Um relatório da Agência dos Direitos Fundamentais diz que 62 por cento dos ciganos em Portugal declararam em 2021 terem sentido discriminação no último ano, a percentagem mais elevada dos 12 países onde o inquérito foi aplicado. Embora não existam dados a nível regional, o presidente da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal afirma que a discriminação tem vindo a aumentar no Alentejo, muito por culpa do partido Chega.
O presidente da mesa do conselho geral do Núcleo Distrital de Beja da EAPN/Rede Europeia Anti-Pobreza considera, por sua vez, que os resultados do inquérito refletem “o sentimento de exclusão de uma comunidade que observa dificuldades no acesso ao trabalho e à habitação e constata a radicalização de alguns setores no que concerne à defesa de que a subsidiodependência deve ser banida das políticas sociais europeias”.
Texto Nélia Pedrosa
João Martins sublinha que a pobreza na Europa, fruto de inúmeros fatores, cresceu. As consequências da pandemia de covid-19 são um deles, “a que se soma a entrada na Europa de muitos migrantes, os quais competem ao nível das oportunidades de emprego indiferenciado com as comunidades ciganas”.
Para o dirigente, “as políticas sociais de apoio aos mais pobres, que devem ser acompanhadas de acesso ao trabalho, à educação, à habitação e à saúde, encontram-se desajustadas e são, porventura, diminutas”.
Ao nível do distrito de Beja, acrescenta, as comunidades ciganas mais afetadas são “a do bairro das Pedreiras, em Beja, do ‘campo da bola’, em Moura, e da Canada, em Pias”, que vivem “abaixo da dita dignidade humana”.
“Acima destas temos a restante comunidade cigana que continua, todavia, muito prisioneira do RSI e com dificuldade no acesso ao mercado de trabalho, habitação condigna, etc., comunidades estas que vivem numa extrema pobreza”.
João Martins frisa que, ultimamente, verifica-se “um fenómeno laboral” em que a comunidade cigana do Alentejo “é procurada para trabalhar noutras regiões, como em Torres Novas (zona oeste) e Espanha (Andaluzia), e menos procurada para trabalho no Alentejo, comparativamente com os migrantes que proliferam nesta região”.
Segundo o Mapeamento das Comunidades Ciganas do Distrito de Beja, levado a cabo pela AMEC com o apoio do Núcleo Distrital de Beja da EAPN, em julho de 2018 viviam, no distrito de Beja, 3666 cidadãos ciganos, o que representava 2,4 por cento do total de habitantes no território nacional.
Comparativamente ao estudo de caracterização da população cigana realizado em 2010 pelo Centro Distrital de Segurança Social, em oito anos (2010-2018) a população de etnia cigana registou um aumento de 79 por cento.
Se quase numa década existiu “um aumento de 79 por cento”, diz o presidente da mesa do conselho geral do Núcleo Distrital de Beja da EAPN, pode “estimar-se que em cinco anos tenha sido de metade”.
“Dou um exemplo concreto: em 2002 Mombeja tinha um agregado familiar de etnia cigana composto por pai, mãe e cinco rapazes. Atualmente existe uma comunidade acima das 70 pessoas. Nas Pedreiras, em Beja, em 2018 existiam 50 famílias em habitação social e 40 em barracas em lonas. Atualmente, o aumento de barracas, neste gueto às portas de Beja, multiplicou-se bastante, aumentando, consequentemente, na mesma proporção”.
Ainda de acordo com o mapeamento, em 2018 cerca de 70 por cento dos elementos de etnia cigana do distrito de Beja viviam em casas de alvenaria, 17 por cento em barracas e 13 por cento em tendas ou roulottes.
Em Moura, Serpa, Vidigueira e Cuba, por exemplo, havia igual número de casas e de barracas. Quatro anos volvidos, João Martins salienta que em Castro Verde, Alvito e Vidigueira observou-se “alguma melhoria” nas condições habitacionais, “contudo, e de forma geral, o aumento da comunidade, com a consequente formação de novas famílias, muitas das quais sem acesso à habitação, fez com que proliferassem mais barracas”. Exemplo disso, é o já mencionado bairro das Pedreiras, “considerado por muitos”, sublinha o dirigente, “como uma verdadeira bomba social às portas da cidade”.
As situações de Moura e Pias, diz, “também implicam um olhar clínico e atento da situação”.
Perante o diagnóstico da pobreza e exclusão social no distrito de Beja, João Martins lembra que o núcleo de Beja da EAPN elaborou um documento “que sugere várias medidas e ações concretas” e que foi submetido à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo e às comunidades intermunicipais do Baixo Alentejo e do Alentejo Litoral.
Entre as propostas de intervenção mais específicas para a comunidade cigana constava a criação de uma estrutura associativa intermunicipal para dar resposta aos problemas habitacionais; campanhas distritais de sensibilização para combater a discriminação e o racismo, com o envolvimento dos atores sociais; promoção do emprego das comunidades ciganas; apoio ao associativo cigano; e implementação de dois projetos-piloto no distrito, em Beja e Moura, “à semelhança do projeto de Luta Contra a Pobreza, com principal foco na habitação e no emprego”.
Fruto “de um novo contexto”, acrescenta o responsável, “existirão, porventura, novas medidas a promover”. Atualmente, algum do trabalho desenvolvido pelo núcleo de Beja da EAPN “passa pelo apoio à Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal, na pessoa do senhor Prudêncio Canhoto, cujo trabalho é reconhecido a nível nacional”, diz.
No que diz respeito ao Mapeamento das Comunidades Ciganas do Distrito de Beja, a sua atualização será feita “quando existirem condições” para tal, no entanto, sublinha João Martins, “o distrito de Beja é o único que em Portugal possui um mapeamento organizado no terreno e não no gabinete”.
POBREZA "NÃO É SÓ UM PROBLEMA DOS POBRES"
Para o responsável, a resolução dos problemas sentidos pelas comunidades ciganas exige “um esforço concertado entre o poder local, o poder regional e o poder central, e, necessariamente, com o envolvimento da comunidade cigana”. João Martins reforça que a pobreza “não é só um problema dos pobres, é um problema da sociedade como um todo, onde existem diferentes níveis de responsabilidades”.
“Perante um problema não podemos fechar os olhos, ou tentar negar o mesmo, pois o mesmo só se vai agravar”. É neste sentido que considera “que o combate à pobreza não passa apenas pelo apoio social, tem de passar pelo acesso e integração no mercado de trabalho, no acesso à habitação condigna, no acesso à educação e à saúde. E nesta esfera tem de se garantir que para haver direitos também tem de haver obrigações”.
No “caso do bairro das Pedreiras, ou de outros bairros ou guetos similares”, defende, à semelhança do presidente da AMEC, que a solução “tem de passar por um processo de integração e acompanhamento real, família a família, que passa, obrigatoriamente, por ter de ser fora daquele contexto”.
Aliás, frisa, “quer na Europa, quer em Portugal, existem vários exemplos pela negativa, quando a aposta vai no sentido de tentar resolver o problema no gueto, e pela positiva, quando o gueto é anulado e existe a integração e acompanhamento das pessoas na comunidade”.
“Tem de existir mobilização de diferentes atores, coordenação e estratégia de atuação, e, acima de tudo, vontade de resolver problemas. Na inexistência da figura de um governador civil que assumia, em muitos casos, esse papel, tem de se garantir esta função”, considera, concluindo que é necessário “quebrar preconceitos e tentar compreender os vários ângulos desta difícil equação”, mas é, igualmente, essencial, que a comunidade cigana “compreenda que existem regras em sociedade e que têm de ser cumpridas por todos”.
O “Diário do Alentejo” tentou obter junto da Câmara de Beja alguns esclarecimentos sobre a situação do bairro das Pedreiras, o que não foi possível até ao fecho da presente edição.
COVID-19 E GUERRA "NÃO PODEM SERVIR DE DESCULPA"
Nas conclusões do relatório, a Agência Europeia dos Direitos Fundamentais considera que a pandemia de covid-19 “afetou os esforços de inclusão dos ciganos” e que a guerra da Rússia contra a Ucrânia torna a sua inclusão “ainda mais difícil”, defendendo que os países utilizem de “forma eficiente” o investimento na inclusão social.
O presidente da mesa do conselho geral do Núcleo Distrital de Beja da EAPN/Rede Europeia Anti-Pobreza diz que “os efeitos da pandemia e a guerra acarretaram consequências para todos, em particular para os mais pobres, mas estes fatores não podem servir de desculpa para tudo e, muito menos, para esta situação”.
E acrescenta: “A realidade é esta e não passa só pela comunidade cigana, passa por todos os que auferiam uma pensão social mensal de 213,91 euros antes de 2022, mesmo antes da pandemia e da guerra. É necessária uma eficaz intervenção de resposta às desigualdades sociais, independentemente da etnia, sexo, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, condição social ou orientação sexual, e que passa não apenas pelo apoio social, mas que tem de ser acompanhado de apoio à integração no mercado de trabalho, no acesso à habitação condigna, no acesso à saúde e à educação”.