele, aí, já não sabe, encolhe os ombros”. Também lhe falta iniciativa para quase tudo. Para se levantar, para fazer a sua higiene diária, para vestir-se, para se alimentar. “Nós pensamos e fazemos, e o meu filho tem falta do tempo dele e muitas das vezes não consegue lá chegar”, sintetiza.
Maria continua a ser acompanhada pela psicóloga no centro de saúde. Diz que tem sido uma grande ajuda em todo este processo. “A pessoa vai lá e fala e chora, se tem de chorar. Já consigo falar no que aconteceu e no princípio não era capaz”. É claro, sublinha, que “como dizem os mais antigos, o tempo vai atenuando as coisas”. Aceitar, é que nunca irá aceitar, garante.
“Quem é a mãe que aceita uma coisa destas para o filho? Se me perguntarem se me vou habituando à situação, aí, sim, o tempo vai-nos acalmando um pouco. Agora aceitar, não, e depois perde-se muita coisa, deixa-se de acreditar, perguntamos se realmente há Deus ou não, e é uma revolta muito grande que fica”.
Apesar de tudo, e à semelhança de Jorge Tavares, aos poucos, Maria vai retomando algumas das suas rotinas. Já faz caminhadas com as amigas. Já vai às compras. “Não tenho a alegria que tinha, não é igual, mas voltei um pouco mais à normalidade”.
*Nomes fictício
42 POR CENTO DOS ATENDIMENTOS FEITOS PELO CUI8DA9+ DIZEM RESPEITO A APOIO PSICOLÓGICO
Em 2022, “foram acompanhados/as 81 cuidadores/as e realizados 1287 atendimentos” pelo gabinete Cui(DAR)+”, da Taipa. Desde o início do ano, conta com mais duas novas adesões, totalizando as 120 desde a sua criação. Nestas primeiras semanas de 2023 foram acompanhados 68 cuidadores e efetuados 177 atendimentos.
Os cuidadores atendidos pelo gabinete são, maioritariamente, mulheres (80 por cento), têm uma idade média de 63 anos e são, na maioria, cônjuges (34 por cento) ou filhos/as (46 por cento) da pessoa cuidada. Quarenta por cento do total de cuidadores têm 65 ou mais anos.
“Temos uma dimensão muito grande de pessoas idosas a cuidar de outras pessoas idosas”, frisa Teresa Barradas. Haverá, certamente, sublinha, cuidadores no concelho que ainda não recorreram ao gabinete, por várias razões, nomeadamente, “não se reconhecerem a si mesmos como cuidadores/as informais, existindo ainda muita falta de informação sobre este papel”, não terem “conhecimento da existência do gabinete”, sendo que a divulgação tem sido uma “aposta fundamental da parte da Taipa e dos parceiros, embora existam “ainda desafios, como investir numa divulgação mais eficaz nos meios mais isolados/interior do concelho e junto das pessoas que não têm acesso digital à informação e às redes sociais”.
Existirão, ainda, cuidadores/as que, apesar de conhecerem a resposta, “consideram não necessitar de qualquer apoio, sobretudo, ao nível do apoio psicológico, pois ainda existem algumas reservas em relação ao tema da saúde mental sendo que, a maioria dos cuidadores coloca a saúde das pessoas cuidadas à frente do seu próprio bem-estar”.
Felizmente, adianta a coordenadora, “este paradigma em relação à saúde mental tem sido desmistificado e muitas das adesões que têm acontecido nos últimos dois anos devem-se à procura de apoio psicológico, sendo que, atualmente, 42 por cento dos atendimentos do gabinete respeitam a apoio psicológico”.
Para além do acompanhamento psicológico e social, “no sentido de facilitar a ausência do/a cuidador/a por motivos de força maior, seja por questões pessoais ou profissionais (quando aplicável)”, o gabinete tem como resposta a componente de Descanso do Cuidador, “que permite que o/a cuidador/a se possa ausentar, deixando a pessoa cuidada ao cuidado de um/a profissional das áreas de saúde e/ou da prestação de cuidados, com capacidade de resposta de acordo com a especificidade das necessidades da pessoa cuidada, em contexto doméstico, sem o/a retirar da sua área de conforto”.
ESTATUTO DO CUIDADOR INFORMAL "CARECE DE AMADURECIMENTOS"
O estatuto do cuidador informal foi publicado em 2019. Após um projeto-piloto em 30 concelhos, no início de 2022 foi alargado a todo o território nacional.
Segundo dados avançados pela “Lusa” em novembro passado, havia cerca de 11 mil cuidadores informais reconhecidos em Portugal e, desses, 2689 tinham subsídio atribuído. A coordenadora do Grupo de Trabalho do Cuidador Informal da Segurança, Helena Nogueira, citada pela referida agência, reconheceu que “não tem sido um processo fácil”. “Continuamos a trabalhar na simplificação. É uma aprendizagem contínua. É uma medida social recente, que carece de amadurecimentos e de tempo para podermos continuar esta caminhada”.
O “Diário do Alentejo” questionou o Instituto de Segurança Social sobre o número de cuidadores informais com estatuto reconhecido no distrito de Beja, o número de pedidos em análise e o valor médio do subsídio usufruído, mas não obteve resposta em tempo útil.
APOIO PSICOSSOCIAL FAZ UMA DIFERENÇA "MUITO GRANDE"
A equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja +, da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, conta, desde 2019, através de uma candidatura apresentada à Fundação La Caixa, com uma equipa de apoio psicossocial, que “dá suporte aos doentes e seus cuidadores”, e que, nas palavras de Catarina Pazes, faz uma diferença “muito grande”.
“Já tínhamos identificado há bastante tempo como uma necessidade. Não daremos o suporte todo que nós achamos que as pessoas mereciam e que deviam ter, mas é diferente ter um psicólogo que passa a conhecer aquela família e que passa a dar um apoio, que passa a ter um contacto telefónico com quem falar e com quem desabafar determinadas situações. É um suporte que nós temos diferente e diferenciado. Já não imaginamos a equipa sem este suporte psicossocial”.
Para além disso, está também a ser promovido, pela referida equipa de apoio psicossocial, um projeto-piloto de voluntariado em cuidados paliativos, em parceria com o Grupo de Apoio de Beja da Liga Portuguesa Contra o Cancro e financiado também pela Fundação La Caixa, que se centra nas “necessidades e no conforto do doente e da sua família”.