Diário do Alentejo

Ser diferente aos olhos dos outros

03 de dezembro 2022 - 11:00
Desde 1992 que o Dia da Pessoa com Deficiência é assinalado internacionalmente
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

Um dia antes do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, o “Diário do Alentejo” foi conhecer as histórias para lá dos sorrisos de quem a vida colocou à prova cedo demais. As barreiras e as superações daqueles que aceitam o mundo que os rodeia, apesar das suas limitações.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Ao som das onze badaladas do sino da Igreja do Santíssimo Salvador, em Ourique, Luís André, de 49 anos, relembra o “dia trágico” em que deixou para trás o sonho de ingressar no curso da polícia. A 25 de fevereiro de 1995, com 22 anos, depois de “uma tarde de festejos”, o bombeiro deu entrada no Hospital de São José, em Lisboa, em coma induzido, após um acidente de viação. Quem vinha atrás dele não o viu ser jogado pela “ribanceira abaixo”, mas foi ao seu encontro quando não o encontraram na paragem combinada adiante.

 

“[Quando caí] percebi logo [que alguma coisa de grave tinha acontecido comigo] porque fiquei consciente. Ao tentar levantar-me, no local do acidente, as dores eram muitas e, como já tinha algum conhecimento na área, deixei-me ficar enquanto foi pedido o socorro para Castro Verde e depois para Beja. O resultado final, diagnosticado em São José, foi que iria ficar numa cadeira de rodas para o resto da minha vida”, conta ao “Diário do Alentejo” (“DA”).

 

Com uma vida toda pela frente, viu os seus planos serem restruturados sem a sua autorização e “foi difícil”.

 

“Foi difícil, porque é uma nova vida. Tinha 22 anos, estava para entrar para o curso da polícia, que era o meu sonho, e tive de aprender tudo de novo, desde o simples vestir até ao passar de uma cama para uma cadeira, mas digo que as lágrimas que deitei foi mais por o facto de não ir [para o curso] do que da situação em que iria ficar”, revela.

 

Em tom de brincadeira afirma que os tempos que se seguiram, em que esteve internado no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, foram o seu “serviço militar”, porque “durante a semana ia para lá e ao fim de semana vinha para casa”.

 

Seis anos antes tinha entrado para os Bombeiros Voluntários de Ourique e, a partir daquela altura, o quartel assumiu uma outra função, a de ser a sua segunda “casa e família”.

 

“Passei por um momento muito especial. [Após o despiste, estava no quartel e] a sirene tocou, o que significava que havia falta de pessoal para uma ocorrência, e eu comecei a pensar no que é que podia fazer para ajudar e senti-me um bocadinho mal”, recorda.

 

Aconselhado pelo seu comandante, tirou uma formação na área de comunicações e há 34 anos que se mantém como bombeiro voluntário na central de ocorrências. Atualmente, é também um dos embaixadores da Associação Salvador no Baixo Alentejo, uma associação que visa a inclusão das pessoas com deficiência motora na sociedade e a melhoria na sua qualidade de vida.

 

“A ANA É UM ANJO NA TERRA QUE TENHO O PRIVILÉGIO DE TER NA MINHA VIDA”

Um ano depois do acidente de Luís André, em Castro Verde nascia Ana Margarida Vilhena, uma bebé tranquila, desperta e que “aos 15 dias passou logo a dormir a noite toda”. A gravidez calma de Margarida Candeias não deixou antever que aos quatro meses, após uma avaliação “que não correu bem como o esperado”, viesse um diagnóstico de síndrome de Down.

 

“Eu e o pai sentimos que havia ali alguma coisa diferente, ou seja, ela projetava a língua para fora da boca e esse projetar é próprio das pessoas com síndrome de Down, porque são hipotónicos. Pouco tempo depois da consulta [dos três meses], a Ana de repente começou a segurar a cabeça e a olhar muito para as luzes dos candeeiros da sala e o pediatra [sem estar confiante nas descrições que lhe fizemos] passou-a para uma consulta de desenvolvimento infantil porque “quatro olhos veem mais do que dois”, começa por explicar a professora de matemática.

 

Passado um mês da colheita de sangue e de ter iniciado a intervenção precoce no Centro de Paralisia de Beja, as suspeitas que os pais de Ana tinham confirmaram-se. Os tempos que se seguiram foram um misto de emoções em casa.

 

Para o pai, “um sofredor em silêncio”, foi complicado, mas, curiosamente, para Margarida, que antes do diagnóstico acreditava “que era uma fase e que tudo ia passar”, a notícia chegou-lhe de forma “tranquila”.

 

“No meu caso, acho que o facto de até aquela idade considerar que ela não tinha nada, quando chegou a notícia o meu pensamento foi que eu não tinha de reagir mal porque tinha uma filha linda, serena e sem birras. E então, sempre, lidei [com a situação], com muita serenidade”, comenta.

 

Ana Margarida tem atualmente 26 anos. Concluiu o 12.º ano no Agrupamento de Escolas de Castro Verde, com um currículo adaptado, tendo iniciado posteriormente um Plano Individual de Trabalho (PIT) onde colaborou num hotel, num café, num salão de cabeleireiro e, recentemente, na Biblioteca Municipal de Castro Verde.

 

“A Ana começou a fazer aqui [na biblioteca] um percurso muito interessante, porque ela era a responsável pelos jornais e revistas. Todos os dias ia buscá-los, às 08:30 horas, introduzia-os, numa tabela de Excel, no computador, imprimia o seu registo, assinava e depois substituía os jornais velhos pelos novos”, conta a mãe.

 

O programa terminou, a pandemia veio e a solução encontrada para manter as suas rotinas foi a integração na Cercicoa – Cooperativa de Educação, Reabilitação e Capacitação para a Inclusão, ainda que, para Margarida Candeias, esta não seja a opção ideal. “Eu acredito que as pessoas diferentes, se viverem no mundo dos diferentes, não evoluem”.

 

 

Multimédia0FOTO | Ana Vilhena tem 26 anos e foi diagnosticada com síndrome de Down aos três meses

 

“[A CONDIÇÃO DO HENRIQUE] SERÁ SEMPRE UMA LUTA NOSSA, DELE E TAMBÉM DOS OUTROS QUE O RODEIAM”

O início da história de Henrique Viriato é semelhante ao de Ana Margarida. Uma “gravidez normal”, interrompida por um parto prematuro, não previa qualquer tipo de diagnóstico menos favorável ao seu desenvolvimento. Aos 10 meses, altura em que os bebés começam a gatinhar, sentar e levantar, o Henrique “não o fazia” e os alertas dispararam para os pais.

 

“O diagnóstico veio da minha insistência porque, com 17 meses, o Henrique não se sentava, não ficava de pé e nem andava, e, com o passar do tempo, [esse atraso no desenvolvimento] parecia mais evidente. Os médicos viam os registos de nascimento dele, que não identificava que tivesse qualquer lesão, e diziam-me que era normal as crianças prematuras demorarem mais um bocadinho”, conta a mãe, Mafalda Marques, enquanto mostra algumas fotografias.

 

Com a confiança de que as suas preocupações não eram de “mãe-galinha”, Mafalda Marques procurou um fisioterapeuta que a compreendesse, tendo diagnosticado o Henrique com hipertonia muscular, ou seja, uma moleza e flacidez corporal, normalmente associada a uma lesão cerebral.

 

“Eu pedi para o fisioterapeuta, [que o diagnosticou], fazer um relatório para entregar ao Hospital de Beja e só aí foi dado o andamento para que o Henrique fizesse uma ressonância e se confirmasse, aos 17 meses, a lesão [no cérebro].”

 

O diagnóstico de uma paralisia cerebral que afetava a parte motora de Henrique foi apenas o apaziguar de “um desespero” e um ponto de partida para se seguir em frente. “Primeiro, há aquele desespero de se saber que ele tem alguma coisa e ninguém acreditar e, depois, passa-se a só querer mesmo um diagnóstico. Quando o nosso filho nasce e nos dizem logo que ele tem uma paralisia cerebral, por exemplo, os pais têm um grande choque e cai-lhes tudo e, no nosso caso, nós só estávamos à espera de nos dizerem que ele tinha de facto alguma coisa e viver a partir daí”, explica.

 

Henrique tem sete anos e frequenta o 3.º ano da Escola Básica de Figueira dos Cavaleiros, no concelho de Ferreira do Alentejo. É um conhecedor nato de futebol, desde as lendas mais remotas até aos craques atuais, e nem as terapias intensivas, de um mês, numa clínica em Espinho, lhe tiram o sorriso e a gargalhada fácil.

 

“O Henrique é muito desenrascado e o que eu lhe digo sempre é que ele tem de ser bem-educado, mas se alguma coisa lhe corre mal, por exemplo na escola, ele tem de falar e defender aquilo que acha que está correto. E é isso que eu quero para a vida dele e sei que para ele, às vezes, os obstáculos maiores não têm a ver com a cadeira de rodas, mas sim aqueles que ele encontra por falta de acesso e meios”, relembra Mafalda.

 

Multimédia1FOTO | Henrique Viriato tem sete anos e com 17 meses foi diagnosticado com uma paralisia cerebral que lhe afeta a parte motora do corpo

 

 

“O GUILHERME QUER SER ASTRONAUTA E NÓS ACREDITAMOS, E FAZEMO-LO ACREDITAR, QUE NÃO É POR SER INVISUAL QUE NÃO O VAI SER!”

Marta Fernandes partilha da mesma opinião que Mafalda. O seu filho Guilherme, de nove anos, nasceu com um diagnóstico de cegueira congénita e, apesar de “receosa”, sempre se comprometeu em “encontrar respostas para que o seu desenvolvimento global não ficasse comprometido devido à sua deficiência”.

 

“Gui”, como é carinhosamente chamado pelos pais e amigos, tem feito um percurso escolar “absolutamente normal, natural e tranquilo” desde os dois anos, altura em que entrou no pré-escolar.

 

“O Guilherme esteve sempre acompanhado por uma equipa de professores extraordinária que tem sido fundamental para o sucesso da sua aprendizagem e a única diferença, em relação aos restantes colegas, é que a sua literacia é feita em braille. Ele tem tido ainda a sorte de estar, sempre, rodeado de amigos fantásticos, preocupados e extremamente protetores, que o tratam de forma igual e que interagem com ele com a maior simplicidade”, comenta a mãe, de 41 anos.

 

Aos quatro anos, influenciado por uma amiga, o seu espírito destemido e aventureiro levou-o a experimentar a modalidade de patinagem artística e “desde então nunca mais quis parar”, tendo sido, inclusive, o primeiro desportista invisual aprovado num teste de iniciação de patinagem, de nível I, em Portugal.

 

“O início da prática desta, ou de outra modalidade desportiva qualquer, traz sempre, por inerência, o receio das lesões que daí possam advir e com o Guilherme foi igual. Fruto da sua condição, e pelo risco inerente à modalidade, o Gui necessita de um guia que o apoia na orientação espacial para a execução dos exercícios, em ambiente de treino, naturalmente, este acompanhamento integra indicações para o desenvolvimento e melhoria da performance dos exercícios, mas, em ambiente de prova, e por respeito pelos restantes colegas e pela modalidade, o guiamento é dado exclusivamente como orientação espacial e garantia de segurança”, revela orgulhosa.

 

O brincar e sonhar de Guilherme é igual a “qualquer outro miúdo da sua idade” e por isso patina, anda de bicicleta, joga futebol e quer fazer do espaço, enquanto astronauta, a sua casa quando crescer. Para Marta Fernandes, é imprescindível deixá-lo “experimentar tudo aquilo que ele quer” e dar-lhe ferramentas para expô-lo “ao mundo e à vida com o máximo de vivências e experiências possíveis, consciente da sua necessidade especial, para que assim consiga traçar o melhor rumo” para o seu futuro.

 

 

Multimédia2FOTO | Guilherme Fernandes tem nove anos e nasceu com um diagnóstico de cegueira congénita

 

“A TRISTEZA MAIOR É O QUE A SOCIEDADE TEM PARA OFERECER”

Dos testemunhos anteriores a conclusão é clara quanto à preparação da sociedade para integrar e incluir quem “é diferente”: não há respostas, apoios e nem oportunidades.

 

Para Luís André uma simples ida à baixa de Ourique é penoso e, por vezes, um insucesso por não conseguir entrar nas lojas, cafés e restaurantes pelo “pequeno degrau [que existe] no final das rampas, que dificulta muito [quem está numa cadeira de rodas]” ou até pela largura das portas.

 

“Num modo geral [a questão das acessibilidade é um assunto que] é complicado. Devia-se obrigar qualquer político, antes de exercer funções, de fazer formações e, por exemplo, andar um mês de cadeira de rodas [para perceber a dificuldade que é andar na rua]. Ainda que eu ache também que um dos grandes problemas é a falta de fiscalização, porque, por vezes, nós falamos com os decisores políticos e quem faz não obedece ao que é descrito e ninguém vai lá confirmar”, argumenta o bombeiro.

 

A crítica aos órgãos do poder é alargada também ao nível de auxílios financeiros. O tratamento intensivo do Henrique ronda os quatro mil euros, excluindo o valor da estadia para o mês inteiro, e o apoio financeiro que é dado pelo Estado não chega a 350 euros.

 

“Eu recebo 103 euros [enquanto cuidadora] e o Henrique recebe 136 euros, que não dá para nada e se formos ver bem nós estamos a poupar muito dinheiro ao Estado, porque por cada criança que um pai mete numa instituição [de educação especial], como um centro de paralisia, custa-lhes mais de mil euros. Já para não falar que, se quiséssemos, não há respostas. Por exemplo, no Centro de Paralisia de Beja, a partir dos sete anos, o Henrique tem direito a tudo, mas, na realidade, não tem direito a nada porque não há vagas”, afirma Mafalda Marques.

 

Ao nível das respostas sociais, tanto na aprendizagem como na empregabilidade, o cenário repete-se. Para Guilherme a inexistência de brinquedos, livros e experiências adaptados para invisuais é uma das batalhas que os pais lutam e que acreditam que “assim continuará”, pelo menos em solo português.

 

Recentemente, Gui mudou-se para a Alemanha com os pais e frequenta uma turma com outras crianças com problemas visuais numa escola de referência e onde as diferenças quanto ao apoio no ensino são abismais.

 

“A maior diferença, [aqui na Alemanha], passa, sobretudo, pela disponibilidade de recursos, onde o Guilherme tem todas as ferramentas que precisa à sua disposição: livros, relevos, jogos (como os legos em braille) e materiais adaptados, secretária com disposição de espaço bilateral para a escrita, onde se encontra a máquina braille, e para a leitura. E, claro, uma escola totalmente adaptada que lhe garante uma quase total autonomia. Infelizmente, em Portugal este apoio não funciona da mesma forma. Apesar de todos os esforços do pessoal docente que acompanhava o Guilherme, por exemplo, os manuais escolares não estavam disponíveis no início do ano letivo e o que acontecia, na maioria das vezes, é que quando chegavam já a matéria tinha sido dada e não tinha sido possível o Guilherme acompanhar em tempo útil a sua leitura”, compara Marta.

 

Quanto à empregabilidade as soluções também são escassas. Segundo Margarida Candeias é necessário que outros setores, além das autarquias, invistam e deem respostas “a estes miúdos”, porque “estes jovens têm que ter as mesmas oportunidades para poderem participar de forma justa e igualitária na sociedade”.

 

 “Nós, [família] e uma equipa, lutámos todos para que a Ana desenvolvesse competências e ela consegue fazer imensas coisas. A Ana foi aluna do Conservatório Regional do Baixo Alentejo, dos sete aos 14 anos, fez parte do coro infantil, tocou flauta, piano e guitarra, praticou natação desde muito pequena, experimentou fazer surf adaptado, frequentou, com os três irmãos, colónias de férias, dos seis aos 16 anos, fez uma exposição fotográfica, é atleta federada de patinagem artística, dança zumba, cozinha … a trissomia 21 nunca a impediu de fazer um percurso igual aos seus pares, agora só têm de acreditar nela e darem-lhe oportunidades e respostas [profissionais] ”, garante a mãe.

 

“INTEGRAR É FÁCIL, DIFÍCIL É INCLUIR”

A pouca compreensão e paciência, por vezes, deixa transparecer “o preconceito que ainda está enraizado” e a “longa caminhada que falta fazer” para uma sociedade verdadeiramente inclusiva.

 

“Já me aconteceu eu ligar para um hotel e garantirem-me que era acessível para uma pessoa de cadeira de rodas, com lugar de estacionamento e tudo, e eu chegar lá, já de noite, e não ser nada do que me tinham dito. [Por isso], qualquer pessoa que gosta de aventura, e eu sou um louco por aventura, não arrisca ir sem antes fazer um kit com toda a informação [de acessibilidades]”, conta ao “DA” Luís André.

 

Para Margarida Candeias “há tanto [ainda] por fazer” e a integração que a sociedade tem caminhado para fazer com pessoas com deficiência não é sinónimo de uma sociedade inclusiva.

 

“[Atualmente], há integração, mas é preciso que a inclusão aconteça. Eu costumo dizer que integrar é fácil, mas incluir é sempre difícil, porque as respostas que são dadas não podem ser só em papel e naturalmente tem de haver investimentos, paciência e sensibilidade. É preciso atender-se à especificidade de cada deficiência, apresentar meios adaptativos e acessíveis, porque só assim a inclusão é feita, reconhecendo e valorizando a diversidade como um direito humano”, afirma.

 

O papel do “DA” também é este: contar histórias, dar voz e falar do mundo e das suas diferenças. Um mundo onde todos somos diferentes e, ao mesmo tempo, iguais aos olhos dos outros. O Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, promovido pela Organização das Nações Unidas, celebrou-se no passado dia 3, e pretende consciencializar para a deficiência, para a defesa da dignidade, dos direitos e do bem-estar das pessoas.

 

 

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