Diário do Alentejo

Uma história de superação a propósito do Dia Mundial da Luta Contra o Cancro

03 de fevereiro 2023 - 14:00
Sábado, 4 de fevereiro, assinala-se o Dia Mundial da Luta Contra o Cancro
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Aos 34 anos, Liliana Carvalho descobriu um nódulo na mama. Os resultados dos exames confirmaram o diagnóstico que suspeitava. Esteve em tratamento cinco meses, em conjunto com a mãe que também “reagia” a um cancro nos ovários. Hoje, passados três anos, recorda as viagens para Lisboa, as sessões de quimioterapia e a positividade que teve quando tudo parecia desabar à sua volta.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Em março de 2020 escolas, bares, discotecas e restaurantes começavam a fechar. As ruas praticamente desertas eram um espelho do medo do desconhecido e do que ele poderia causar. Liliana Carvalho, a trabalhar numa cadeia de hipermercados em Beja, era uma das poucas pessoas autorizadas a circular. A rotina do “voltar da rua”, depois de um dia inteiro de atendimento ao público, passou a ser cronometrada: despir, no alpendre de casa, a roupa que trazia, correr para o banho, vestir o pijama e brincar com as filhas. Contudo, numa dessas tardes, durante o banho, notou “algo” que não era seu.

 

“Um dia cheguei cansada do trabalho e como só me queria despachar para ir para o sofá com as miúdas tive preguiça de apanhar a esponja do banho e comecei a lavar o corpo com as mãos. Quando cheguei aos seios lembrei-me de fazer a palpação e reparei que tinha algo que não era meu”, começa por contar ao “Diário do Alentejo” (“DA”).

 

O espírito pragmático que sempre teve não a deixou preocupar sobre o assunto durante o fim de semana e só na segunda-feira seguinte, quando chegou ao trabalho, pediu a uma colega mais velha para lhe confirmar que o que ela tinha sentido não era “normal”. No próprio dia, aconselhada pelo médico do trabalho, marcou os exames necessários e esperou.

 

“Nesse dia marquei uma ecografia e na quinta-feira fui fazê-la. O profissional que me fez o exame disse-me logo que, pela experiência dele, eu tinha um tumor na mama e que agora faltava saber, através de uma biopsia, se era benigno ou não”, diz.

 

Liliana, com 34 anos e duas filhas pequenas, não se alarmou. Sabia o que a esperava dali adiante, mas, sem uma confirmação de que se tratava de um cancro, não pensaria sobre o assunto. Optou por, numa primeira fase, não dizer a ninguém.

 

“Eu pus na cabeça que as minhas filhas não iam ficar sem mim e a minha mãe também estava a precisar muito de mim, por isso não havia outra solução senão ser pragmática. O que é que é preciso fazer? Isto, isto e aquilo. Então, vamos lá!”, refere.

 

A DOR DO CONTAR A QUEM SE AMA

O ar decidido e prático com que Liliana olhou para a doença foi também um reflexo do “murro no estômago” que levou meses antes. No início do ano, após uma época festiva “feliz e tranquila”, a mãe de Liliana, com 53 anos, foi diagnosticada com um cancro agressivo.

 

“A minha mãe, dois dias depois do Natal, começou a ficar muito indisposta e quando fomos ao hospital no dia 3 [de janeiro de 2020] tivemos logo o diagnóstico de que ela tinha um tumor maligno nos ovários”, revela.

 

O embate inicial de um diagnóstico que nada nem ninguém fazia prever fez com que Liliana se tornasse o suporte da mãe e, por isso, no momento em que recebeu a notícia da sua própria doença oncológica não havia forma de desabar. Em conjunto com os irmãos optou por, inicialmente, não lhe contar.

 

“O murro do estômago do diagnóstico da minha mãe foi bem pior do que o meu, mas o não lhe poder contar foi angustiante. Lembro-me que um dia estava no IPO [Instituto Português de Oncologia] a fazer uma série de exames e ela começou a ligar-me imenso e eu não a podia atender porque estava cansadíssima e não lhe ia conseguir mentir. Eu omitia as coisas, não lhe mentia propriamente, por isso sabia que se ela me perguntasse onde é que eu estava eu ia dizer-lhe a verdade e eu não queria”, conta.

 

A necessidade de proteger aqueles que a rodeavam, principalmente a mãe Elisabete, foi o mote que Liliana seguiu durante o seu percurso de tratamento. “A minha mãe sempre nos passou, desde pequeninos, aquela ideia de que não valia a pena chorar, e eu chorei muito, sozinha dentro do carro, mas quando saía ninguém se apercebia de nada. Porque eu ia ver a minha mãe ao lar, mesmo que distantes por um vidro ou uma varanda por conta da pandemia, e ela tinha de me ver bem”, confessa. Completa: “Fiquei angustiada durante muito tempo por não lhe poder contar, porque eu precisava do colo dela e não podia, uma vez que ela estava em tratamento, demasiado frágil com tudo, e se eu ainda lhe fosse dizer…”

 

Mais tarde contou. E ainda que o tenha feito em modo “débito de informação”, para não a preocupar, sabe que foi um dos momentos mais dolorosos para ela.

 

OS CUIDADOS PALIATIVOS DÃO VIDA

Dois dias antes do seu aniversário, Liliana iniciou a sua primeira sessão de quimioterapia no IPO, um ciclo de três antes da cirurgia, num total de seis. Por ser nova recebeu a terapêutica máxima, porque o “corpo aguentava”, e passou uma noite “péssima”.

 

“A primeira noite após a quimioterapia foi muito má. Eu estava péssima, só a vomitar e sem me conseguir praticamente levantar da cama. Decidi que queria o apoio dos cuidados paliativos, porque queria viver e ter qualidade de vida enquanto tratava a doença e isso só podia acontecer assim”, explica.

 

No dia seguinte estava “impecável”, dentro dos possíveis. Conta, com um sorriso na cara, que pôde celebrar os seus 35 anos com a família e “comer o bolo de aniversário”.

 

A ideia de que os cuidados paliativos são apenas para pessoas em fim de vida, para Liliana, é completamente errada. “O ter recorrido aos cuidados [paliativos] facilitou-me imenso no processo, porque, por exemplo, se a equipa não estivesse estado na minha casa naquele dia muito provavelmente a minha família ter-me-ia levado ao hospital mais tarde e assim recebi a terapêutica mais cedo e no conforto da minha casa”.

 

Daí em diante, “em todos os outros tratamentos, os cuidados paliativos estavam lá”.

 

O ISOLAMENTO DO CANCRO

Liliana foi diagnosticada em abril e terminou as sessões de quimioterapia passados cinco meses, no último dia de agosto. Durante este tempo, enquanto reagia a um cancro na mama, o resto das pessoas estavam focadas nas consecutivas vagas da covid-19. Enquanto a maioria da sua família e amigos estava em casa, Liliana era mandada parar e apresentar a sua justificação para circular entre concelhos sempre que se deslocava a Lisboa para exames.

 

“Eu nunca vivi a pandemia como um entrave, porque se eu já tinha um cancro... Caso morresse disto ou por causa de complicações da pandemia era igual. Por isso não deixava de viver, se ia a Lisboa fazer tratamentos e quisesse estar com amigos, chamava-os”, afirma. “Eu estava a enfrentar um cancro. Eu só queria viver. Tudo o que eu menos queria era colocar-me em isolamento”.

 

A solidão por si só, que a maioria das pessoas sente quando está em tratamento, foi, para Liliana, ainda mais acentuada com o medo que as outras pessoas tinham de a infetar. O tempo em que esteve em casa, após as sessões de quimioterapia, foi “duro”, por uma simples razão: “ninguém aparecia”.

 

“Deixei de atender telefonemas em modo de defesa, porque as pessoas ligavam a perguntar como é que eu estava, já com uma voz triste que enervava. Como é que uma pessoa, que está a levar porrada de todos os lados, está? Bem não há de estar, cabelo também não deve ter … por isso não está lá muito bem. Se a pessoa quiser, aparece!”, diz.

 

Ainda que saiba que a maioria dos amigos e familiares não o fez com medo de que ela quisesse “viver o momento sozinha”, garante que “quando a pessoa quer estar sozinha nesta altura ela verbaliza” e, por vezes, quando a ajuda chega em ações, “como o trazer o jantar”, é um alívio.

 

DESMITIFICAR A PALAVRA “CANCRO”

Para Liliana, que enfrentava uma doença oncológica ao mesmo tempo que a mãe, a leveza com que encarou todo o processo não a surpreendeu. Sempre se considerou “exageradamente” positiva e objetiva e, por isso, a forma como reagiu facilitou a aceitação.

 

“A forma como se reage é que é importante. Se a pessoa for positiva por si só já é meio caminho andado, porque tens um cancro, a palavra é pesada, sim, mas se tu não encarares a coisa com um ‘bora lá, vamos a ele!’ ou um ‘já está, não há nada a fazer, temos de ir a ele’ vai ser pior”, confessa.

 

A palavra “lutar”, utilizada muitas vezes quando alguém está em tratamento, não é do seu agrado. Para Liliana, numa luta “há sempre quem ganha e quem perde” e “mesmo que um dia venha a morrer do cancro, eu não perdi. Simplesmente aconteceu, da mesma forma que posso morrer de acidente”.

 

“Independentemente da forma como tu encaras, acabas sempre por ganhar quase uma vergonha de dizeres [aos outros] que tens cancro, porque estás com cancro e encaras aquilo com uma leveza e a pessoa do outro lado é que está triste”, confessa.

 

A celeridade com que viveu toda a situação fez com que, por vezes, fosse “egoísta” ao achar que quem estava à sua volta compreendia a doença de maneira idêntica.

 

“Um dia sugeri à minha mãe fazermos uma sessão de quimioterapia juntas, mas custou-lhe muito. Eu tinha imaginado um alto programa onde íamos almoçar juntas, ainda que os restaurantes estivessem todos fechados por causa da pandemia, e íamos estar um dia inteiro uma com a outra”, começa por contar. Contudo, no dia seguinte, “a minha mãe partilha que foi tudo menos um dia bom e que não queria repetir, porque eu estava ali como filha com o pensamento de que estava ao lado dela [a dar-lhe apoio] e ela ao meu, mas a minha mãe não viu assim. Ela só viu a filha, ao lado dela e a levar com aquilo tudo. E eu não tinha pensado na perspetiva dela”.

 

O RÓTULO DA DOENÇA 

A questão do “ficar careca” é um dos assuntos que Liliana acha importante que se fale, porque, acima de tudo, traz consigo uma carga emocional acrescida. O aumento de peso e a queda de cabelo, pestanas e sobrancelhas, aliados ao aspeto psicológico de quem está a ultrapassar uma doença desta dimensão, transmitem uma sensação de impotência e de perda.

 

“Cheguei a passar pelo espelho e pensar ‘quem é esta?’, porque não era eu, estava completamente desfigurada, porque ganhamos um peso exorbitante por causa dos tratamentos e perdemos cabelo, pestanas, sobrancelhas… perdemos tudo. Não me reconhecia, mas estava lá”, relembra.

 

Também a exposição que estes efeitos secundários causam perante os outros mexe com o psicológico de quem “está fraco e a combater esta doença”.

 

“Eu posso ter um cancro, porque existem, em que a terapêutica não faz cair cabelo e por isso não ficar tão exposta. A pessoa tem, faz e passa de forma resguardada. Este cancro expõe-te a tudo e a todos, com todas as alterações a que estamos sujeitos”, diz.

 

Liliana conta até que, a certa altura, face à improbabilidade de mãe e filha passarem pela mesma doença ao mesmo tempo, “houve um período em que muita gente me viu de cabelo curto e achou que eu estava a ser solidária com a minha mãe”.

 

A 31 de agosto de 2020 terminou as sessões de quimioterapia. Respirou fundo. Viveu uns meses de tranquilidade. Algum tempo depois descobriu que, face à componente genética do cancro da mãe, também ela tinha uma mutação do gene BRCA1, ou seja, o chamado “cancro mama-ovário” e que, por isso, a probabilidade de desenvolver outro tumor maligno era elevada. Decidiu, porque mais tarde lhe foi encontrado um nódulo num dos ovários, numa fase muito precoce, retirar e viver “com uma menopausa antecipada”, em vez de uma constante ansiedade de “voltar a ser diagnosticada com um cancro”.

 

Elisabete, a mãe, acabou por ter uma recessiva, algo esperado face à agressividade do seu cancro, e falecer em junho de 2021. Volvidos três anos desde o início desta “montanha-russa”, Liliana, de cabeça fria, apenas se admira da quantidade de situações que conseguiu resolver durante esse período, de forma rápida, concisa e feliz. Garante que esteve sempre ao lado da mãe e que não tem uma relação amarga, nem com o cancro, nem com a morte. Aceitou contar a sua história ao “DA”, no Dia da Luta Contra o Cancro, pela importância de deixar de lado o tabu a ele associado antes, durante e depois de um processo de tratamento, porque “o cancro não são pessoas”.

 

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