O Projeto de Sustentabilidade Social e Ambiental da Ulsba, para além de querer diminuir a percentagem de plástico que circula no hospital, tem como foco requalificar profissionais e doentes psiquiátricos, fazendo-os sentirem-se úteis e capazes.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
Nas últimas semanas, o som rítmico da máquina de costura não tem dado descanso. Em cima das mesas continuam os tecidos, as tesouras e as linhas que, pouco a pouco, vão dando vida aos novos sacos de tecido não tecido. Em tempos, Patrícia Correia, assistente operacional e uma das responsáveis pelo serviço de Costura do Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja, dedicava grande parte do seu dia a reparar e a costurar fardamento, roupas de recém-nascidos, saias de ginecologia e calças de exames, porém, agora as horas passam de uma outra maneira e com um outro projeto em mãos.
“Sempre gostei muito de desafios e quando me propuseram [começar a fazer estes sacos reutilizáveis de tecido não tecido] eu gostei muito da iniciativa, porque é diferente do que nós costumamos fazer aqui e é algo em prol do utente e do ambiente, o que me deixa muito realizada”, começa por dizer, ao “Diário do Alentejo” (“DA”), a assistente de 41 anos, enquanto acerta mais umas alças. “O trabalho começa todo na Sónia, pois ela é a responsável por separar o material, depois talham-se os diferentes tamanhos que são necessários e eu coso à máquina”, explica.
Idealizado no final de outubro, o Projeto de Sustentabilidade Social e Ambiental da Unidade Local de Saúde do Baixo-Alentejo (Ulsba) começou a ganhar forma, no terreno, pelas mãos de Patrícia Correia e Sónia Paulino no mês passado.
“Esta ideia surgiu há relativamente pouco tempo. Falámos todos no final de outubro e decidimos que o iríamos fazer e no final de dezembro estava o ‘vamos fazer’ já a ser feito. Primeiro tivemos a ajuda da enfermeira Virgínia Mouzinho, do Centro de Saúde de Alvito, que colaborou connosco fazendo os primeiros sacos, ou seja, no fundo, a operacionalizar a nossa ideia, e depois passámos a missão para a Patrícia e para a Sónia”, conta uma das coordenadoras do projeto, Iria Velez.
A iniciativa, já replicada noutros setores, tem um objetivo muito simples: substituir o número de sacos de plásticos, utilizados nos serviços hospitalares, por sacos de tecido não tecido e dar uma outra utilidade a este resíduo.
“Somos os principais produtores desta matéria-prima [tecido não tecido], porque gastamo-la, obrigatoriamente, todos os dias nas caixas de esterilização e no material cirúrgico, chegando a consumir cerca de uma tonelada por ano e a criar 500 quilos de resíduos. Portanto, como não se prevê o seu fim, há que reutilizá-la dentro daquilo que for possível”, comenta.
Face às características do próprio material, sem uma outra finalidade, este acaba por ser comprado e rapidamente jogado fora sendo que, segundo a técnica de saúde ambiental envolvida no projeto, Mónica Bettencourt, também se paga “para deitar esses resíduos para o lixo”, por isso, este “é um projeto que só traz valor acrescentado, porque o custo não existe e só traz valor para a unidade local, para a população e para as pessoas, quer na parte social, quer ecológica”.
Foto | Patrícia Correia Costureira na Ulsba, abraçou o projeto e garante que é neste tipo de ideias que se tem de investir
SENTIR-SE NOVAMENTE ÚTIL NA SOCIEDADE
Apesar de não ser um projeto pioneiro, este traz consigo uma particularidade que o distingue dos demais. Aliado à parte ambientalista que, inevitavelmente, carrega, a singularidade de ser levado a cabo, quase na íntegra, por utentes do Hospital de Dia de Psiquiatria e ter permitindo reintegrar algum profissionais consoante as suas capacidades atribui-lhe um peso ainda maior.
“Portanto, esta foi a ideia simples, porque a reutilização já é feita em vários sítios e nós aqui demos um passo maior, efetivamente, nas pessoas, ou seja, na requalificação de profissionais que viram as suas tarefas alteradas pela evolução tecnológica e que, de acordo com as suas capacidades, fazem o que podem e na inserção dos doentes neste projeto. Portanto, aquela chancela do doente no centro do sistema está mesmo lá”, revela Iria Velez.
Sónia Paulino foi uma dessas profissionais. Assistente operacional há 24 anos no Hospital de Beja viu-se ficar “esvaziada de conteúdo” aquando da digitalização do serviço que exercia enquanto mensageira hospitalar.
“A Sónia agora faz a parte de mensageira de manhã, uma hora ou duas, mas, como é óbvio, isso não esgota o tempo de trabalho e então foi a primeira pessoa que requalificámos e, para já, é a única que está integrada. Acho que esta vertente é útil, porque, na verdade, requalificam-se as pessoas dentro daquilo que são capazes de fazer e elas conseguem ver o reflexo do que estão a fazer”, continua.
Envolvida nos seus afazeres, Sónia Paulino conta ao “DA” que gosta muito de estar neste projeto e que a iniciativa lhe tem trazido uma motivação acrescida, não só por estar a aprender na área da costura, mas também por sentir que o seu trabalho não é em vão.
“Este projeto é muito importante e desafiador, porque nunca tinha feito isto e também porque não tenho nenhum curso de costureira e aqui nem dou conta da hora de almoço, nem da hora de saída”, confessa, entre risos, a funcionária de 47 anos.
Sónia Paulino trabalha diariamente em conjunto com Patrícia Correia no serviço de Costura. É a responsável por recolher os materiais junto do serviço de Cardiologia e do bloco operatório e de, por enquanto, o distribuir entre o seu serviço e a ala psiquiátrica. No intervalo ajuda a tirar os adesivos, a modelar e a cortar as linhas.
“Eu aqui divido os materiais e depois de a minha colega coser os sacos faço os acabamentos. Hoje o que eu estou a fazer, por exemplo, é cortar estas linhas das alças dos sacos e depois vou levar os que já estão prontos à farmácia [hospitalar]”, diz mostrando um dos sacos azuis.
Foto | Sónia Paulino Era mensageira hospitalar, foi requalificada no projeto e sente-se novamente útil e desafiada no trabalho
Associada a esta singularidade, a equipa diretiva composta por Iria Velez, vogal do concelho de administração da Ulsba até ao passado dia 15, Mónica Bettencourt, técnica de saúde ambiental, Hugo Nereu, engenheiro sanitarista, Rui Ruivo, engenheiro, e a enfermeira Virgínia Mouzinho viram que seria uma mais-valia convidar o Departamento de Saúde Mental para colaborar e, assim, ajudar a colmatar o estigma associado aos doentes mentais.
“Nós aqui temos uma Psiquiatria muito boa e dinâmica e optámos por alargar este projeto também a ela porque achamos que é importantes as pessoas perceberem que os doentes mentais são tão capazes como todos os outros e como todos nós. Todos nós temos mais habilidade para umas coisas e menos para outras e, portanto, eles também têm mais capacidades para fazerem umas coisas e menos outras. Aliás, eles até podem ter essas capacidades e neste momento, por questões de saúde, não poderem fazer exatamente aquilo que queriam e terem de aprender a fazer outra, mas o que é importante é que estes doentes sintam que têm capacidade de fazer algo. Esta iniciativa está a contribuir para que as suas motivações melhorem e isso é um foco na vida deles”, relembra Iria Velez.
Para Ana Matos Pires, diretora do departamento de Saúde Mental da Ulsba, este projeto veio complementar o trabalho que é feito diariamente com os doentes mentais graves que necessitam de voltar a ser integrados e de sentirem que pertencem à sociedade.
“Os hospitais de dia de psiquiatria são sistemas de internamento parcial que ajudam a integrar novamente os doentes na sua vida diária, ou seja, a controlarem os seus gastos, as suas compras e também a colaborar em tudo aquilo que sejam ações dirigidas à comunidade onde estão inseridos. Ora, este projeto é exatamente isto, um aliar da utilidade terapêutica a uma atividade para o bem da comunidade geral”, salienta.
A importância da rotina, do método e do sentimento de que estão a contribuir para um propósito têm sido os principais motivadores para a receção positiva que a pequena turma teve ao longo das últimas duas semanas.
Na singela sala da ala de Psiquiatria, o grupo que, por vezes, sofre alterações, começa cedo o seu quotidiano de trabalho. Após o pequeno-almoço, os seis utentes dividem-se em grupos iguais e passam à ação de modelar e cortar os tecidos, enquanto Maria Antónia Viseu, uma das pacientes mais antigas, começa a arrumar o material que já está pronto para a costura.
“Isto aqui tem de ser rápido e organizado”, diz, antes de começar a vaguear pela sala. Num ou noutro momento de desconcentração solta alguns versos que lhe “vêm à cabeça” e faz perguntas às terapeutas ocupacionais sobre assuntos corriqueiros. Esta semana a temática mais comum tem sido o arquipélago dos Açores, uma vez que descobriu que uma das estagiárias é de lá.
Natural de Penedo Gordo, um dos aglomerados da periferia de Beja, afirma gostar muito de “andar de autocarro” porque “todos a conhecem” e é raro faltar a uma sessão diária no serviço. Há pouco tempo passou a estar envolvida, às terças-feiras de manhã, neste projeto da Ulsba onde, inclusive, já ajudou, com supervisão, Patrícia e Sónia no serviço de Costura.
Ao “DA” apressa-se a explicar o que faz: “Primeiro tiramos a fita-cola e os adesivos e depois cortamos os moldes com as tesouras para fazermos saquinhos e porta-documentos e entregamos na maternidade para as mães meterem as coisinhas todas que faz falta a um bebé”, realça, enquanto mostra um dos porta-documentos quase terminados.
Esta é outra vertente que o projeto também começou a trabalhar recentemente: o molde, o corte, a costura e a decoração de porta-documentos, pequenos sacos e estojos para entregar na maternidade, sendo que, numa fase mais avançada, todo o processo passará exclusivamente pelo serviço de Psiquiatria.
“O objetivo é eles irem buscar [o tecido não tecido] ao bloco operatório e que depois façam este processo todo de retirar etiquetas, cortar, coser e personalizar com uma mensagem de felicitações ou o que quiserem e que, no final, entreguem em mãos na maternidade, para que percebam que o trabalho que estão a fazer tem um princípio, um meio e um fim. No fundo, que entendam que não estão a fazer terapia ocupacional para apenas se entreterem e que o seu trabalho tem um objetivo”, realça a médica psiquiátrica.
Com apenas três meses de curso ainda não é possível retirar conclusões sobre o impacto que o projeto está a ter junto dos doentes mentais, contudo, Maria Antónia quando fala tem noção de que está a trabalhar para um bem comum e a contribuir para a sua e para a felicidade dos outros. “Acho que este projeto é muito importante e que as mães ficam agradecidas e contentes com este nosso miminho e eu também”, afirma.
Foto | Maria Antónia Viseu Utente do Hospital de Dia da Psiquiatria, diz que o projeto lhe traz felicidade
ABRIR PORTAS NUM FUTURO PRÓXIMO
Parece promissor falar no futuro de um projeto extremamente recente, porém, a “segunda fase” do mesmo chegou antes do esperado e, por isso, já se pensa numa “abertura para a sociedade”. O que começou como uma “ideia” para requalificar pessoas e reduzir a percentagem de plástico que circulava no hospital rapidamente passou para uma escala maior com “reflexos fantásticos, na sociedade civil, de empresas que querem colaborar connosco”.
Assim, segundo Iria Velez, é possível “diminuir a pegada ecológica” dentro do próprio hospital e no “exterior”.
“Por exemplo, nós atualmente estamos a contar com a colaboração informal de uma enfermeira do hospital de Évora que está no serviço de Esterilização e que recolhe e envia os resíduos de Évora, portanto, é possível que o hospital venha a ser um parceiro deste projeto no futuro”, lembra.
Além desta abertura junto da sociedade civil, a equipa diretiva e Ana Matos Pires esperam ainda que este projeto “seja expandido a outros serviços que possam colaborar dentro da Ulsba”, assim como “replicado noutras estruturas pelo País fora”, porque “é um projeto virtuoso em todo o ciclo”.
Iria Velez deixa uma sugestão quanto ao seu desenvolvimento noutros serviços. “Se envolvermos as áreas pediátricas aqui, com as crianças e os pais internados, é possível dar ao projeto uma componente didática, porque temos a construção, os desenhos geométricos, as medidas… Portanto, o objetivo será sempre diferente conforme o público que queremos envolver, sendo que, em último caso, a redução dos sacos de plástico e o reaproveitamento de resíduos para matéria-prima é a meta”, conclui.
Utilidade, recomeço e futuro são os tijolos em que o Projeto de Sustentabilidade Social e Ambiental da Ulsba assentam, estejamos nós a falar sobre os materiais ou as pessoas que o trabalham. Se, por um lado, Sónia e os doentes de Psiquiatria estão a “dar uma nova vida” ao tecido não tecido e a contribuir para “uma sociedade que é de todos”, este também lhes está a dar um novo propósito e uma nova forma de ver o seu destino nessa mesma comunidade.