Diário do Alentejo

Memória

07 de janeiro 2023 - 09:00
Ficar com “a memória viva” de várias manifestações culturais e dos seus intervenientes é um dos objetivos principais do levantamento do património imaterial de 13 localidades do Baixo Alentejo, um projeto da Cimbal. A recolha em vídeo esteve a cargo da associação Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, com direção artística de Tiago Pereira. O projeto deverá ser apresentado publicamente no decorrer da próxima Ovibeja.
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Texto Nélia Pedrosa

 

A Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal) está a fazer o levantamento do património imaterial de 13 localidades do Baixo Alentejo, uma por município, no âmbito do projeto “Património Cultural Imaterial do Baixo Alentejo – Proteção, Valorização e Divulgação”, candidatado ao programa Alentejo 2020.

 

A recolha em vídeo, que decorreu entre maio e dezembro do ano passado, esteve a cargo da associação Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, com direção artística de Tiago Pereira. O próximo passo passará pela colocação, em cada uma das 13 localidades, de painéis com ilustrações da autoria do português Mantraste, que incluirão os respetivos códigos (QR Code) que permitirão aceder aos vídeos através de dispositivos móveis.

 

A ideia de proceder ao levantamento do património imaterial das 13 localidades partiu da Câmara Municipal de Beja, explica o primeiro secretário da Cimbal, Fernando Romba, adiantando que o objetivo “é ficar com a memória viva” de várias manifestações culturais e dos seus intervenientes.

 

“Os vídeos são muito diversificados, muito à base da música, naturalmente, mas às vezes também indo buscar os contadores de estórias, os artesãos. No fundo é tentarmos ficar com a memória viva dessas pessoas que fazem parte da imagem dessa localidade, da nossa própria cultura. Ficar com o registo da nossa cultura para memória futura, porque é fundamental que seja preservada. Há localidades que têm mais vídeos do que outras, o que decorre da própria dinâmica da localidade ou do que se descobriu, mas temos uma panóplia muito interessante e que envolve desde os mais pequenos aos menos novos”, acrescenta.

 

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Outro dos objetivos passa por “tentar criar alguma visibilidade com o projeto para atrair pessoas para o território, para reavivar muitas dessas localidades que estão muito paradas, muito mortas”, diz.

 

De acordo com Fernando Romba, será criando, ainda, “um mapa para divulgar o projeto” e os vídeos ficarão, também, “disponíveis num portal para que as pessoas possam ter acesso a esse registo”.

 

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O projeto, que em princípio irá designar-se “Baixo Alentejo, Terra com Memória”, deverá ser apresentado publicamente no decorrer da próxima Ovibeja, no mês de abril.

 

“É super rico que haja esta ponte entre o passado e as coisas novas” Tiago Pereira sublinha, por sua vez, que, para além das gravações realizadas no ano passado especificamente para este projeto de levantamento do património imaterial das 13 localidades do Baixo Alentejo, foram incluídas “algumas mais antigas”, que não fazia sentido excluir.

 

“Se já gravámos naquele sítio ou se as pessoas já não têm essa prática ou já morreram, não será por causa disso que não vamos incluir essas gravações neste projeto. Não faria sentido que isso acontecesse devido ao nosso modus operandi”, justifica.

 

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E dá como exemplo o que aconteceu em Vale de Vargo, no concelho de Serpa: “Gravámos um poeta popular e o Grupo Coral Feminino de Vale de Vargo, mas tínhamos duas gravações de 2018 e de 2019 das festas da Quinta-feira da Ascensão, que são anuais mas, como entretanto houve a pandemia, pararam, e incluímos essas gravações, porque faz sentido, porque é uma festa peculiar na aldeia, porque as meninas vestem-se todas de branco, vão com o pónei e mandam pétalas às pessoas”.

 

Embora a associação Música Portuguesa a Gostar Dela Própria tenha já um vasto trabalho de recolha do património musical nacional, Tiago Pereira afirma que se surpreende sempre a cada projeto. No caso das 13 localidades do Baixo Alentejo, destaca, em Santa Bárbara de Padrões, no concelho de Castro Verde, “uma senhora com noventa e tal anos, incrível, com uma energia…”, e ainda “uma senhora mais nova, que não tem mais de 40 anos, que fazia imensos responsos que tinha aprendido com a sua mãe e que, inclusive, fez uma benzedura da dor de cabeça” que o diretor artístico nunca tinha visto. “Foi muito forte”, reforça.

 

Em Vila Nova da Baronia, Cuba, por exemplo, surpreendeu-o “um senhor que faz imensas maquetas”, um trabalho “impressionante”, e em Messejana, Aljustrel, a quantidade de pessoas, “de várias gerações, dos mais novos aos mais velhos”, que acabou por se juntar a cantar no museu rural que pertence à Santa Casa da Misericórdia.

 

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“Toda a gente tinha prazer naquilo, notou-se que foi um dia especial para eles. De repente já cantavam as marchas e faziam responsos e traziam e diziam receitas. Foi muito forte, foi muito compensatório, quer para nós, quer para eles”.

 

Tiago Pereira frisa que não se pode “ficar agarrado ao passado no sentido do querer preservar como está, porque é impossível”, mas que se deve “pensar sempre que por ali se poderá projetar um futuro”.

 

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“É super rico que haja esta ponte entre o passado e as coisas novas que acontecem, até porque hoje em dia, com esta velocidade da era digital, de certa forma há uma amnésia. As pessoas não ficam presas ao passado, é como se fossem náufragos das suas próprias raízes. Isto é uma forma de voltarmos a insistir no mesmo ponto, que é preciso aprofundar estes assuntos, é bom pensar que estas práticas ainda estão vivas. Não podemos achar que é coisa do passado, não. Ainda há senhoras que têm 90 anos e que continuam a escrever poemas e receitas e que mantêm práticas, por exemplo, de medicina popular. Que ainda vão ao campo apanhar as plantas e que ainda fazem responsos e benzeduras no País todo e, especialmente, no Alentejo. Ou que ainda há jovens que se interessam pelo cante alentejano, que ainda há cante vivo nas tabernas. Estas práticas ainda estão vivas, então têm de se valorizar e depois transformá-las mediante as condições de hoje. Têm de ser alteradas para não morreram, mas temos de continuar a respeitar esse tempo. Isso é uma questão de honra”.

 

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