Diário do Alentejo

As vozes de quem nasceu a “cantar à alentejana”

25 de novembro 2022 - 11:00
O cante alentejano comemora oito anos desde a sua elevação a Património Cultural e Imaterial
Fotos | Ricardo ZambujoFotos | Ricardo Zambujo

O Grupo Coral Juvenil Rouxinóis do Alentejo regressa amanhã, após uma pausa de dois anos e com uma “nova roupagem”, ao Centro Unesco, pelas 16:00 horas, nas comemorações do 8.º aniversário da elevação do cante alentejano a Património Cultural e Imaterial da Humanidade da Unesco.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Com o aproximar das 18:00 horas o silêncio que outrora se fazia escutar no Centro Unesco, em Beja, começa a ser rompido suavemente pelo tagarelar dos miúdos que ensaiarão dali a instantes. Chegam em passo apressado e com um sorriso no rosto, seguidos pelos pais e avós que irão assistir ao ensaio geral.

 

Amanhã apresentar-se-ão, pela primeira vez e com uma “nova roupagem”, enquanto elementos do Grupo Juvenil Coral e Etnográfico Rouxinóis do Alentejo, mas nem o nervosismo lhes tira a boa disposição.

 

“Nós [enquanto grupo coral] temos de ter objetivos e este primeiro espetáculo é um deles. Seria, também, uma pena que esta ‘riqueza’ ficasse só nas paredes do Centro Unesco, sem que ninguém pudesse aceder ao cante destes miúdos com todas as fragilidades que um grupo destes pode ter, mas também com todas as virtudes, purezas e espontaneidades. [Mas, acima de tudo,] esperamos que este seja uma boa experiência para que eles metam em prática aquilo que vão aprendendo, ensaiando e trabalhando”, começa por explicar o ensaiador do grupo, Paulo Ribeiro.

 

Para já, as modas estão sabidas. Hoje, o ensaio é de aperfeiçoamento, seja ele ao nível da entrada para cada estrofe ou das posições em palco. Já com o escuro da noite, a entrar pelas janelas, começa, a uma só voz, o famoso “Castelo de Beja” que, aos poucos, enche a sala com o refrão. Segue-se “Gotinha de Água”, “Passarada”, “A Moda do Assobio” e “Oh Pavão, Lindo Pavão”.

 

Os rostos dos familiares que os escutam, ainda que já os conheçam de cor, mudam automaticamente à medida que as modas se fazem soar. A emoção apodera-se da sala e com ela o silêncio retoma e faz de pano de fundo às vozes que cantam.

 

“Vê-los, à segunda-feira, é um bálsamo, porque vê-se a forma como cantam, acreditam, sentem e valorizam [tudo isto que é o cante alentejano] ”, interrompe Sara Serrano, vice-presidente da Associação responsável pelo grupo.

 

Esta primeira atuação traz consigo um peso acrescido. É também aquela que marca o regressar dos Rouxinóis do Alentejo, após dois anos em que a pandemia os forçou a parar, com novas vozes e ideias.

 

Com uma história de mais de duas décadas por trás, este “regressar” do Grupo Juvenil Coral vem marcar também uma viragem, com “um novo caminho e uma nova pegada”, onde o principal objetivo é “cantar nesta fórmula que a Unesco classificou como Património Cultural e Imaterial, ou seja, o cante à voz sem recurso a instrumentos”.

 

“Esta é mesmo uma renovação com uma outra roupagem, aproveitando muito do que foi pensado e idealizado antes, mas agora tentando também inovar com novas criações e com sangue novo para se experimentar novas formas, dando [ao cante] um maior significado e levando-o a mais pessoas de formas diferentes, mas sem desvirtuar aquilo que ele é”, explica Sara Serrano. Fátima Mestre, presidente da Associação, completa: “a essência acaba por estar cá toda, [porque o que nós queremos] é dar mais visibilidade às vozes e valorizar o cante [na sua forma original e pura] ”, refere.

 

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A IMPORTÂNCIA DE “LANÇAR AS SEMENTES” DO CANTE

Entre uma moda e outra, os sorrisos e as gargalhas surgem e é notória a diversão em cima do palco. No total, fazem parte do grupo 25 crianças, entre os seis e os 12 anos, contudo hoje faltaram cinco.

 

A escolha deste intervalo de idades foi pensada e estudada pelo ensaiador e pela própria Associação, sendo a mudança de voz na adolescência e a falta de oportunidades musicais, com a entrada no ensino básico, os principais fatores a ter em conta.

 

“Esta aposta na questão dos seis e dos 12 anos tem muito que ver com o facto, principalmente dos rapazes, mudarem de voz, aos 13 ou 14 anos, e depois gerar-se algum tipo de dificuldade em termos vocais no conjunto, daí essa aposta em idades onde as crianças cantam no mesmo tom. [Bem como], pelo facto do cante nas escolas começar na pré-primária e terminar no 4.º ano e, portanto, deixar estas crianças numa zona cinzenta e um bocadinho órfãos desta experiência, sem sítio para cantar”, explica Paulo Ribeiro.

 

Além disso, a necessidade de “lançar as sementes” do cante e assegurar a sua sustentabilidade, mantendo-o vivo de geração em geração, e acompanhando, inevitavelmente, as transformações rurais e sociais do Alentejo, são outros dos pilares fulcrais para os Rouxinóis do Alentejo.

 

Para a mãe de Simão Diogo, um dos novos integrantes do grupo, Celina Santos, a existência deste tipo de grupos musicais, fora também do contexto escolar, é uma mais-valia para “manter as tradições e cultivar o gosto e as aptidões dos mais novos que, desde pequeninos, mostram para o cante alentejano”.

 

Também Maria Manuel Lúcio, mãe de Marta Gonçalves, reconhece o papel importante das famílias neste percurso para “dar valor àquilo que é alentejano, que é nosso e continuidade para que o cante nunca se acabe, uma vez que é Património Cultural e Imaterial da Unesco”, garante.

 

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PASSARAM-SE OITO ANOS DESTE A ELEVAÇÃO DO CANTE PELA UNESCO

A tenra idade dos integrantes dos Rouxinóis do Alentejo não os permite recordar o “dia feliz” em que o cante alentejano foi elevado a Património Cultural e Imaterial pela Unesco. Rodrigo Gil, de sete anos, é um dos miúdos que quando nasceu, em 2015, o cante já tinha recebido essa distinção, mas por influência do seu avô, que o tem acompanhado aos ensaios, começou a cantarolar.

 

“Eu vim para os Rouxinóis do Alentejo porque desde os três anos que canto e gosto muito de cantar com o meu avô e [agora] os meus amigos e a minha família dizem que adoram que eu cante aqui”, conta, com um sorriso traquina.

 

Marta Gonçalves e Joana Ameixa, que frequentam agora o 4.º ano, também revelam o seu gosto pela música e, em particular, pelo cante alentejano. Desde “pequeninas” que aprenderam algumas modas e por isso decidiram arriscar no casting dos Rouxinóis do Alentejo.

 

Até agora, além das amizades que levam, têm noção que já aprenderam a “aquecer a voz”, a “cantar melhor”, a “parar de ter vergonha” e a sentir esta tradição alentejana. O pequeno Rodrigo interrompe e faz ainda uma confissão ao “Diário do Alentejo” (“DA”) que deixa a sala em gargalhadas: “eu [nos ensaios] o que aprendi foi a ficar quieto, porque, por acaso, cantar, eu já cantava bem!”, comenta.

 

Esta é uma das primeiras gerações que olha para o cante alentejano sem preconceitos ou desprestígios. Nasceram na era em que “houve um boom de grupos corais em todas as aldeias com gente mais nova” e que “em cada esquina havia um grupo coral”, como havia as bandas de rock, nos anos 80, nas garagens. Desconhecem o estigma do passado que associava o “cantar à alentejana” aos “mais velhos” e onde quem cantava não o fazia de forma “assumida”.

 

“As pessoas [mais novas] cantavam às vezes nos jantares, mas nunca uma coisa assumida e este prémio [da Unesco], que o cante recebeu, foi uma forma das pessoas, e dos milhares de cantadores em particular espalhados pelo Alentejo e pela diáspora, sentirem-se premiados e com um grande orgulho”, começa por explicar Paulo Ribeiro. O ensaiador, de 51 anos, relembra ainda que “foi um dia feliz quando se soube da notícia em Paris e celebrado em todo o Alentejo e isso teve um grande impacto no envolvimento dos jovens no cante, porque muitos começaram a associar-se a grupos corais, e houve [também] um crescente interesse por esta arte popular [e a prova disso foram] todos os projetos que daí apareceram”, confirma.

 

O balanço destes oito anos desde a sua elevação é positivo. O cante alentejano passou a estar na “moda” e miúdos e graúdos começaram a ter interesse e vontade em representar as suas raízes alentejanas em qualquer parte do mundo.

 

Fátima Mestre afirma ainda que “esta elevação ajudou a dar mais visibilidade ao cante, porque cantar sempre se cantou, de uma forma mais ou menos envergonhada, e não foi por acaso que o cante teve este reconhecimento, [mas] este facto [do cante] estar na moda também ajudou e ajuda a que os pequeninos queiram vir”.

 

 

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O FUTURO DO CANTE É PARA “REGAR E CUIDAR”

Uma hora depois do começo do ensaio os sorrisos do início permanecem iguais, o sentimento que transmitem, e que eles próprios sentem enquanto cantam, são “o futuro e a salvaguarda do cante”. Não está certa a sua permanência em outros grupos corais à medida que crescem, mas está garantida a sua “sensibilidade para o cante e a sua prática” enquanto espetadores.

 

No olhar carregam a responsabilidade de “assegurar a continuidade desde património”, mesmo sem nunca terem experienciado, no campo, o que cantam.

 

Paulo Ribeiro afirma que “apesar de algum pessimismo que possa por aí existir, eu acho que o cante, mais do que nunca, está numa fase interessante e que [assim como] uma flor temos de regar e cuidar [dele], mas não morrerá, isso não tenho dúvidas”.

 

Com o som da última moda antecipa-se também o fim do ensaio. Agora é altura de sair de palco e prepararem-se para a tarde de amanhã, com a inocência característica da idade, sem conhecimento do peso que carregam nos ombros ao se apresentarem no Centro Unesco. Não sabem o que isso significa para quem os ouve e viveu naquele tempo. Um dia mais tarde terão essa noção. Agora aguardam ansiosamente que a sala encha e que o “ponto” se faça soar.

 

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